PREFÁCIO
Esse é meu registro para as próximas gerações! Muito contente inclusive, já que não foi sempre assim tão fácil.
É da época em que nos proibiam de espalhar nossas escritas que gostaria de contar a vocês. Nos tempos em que os contos se mantinham vivos apenas nas memórias reservadas aos poucos e heroicos guardadores como eu ou por meio dos contos repassados entre os raros momentos entre pais e filhos. Aliás, eu tive a sorte ainda de conviver alguns bons momentos com o meu, um bom homem... até hoje sinto seu cheiro nesse velho sobretudo... seu único erro foi morrer acreditando naqueles malditos deuses. Eles sempre foram os culpados, eu sabia disso... tantas vezes eu os alertei... hunf!... meu nariz nunca falhou.
No fim fomos salvos, mas graças a nós mesmos, não por qualquer milagre divino como muitos acreditavam, tampouco pelos que reinavam esse mundo se vendendo como salvadores. Nenhum deles falava a verdade.
Por muito tempo pensei em como descrever essa era perdida. No início pensei em algo mais formal como aqueles anteriores a mim o fariam, mas não sou como eles, tenho algo muito mais interessante em minhas mãos. Foi por isso que decidi contar a história de um amigo, um dos poucos e preciosos que tive, com muitas de minhas próprias memórias, vistas com meus próprios olhos.
Logicamente sem meu direcionamento, ele não teria chegado tão longe. Como poderão ver eu até mesmo o treinei certa vez, assim como fiz com o grandalhão.
Talvez ele não fosse o mais poderoso de todos eles, o mais eloquente, ou o mais inteligente, mas com toda a certeza era a pessoa mais teimosa que essas terras já conheceram.
A teimosia que nos fez acreditar que era possível quando todas as chances diziam o contrário e o levou a fazer o que precisava ser feito. Diferente de qualquer outro... para ser sincera, é provável que nem mesmo eu o tivesse feito. Quem abdicaria do poder de reescrever sua própria história como bem quisesse?
Eu acabei sobrevivendo no fim, mas muitos outros não tiveram essa mesma sorte. É provável que o mundo esteja melhor agora, ainda que tudo seja estranho e novo. Sinto saudades de todos, é tão sozinho e silencioso aqui que às vezes converso comigo mesma sabiam? Até isso me lembra ele, ele costumava fazer o mesmo de vez em quando.
Talvez eu vá encontrar alguns velhos amigos daqui um tempo, mas não antes de escrever tudo que tenho pra escrever.
É irônico pensar que logo eu farei com que algumas linhas daquele tratado façam sentido. Só pode ser uma maldição daqueles dois.
Bom é isso... aos merecedores, concedo a eternidade!
PRÓLOGO
No começo do universo, o mundo era uma coisa só, não existia claro, escuro, céu, terra, luz ou sombra. Essa unificação sem forma definida, continha em seu interior um imenso caos, limitado por barreiras físicas que um dia se romperam. O caos libertado assumiu algumas formas que harmoniosamente se auto-organizaram, uma delas clara, pura e leve que se transformou no céu. Depois, uma parte densa e escura que se condensou para formar a terra. E em meio a esses surgiu um ser único, fruto do equilíbrio e apaixonado pela desordem controlada. Era denominado Uno o criador. Uno entendia que a desordem era a origem e o caminho para a evolução e esta se tornaria seu propósito e legado. Entendendo que sua existência era uma barreira instransponível para atingi-lo, criou os primeiros seres, antagônicos e dotados de imenso poder, partes de seu próprio criador, os denominados deuses da era antiga. Estes desenvolveram suas próprias obras, até que o mundo fosse preenchido de caos e equilíbrio até sua última subdivisão.
Porém na chamada era antiga, os primeiros seres moldados e auxiliados pelas mãos onipotentes desses deuses, os originários, também evoluíram. Dotados do livre arbítrio criaram suas próprias crenças, línguas e culturas e passaram a entender que talvez fosse a hora dos demais povos serem integrados aos seus costumes, mais nobres e mais prósperos. Um desejo furtivo e sutilmente incentivado por aqueles que os olhavam de cima, como peças descartáveis de um tabuleiro, afinal a vitória da melhor criação revelaria o melhor criador. Foi o início da longa guerra que se perpetuaria ao longo dos anos. Porém o que se via na prática era muito longe de qualquer vitória, o equilíbrio entre as forças fez com que o céu se tornasse escuro, o chão se tornasse brasas e a vingança se tornasse o alimento de um mundo fadado à ruína. Contra o desejo de Uno, os deuses decidiram intervir. Os deuses por meio de seu banimento do mundo material, reestabeleceram os recursos naturais e estabeleceram um tratado universal, um voto de paz, escrito e repassado aos líderes de cada umas das raças originárias, repassando a responsabilidade pelo desenvolvimento daquele mundo para suas mãos, assim como haviam sido deles um dia, o tratado de Manthcinna. O sacrifício lembraria do passado,
Uma única língua fora criada, assim a diplomacia só enfrentaria o obstáculo de seus próprios corações, os territórios foram divididos, assim a terra poderia ser arada sem que muros precisassem ser levantados, a eternidade fora banida, fazendo com a ganância e a ambição que teimassem em florescer fossem ceifadas pelo tempo, o sacrifício fora feito e seria lembrado para que o futuro visto pelos olhos de todos não voltasse a se repetir. Não havia nova chance pelas mãos dos deuses, eles não estariam mais lá. O caminho precisaria ser diferente daquela vez e foi por certo tempo até que os ventos do caos começassem novamente a soprar.
BRINDE AO TRATADO
Daburn
Naquele dia, a festa de união dos povos reunia algumas das mais poderosas personalidades em um banquete que não passaria despercebido nem pelos olfatos menos aguçados da cidade de Fisbia, que ficava ao pé da colina do castelo de Blackhelm. O castelo de pedras ferro enegrecidas, em sua torre central, mais parecia um elmo de gigante do que um castelo em si, e o brilho de suas pedras lembrava os trabalhos dos ferreiros de grande nome, assim como sua abertura perto de seu topo, que se assemelhava à boca de um sapo.
Não havia dúvidas que não se tratava de um castelo criado na era dos antigos deuses. O portão de entrada em madeira de Adonsoneiro era árvore nascida somente nos terrenos pantanosos do reino humano de Tessan, as esculturas talhadas em curvas tão refinadas, só poderiam ter sido esculpidas por mãos élficas, e os puxadores de Trilium polidos em formato de cabeça de leão, o animal símbolo daquela cidade, só poderiam ter sido moldados nas forjas escondidas de Kerradum, ou seja, uma obra singular do mundo contemporâneo. Nenhuma estrutura havia sido erguida em duas ou mais mãos na antiga era, eram tempos difíceis, nos quais era o sangue que regava a terra e a única língua comum era a do ferro estilhaçado.
Ao final da primeira escadaria do castelo, que se estreitava à medida que chegava ao portão principal, já podia ser visto uma cópia do tratado de Manthcinna, outrora feito pelos antigos deuses às futuras gerações.
Isole do mundo material o poder de criar a vida e cessará a sede da morte.
Divida o reino dos homens e permita que suas palavras cheguem mais longe que o som de suas lâminas.
Encontre a paz com aquele que pintou a terra com o sangue antigo para que as árvores não sejam manchadas.
Mantenha seus corações puros e unidos contra aqueles que lutam pelas causas do poder.
O tempo será inimigo de todos e a história eternizará os merecedores.
Das águas escuras até a lua vermelha, a ira dos homens significará a ira dos deuses e a terra outrora dada voltará à posse daqueles que a renegaram repleta de morte, porque somente por meio da morte poderá ser criada a vida.
A pedra era tão grande que até mesmo Elik, o gigante jovem de cabeça chata e de olhos desalinhados, não tivera dificuldades em percebê-la. Era sua primeira vez em uma festa como aquela e os gigantes sempre encontravam dificuldades em qualquer tentativa de se adaptar a novas culturas, afinal, o ouro dos gigantes valia tanto quanto o dos humanos, e não passavam muitos seres de passos tão largos por aquelas terras.
- Enfim um castelo nas devidas proporções – enfatizou Elik a Daburn, um velho conterrâneo ranzinza já acostumado aos eventos da realeza, referindo-se às dimensões incomuns da entrada e dos elementos do salão de festas que acabara de adentrar.
Era um salão de dimensões tão grandes que havia certa dificuldade em se enxergar a mesa dos nobres ao fundo. O leve cheiro de óleo queimado vindo das tochas dispostas ao longo das paredes também eram sinais de novos tempos, já que o uso da magia havia sido limitado pelo recente tratado, mesmo que a maioria dos reis que chegassem ao evento soubessem usá-la com certa maestria. O fogo das tochas fazia com que as rochas que cobriam todo o castelo se tornassem ainda mais chamativas. Tinham um brilho não tão latente, mas tão belo que em vezes tinha-se a impressão de se ver refletido em suas faces, ainda que estas fossem tão escuras quanto a própria noite.
- Veja, Daburn, cerveja e carne de urso! – cutucou Elik duas vezes com o cotovelo enquanto caminhavam, antes que apontasse com os olhos a mesa farta à frente da pilha triangular de barris envelhecidos - Se soubesse que ser cavaleiro traria essas vantagens, teria enfrentado aqueles moribundos ainda mais cedo – continuou entusiasmado.
Carne de urso era uma iguaria nas terras rochosas de Taldramond, uma carne dura e áspera, que mais pareciam pedaços de couro curtido. Não havia dúvidas que algum dia alguém pensara em utilizá-las como tal, mas se vestir como comida de gigantes não parecia ser algo muito atrativo. Daburn só murmurava positivamente. Sua cabeça pensava que, de alguma forma, Elik deveria ser um bastardo, somente dessa maneira poderia falar tanto. Gigantes são quietos e fortes como a própria rocha, já diziam as velhas amas. Porém, alguma dúvida ainda restava em sua mente. Se Elik de fato fosse um bastardo, com certeza não ganharia os duelos entre seus irmãos. Somente os mais fortes são escolhidos, bastardos são fracos, o filho do antigo rei era a prova, tão fraco que derrubara o trono do próprio pai, pensara ele.
As canecas envoltas de couro costurado e de tamanho bastante avantajado permitiam quantidade de bebida suficiente para aguentar até mesmo as longas histórias que corriam entre as mesas. As bandeiras de cada reino, assim como as iguarias existentes ali, haviam sido posicionadas cuidadosamente entre as mesas para delimitar os lugares de cada comitiva. Bancos maiores para os gigantes, comidas dos mais variados gostos e aromas, nas quais o cheiro dos javalis assados com maçãs se sobrepujava aos demais, além dos diversos presentes vindos dos mais diversos lugares, que iam de jóias a esculturas exóticas em uma mesa não tão grande quanto as anteriores. A troca de presentes era comum entre os governantes, já que simbolizava a partilha da riqueza e da prosperidade.
Apesar do clima de união, eram novos costumes, e a tensão no ambiente era tão clara que saltava entre os olhares que se cruzavam. Nada que realmente preocupasse, já que os reis ali presentes eram todos filhos da guerra, representantes da era antiga, na qual as raças lutavam incessantemente pela glória de seus deuses. Tempos que moldaram lendas e as escondidas histórias contadas nos livros. Gerar uma confusão ali e ser confrontado por um deles era algo que realmente fazia com que seus convidados pensassem seriamente em tomar aquela caneca de bebida a mais, ainda que o álcool, assim como a água, sempre encontrasse seu caminho.
- Sente-se aqui, mãos delicadas, e nos conte as maravilhas que mãos tão pequenas podem fazer – exclamou Elik, gargalhando em seguida, quando agarrou o braço da dama de vestido verde em detalhes em couro polido cuidadosamente trançados, que passava apressada em suas costas balançando seus cabelos beijados pelo fogo. Seu tom de cabelo era tão intenso quanto o olhar dirigido ao gigante que a olhava de cima, apesar de sentado.
- Temo que tenha bebido demais, meu senhor, o que me fará relevar sua condição, mas se não soltar meu braço agora é provável que tenha que segurar sua bebida com a outra mão – ameaçou Lis, a princesa humana de Audar, provocando risos dos demais gigantes ali sentados, menos de Daburn, que imediatamente se levantou e levou o punho fechado ao rosto de Elik, derrubando-o ao chão e chamando a atenção apenas da mesa dos cavaleiros ao lado, já que a melodia vinda dos alaúdes e vielas de roda, unida às conversas destemperadas do salão fazia com que até um tiro de canhão passasse despercebido.
- Desculpe, minha senhora, jovens sendo jovens... Não ligue para as palavras de um menino tolo – interrompeu ele visivelmente nervoso, enquanto os sorrisos iam fugindo dos rostos dos demais ao perceberem a gravidade da situação.
- Sem problemas, senhor...? – questionou a princesa, chacoalhando o braço como se tentasse reajeitar a manga de suas vestes.
- Daburn, senhora, Daburn cabeça rachada, da cidade cinza... – continuou ele levantando o corpo ainda desorientado de Elik pela gola de linhas grossas. De fato, ao se abaixar era possível ver uma cicatriz que percorria o topo da testa até provavelmente sua nuca em meio aos seus poucos cabelos acinzentados.
- Apenas se certifique que seu amigo não o fará novamente, senhor Daburn, há várias pessoas aqui que teriam uma resposta bastante diferente da minha, se é que me entende... – alertou Lis, dando um sorriso inesperado ao velho gigante.
- Ele não é, senhora.... - disse ele limpando a garganta arranhada. - Digo, sim, senhora, essa será a última vez... – finalizou enquanto se ajoelhava perante a moça, que o cortejou e se virou, continuando seu caminho em meio ao salão – Acorde, imbecil, viu o que fez? – esbravejou ele dando tapas na cabeça de Elik, que recobrara a consciência aos poucos, levando a mão ao rosto. Havia sido um soco certeiro em sua mandíbula, provavelmente agora teria dificuldades com aquela carne que havia acabado de pegar.
- Onde está a pequenina? – indagou Elik.
- Foi embora assim como a foice que já estava posicionada em seu pescoço - Às vezes nem mesmo bons músculos sobrevivem a um cérebro ruim, pensara ele dando o último gole de cerveja em sua caneca e limpando a boca em seu antebraço. – Aquela é a filha de Kynius, idiota. Se ele estivesse aqui, sua cabeça estaria sobre essa bandeja, entendeu?
- Nenhum homem está à altura de me enfren... – Elik mal havia acabado de falar, quando Daburn o pegou pela nuca e jogou sua cabeça contra a mesa de madeira maciça. Elik apagou no momento em que sua cabeça tocara a superfície, acompanhando o som das trombetas que anunciavam a chegada dos reis aliados.
Cavian
Kynius, o temido rei humano de Audar, estava entre eles, dotado de uma força bruta incomum aos humanos, assim como suas habilidades com a espada e com as artes místicas. Geralmente, tanto o manejo da lâmina quanto o da magia eram incompatíveis com uma única vida, ainda mais para uma vida tão curta como a dos últimos filhos de Amber.
Ao longo dos anos, algumas alianças haviam se consolidado, mas foi entre os três últimos invernos que haviam formalmente se estabelecido. Os povos aliados tinham o intuito de estabelecer mecanismos para evitar a violação do tratado estabelecido a outrora, ainda que muitos achassem que alguns desses fossem autoritários demais. Entretanto, após o ataque ao reino de Lumeran pelos libertos e com o medo crescente das consequências advindas da violação do tratado, mesmo os mais céticos foram se adaptando aos novos tempos. O tratado era inviolável e todos sabiam disso, um pouco de liberdade para evitar a ira dos antigos deuses parecia um preço justo a ser pago. Antes a ira dos homens do que a dos deuses, diziam os mais fervorosos.
- Prezados reis e cavaleiros de Aldoin, estamos aqui para celebrar a nossa união... – começou Bahamut ao se levantar do mais central dos vários tronos ao fundo do salão, enquanto todo o barulho se transformou no mais calmo silêncio. - Mas também para relembrar que ainda há seres nesse mundo que ainda ousam conspirar contra a paz dos povos. Escondidos e covardes como os ratos que lhe fazem companhia. Há cerca de um ano, Dypsia, Faldram e Darkwaters se uniram a desertores e propagadores de ódio para lutar contra os princípios básicos de nossa sobrevivência, lutar contra um mundo que nossos antecessores e criadores deram suas vidas para preservar, um mundo sem guerras e sem sofrimento, onde a prosperidade certamente florescerá – bradou o rei acima das nuvens com entusiasmo.
Bahamut e Tiamat, da família Suneater, eram os únicos generais dragões restantes do reino de Aquia, tido na antiga era como o reino mais poderoso, que unia a força bélica dos dragões com a natureza metódica dos Aquirianos, seres tão sábios quanto reclusos, que serviam aos dragões desde sua criação. Mais numerosos e de temperamento tão calmo como o vento que soprava nas montanhas de Jizu, os Aquirianos ostentavam suas belas penas em raras aparições nas cidades comuns, chamadas aquelas que abrigavam diferentes povos e culturas como Fisbia.
- Infelizmente, eles precisam ser contidos – continuou o rei dragão, ao olhar fixamente a multidão que o encarava – Ou uma nova era de caos chegará às nossas portas, assim como alertado pelas escritas do tratado. Atacaram nosso coração! – bateu ele firmemente como punho cerrado na mesa enquanto a outra mão também apoiava o corpo arqueado à frente - O mais puro de nossos reinos, uma mensagem de guerra declarada a todos aqueles que, assim como eu, sonham com os dias em que nossos filhos caminharão sem ter que se preocupar com quem irão perder em mais uma guerra sem sentido. Tenham a certeza de que os filhos do sol serão vingados e que o legado de Lumeran permanecerá vivendo por meio de nós. Garanto em nome do tratado e dos criadores que os reinos aliados não medirão esforços para punir todos aqueles que ousem atentar contra a saúde daqueles que não podem se defender. Deixemos nossas diferenças de lado e brindemos àqueles que se foram pelas lâminas impuras e àqueles que vingarão nossos irmãos – bradou enquanto levantava o cálice dourado que uma vez pertencera a seu irmão Monlok, cravejado de pequenas pedras coloridas que brilhavam tanto quanto a alma daqueles que o acompanharam naquele brinde ou quanto os anéis finamente adornados com escritas Aquirianas que ostentava em sua reptiliana mão - Agora peço que todos fiquem à vontade e aproveitem a festa – sentou-se novamente no trono forrado de couro branco dos cervos dos florestas e espaldar dourado, que acompanhavam a longa mesa, enquanto as dançarinas drows em seus finos tecidos, adentravam pela porta do salão, esbanjando a leveza e beleza e se dirigindo ao palco central.
Independentemente de qualquer diferença que tivessem entre eles, a arte vista ali agradaria desde os mais conservadores elfos até os gélidos olhos dos gigantes.
A mesa das ilustres celebridades daquela noite era impossível de não ser notada. As escamas negras que cobriam até o pescoço da cabeça calva do rei dragão e continuavam por linhas salientes das bochechas acinzentadas até abaixo dos olhos âmbar eram contrastadas pelas lâminas policromáticas que cobriam parte do lado direito do rosto de Tiamat, com cabelos longos, lisos e igualmente coloridos alçados ao lado. Esta discutia com Loth, a rainha do reino de Qualim, as origens e significados da dança apresentada diante dos olhos de todos. A aproximação de Tiamat não era nenhuma novidade desde seu casamento com Osian anos atrás, o sucessor do trono e herdeiro da genética privilegiada da nobreza dos elfos da noite. Além de Kynius, Belzog, rei de Volus, Vortmor, das montanhas cinzentas de Taldramond e Melin de Landris, completavam a lista de originários à mesa, como eram chamados os membros das famílias que defendiam os deuses desde os choques das primeiras lâminas, e que se revezavam no poder com o caminhar das eras. Mantinham suas linhagens desde as criações dos primeiros seres daquele mundo e eram tidos por muitos como descendentes do desejo dos deuses na maneira de se comportar e de agir.
Como a luz que ilumina a glória também ilumina o infortúnio, a única cadeira vazia talvez fosse a que mais chamasse a atenção. Iadrin Neniak, considerado o maior conhecedor das artes místicas e talvez o mais prestigiado dos reis humanos, não se encontrava ali. Aquele que dominara técnicas não aprendidas até mesmo entre os longevos Natelurianos e os habilidosos Dypsirianos, não participaria da celebração. Apesar da reparada ausência, os boatos corriam apenas dentro das poucas cabeças sóbrias que se encontravam ali presentes, visto que assuntos impróprios que achassem caminho aos ouvidos poderosos, ocasionalmente gerariam as mesmas consequências que um passo dado à beira do abismo.
Das uniões estabelecidas ao longo dos anos, tanto Bahamut quanto Tiamat tiveram filhos bastardos, tratados com maus olhos entre os mais tradicionais, mas que diplomaticamente eram vistos como as primeiras ações ao encontro do tratado. Se por um lado os dragões que sempre viveram isolados, viam as alianças como uma possibilidade de expansão de controle do reino de Aquia, os demais reinos os vinham como um ganho bélico inestimável e a garantia de um aliado poderoso em futuros desentendimentos que eventualmente viessem a ocorrer.
Os príncipes Aquirianos não lembravam nem de longe os imponentes dragões originários. Se não fossem as marcas dracônicas escondidas sob as densas roupas, poderia se dizer que faziam parte dos terrenos, como os Aquirianos gostavam de chamar aqueles que não possuíam o dom de tocar o sol. Cavian, o segundo dos três filhos de Bahamut, tinha aparência humana advinda de Landris, com seus olhos estreitos e pele amarelada, exceto pelos exóticos cabelos azulados, já Egen, único filho de Tiamat, puxara a genética de Osian, com a pele pálida, quase acinzentada, e as orelhas pontiagudas, apesar do temperamento inquieto, bastante incomum aos adoradores da noite. Ambos trajavam vestes pretas aveludadas sobre o couro igualmente enegrecido, com ombreiras que ostentavam o brasão Aquiriano, penas de raque alongado contorcidas como garras, abraçadas pelo corpo alongado de um dragão esguio, circundando-as em um grande círculo dourado.
- Veja, Egen, não é incrível? Talvez finalmente depois de tantos anos, consigamos encontrar a paz que parecia distante dias atrás... – exclamou Cavian sorridente ao correr os olhos sobre a multidão que agora conversava contagiada entre as mesas, até fixá-los no piso elevado central, o palco onde o reino de Audar agora se apresentava. Estavam em pé, em um dos corredores entre as mesas dos soldados Qualinianos.
- Sinceramente, no que isso nos afeta meu amigo? – indagou Egen. - Com ou sem guerras, Aquia sempre permanecerá no topo desse mundo e você como futuro rei deveria aproveitar mais o que a vida tem a nos oferecer – continuou, apoiando o antebraço nos ombros de Cavian e virando uma caneca repleta de vinho Audariano, enquanto ambos encaravam os gentis movimentos de Lis, que tentava acompanhar até com certo sucesso as hábeis dançarinas de seu reino, em movimentos que davam a impressão de que seus pés mal tocavam o chão. Em seu pescoço, havia uma cruz que lançava seus braços pontiagudos por meio de uma pequena pedra central, tão vermelha quantos seus próprios cabelos, o símbolo de devoção à Deusa Amber, criadora dos humanos e dos seres da Luz, considerada a entidade mais poderosa da antiga era e peça chave para criação do tratado. A filha de Kynius herdara de sua mãe a beleza inconfundível dos Archel, uma das famílias mais importantes de Audar. As lendas Audarianas diziam que os Archel teriam sido a primeira linhagem de humanos criados pela deusa, tamanha a semelhança física, que tinham como principal característica a tonalidade única de seus cabelos, tão avermelhados quanto o sol ao fim da tarde ou da lua em suas noites de luz carmesim. Os olhares dos dois não eram os únicos a repará-la, mas provavelmente eram os mais atentos. Tanto que perceberam quando a princesa humana os encarara ao final da última nota, com um sorriso educado e com passos calmos na direção dos dois, o que acabara com firmeza nas pernas do herdeiro do trono de Aquia e que inundaram sua mente com um completo vazio.
- Fique atento, Cavian, talvez seja a hora de aprender alguns truques – sussurrou Egen entusiasmado, postando-se com os ombros abertos, em contraste ao olhar cabisbaixo de Cavian.
- Ei, príncipe dragão!... Você mesmo, de cabeça baixa... – chamou a princesa enquanto Egen tentava disfarçar o constrangimento de ter sido ignorado.
- Peço desculpas, minha senhora... Não tive o intuito de ser invasivo ou... – respondeu gaguejosamente.
Lis riu disfarçadamente, desviando o olhar para os próprios pés por um momento.
- Mas eu nem disse nada ainda, se eu fosse ligar para os olhares bobos de homens teria que evitar eventos como esse, não acha? – questionou Lis com um sorriso que reconfortara sua alma.
- A sabedoria esperada de uma bela princesa... - interrompeu Egen, retomando o planejamento inicial. – Meu amigo pode ser um pouco tímido, mas independentemente de sua reação inapropriada, gostaria de dizer que estava esplêndida – segurou a mão estendida de Lis e a beijou sem que os olhos deixassem de encará-la.
- Muita obrigada, meu lorde, mas tenho certeza que não era nem de longe a melhor sobre aquele palco – respondeu a princesa gentilmente - Na verdade, só vim chamar Cavian para me ensinar alguns passos de sua terra natal, a não ser que vossa alteza se contente apenas em assistir.
- Acredito que eu possa lhe servir melhor nesse quesito, princesa... – insistiu Egen.
- Sim... – disse ele em um sopro de coragem - Quero dizer, não... Me... Me desculpe, princesa... Seria um prazer acompanhá-la caso desejasse... - continuou ele rapidamente, respirando fundo como se faltasse ar aos seus pulmões.
- Ótimo! – exclamou a princesa com um novo sorriso – Mesmo assim, obrigado, meu príncipe – dirigiu-se a Egen com um cortejo e estendeu o braço a Cavian logo em seguida, que demorou alguns segundos para assimilar o que havia acabado de fazer, mas que se viu sendo puxado por Lis para o meio do salão sob os olhares descrentes de seu amigo.
Se o objetivo de Lis era aprender algo, não havia qualquer dúvida que havia escolhido o pior parceiro pra isso. Cavian tinha vagas lembranças de sua mãe o ensinando como conduzir uma dama, mas estas estavam ainda mais longe que seus pensamentos naquele momento. O sorriso de Lis era tão petrificante que não conseguia sequer prestar atenção nem ao som intenso que ecoava pelo salão, em um momento tão raro que desejara que nunca acabasse.
- Pois então, meu príncipe, não imaginava os dragões não falassem a língua comum... – debochou Lis do silêncio de seu parceiro de dança.
- Sim, me desculpe... Estava com a cabeça longe, minha senhora.
- Minha companhia é desinteressante para vossa alteza? – questionou a princesa abraçando a cabeça dele quando a música se tornara lenta.
- De forma alguma, princesa... O problema é justamente ao contrário, como pode ver, minhas habilidades com os pés são tão boas quanto com as palavras, então... Bem... Imagino que seu arrependimento tenha sido duplo... – constatou com os nervos ainda trêmulos, imaginando se a vergonha que sentira até então já não tivesse sido suficiente.
- Imagine... Talvez a verdade seja um dom raro entre essas mesas, meu príncipe – sussurrou Lis espremendo os olhos. – Afinal, é mais fácil se esconder atrás de máscaras do que admitir nossas próprias fraquezas, não é mesmo?... Penso sempre que situações difíceis e inesperadas podem ser portas para novos caminhos – continuou sorridente enquanto o conduzia, fazendo com que ele acompanhasse seus passos como se fosse controlado por pequenas e finas cordas de marionete.
- Obrigado pela gentileza, princesa, talvez seja ingrato da minha parte presenteá-la com tamanha apatia, mas prometo tentar me portar a altura de vossa companhia.
- Esqueça então e começaremos novamente... Acredite ou não, essa é minha primeira festa fora de Audar desde a morte de meu irmão... – disse Lis, fazendo com que as palavras novamente lhe fugissem.
- Eu soube, vossa alteza, meus sentimentos... – disse em tom de consolação enquanto se lembrava da morte de Nox tempos atrás. Era considerado um herdeiro exemplar, forte e diplomático como um bom líder deveria ser, mas que fatalmente fora acometido pela loucura segundo os relatos que chegaram até ele – Haja naturalmente e fale o mínimo possível, pensara ele consigo mesmo, tentando medir suas próprias palavras no intuito de evitar que a conversa tomasse algum rumo inesperado.
- Fique tranquilo, já faz um tempo. Ele não iria gostar que eu vivesse em tristeza por sua morte, Nox era a alegria em pessoa e possuía um coração de ouro. Com certeza a melancolia é o último sentimento que ele gostaria que qualquer um tivesse ao lembrar dele.
- Entendo, sempre ouvi coisas boas ao seu respeito, vossa alteza, apesar do ocorrido...
- Não me entenda mal, meu príncipe, mas Nox não enlouqueceu como dizem... No mesmo dia pela manhã nos encontramos e ele estava tão radiante quanto os primeiros raios do sol. Agora esse que nos vigia escorado no pilar à esquerda, foi criado por ele desde a morte de minha mãe e mesmo assim teve coragem de atravessar uma espada em seu peito, em nome de um rei que vive de aparências.... Infelizmente o poder corrompe aqueles de alma fraca – suspirou a princesa, atraindo os olhos de Cavian a Rize, o mais novo dos príncipes de Audar, também herdeiro do tom de cabelo dos Archel, que no momento apreciava a boa e velha cerveja Audariana. O olhar inexpressivo do príncipe de Audar continuou mesmo enquanto ele o encarara. Um semblante de alguma forma ameaçador, , mas nada que se comparasse ao de seu pai. Com o tempo ele havia perdido a sensibilidade de se importar com aquilo.
- E os pobres de coração, minha princesa... – completou ele, enquanto se voltava para a princesa sorrindo. - Mas faria algum sentido inventarem tal boato e tirarem a vida de seu irmão enquanto planejavam selar o maior tratado de paz desde a era antiga? Não me entenda mal, minha princesa... Não que duvide de sua palavra, mas os reis presentes aqui hoje têm buscado uma condição nunca antes alcançada... Algo que, bem... Provavelmente cessaria em definitivo os conflitos entre os povos, assim como era desejo dos antigos deuses... – Fique quieto, pensou apressadamente enquanto as palavras que se sucediam conseguiam ser piores que as anteriores - No fim... Digo... O que quero dizer é que talvez me falte compreensão para conseguir ver o sentido de tudo que me disse... Caso, de fato, seja o pensamento de vossa alteza... – continuou ele, logo se arrependendo pela sinceridade exacerbada. A companhia de Lis o havia feito se desleixar de uma forma perigosa.
- Existe alguma distração melhor do que a aparência do bem, meu príncipe? – indagou ela. - Pense bem... Um fazendeiro que alimenta seu rebanho só o alimenta porque tem interesse em seu abate, e esse mesmo rebanho, que tem em sua imagem a melhor hora de seu dia, o recebe feliz, o tratando como seu salvador, afinal, o que fariam se ele não viesse? Talvez até nem questionem suas sentenças pelas migalhas que receberam em vida... conheço Nox e sei que ele nunca acataria ordens contrárias aos seus princípios e nunca desperdiçaria sua vida da forma como aconteceu. Mas ainda que fosse só isso, atribuir loucura a alguém seria uma forma ainda melhor de deslegitimar qualquer informação que viesse a vazar e que o tivesse como fonte, não acha? Uma história perfeita para distrair aqueles que não estivessem em seu convívio... – concluiu, quando o foco do seu olhar fugiu por alguns instantes sem que ela pudesse perceber.
- Uma bela distração, sem dúvidas, minha senhora. Ainda assim, mesmo que acreditasse em você, como teria certeza de que é seguro compartilhar essas informações comigo? – questionou ele silenciosamente e discretamente no ouvido esquerdo de Lis, fazendo com que o frio tomasse sua espinha ao pensar em como as falas dela poderiam repercutir diante de ouvidos errados.
- Não tenho, meu senhor - respondeu Lis em tom tão baixo quanto o de Cavian - Mas entre as poucas pessoas que têm algum acesso às informações da realeza e que talvez tivessem a intenção de fazer algo a respeito, imaginei que você e sua irmã pudessem ser boas opções, ainda mais pela fama metódica dos Aquirianos e a lealdade herdada pelo sangue de sua mãe... Mas dentre todos os meus planos, uma dança entre jovens príncipes é tão comum que passaria despercebido até entre os mais hábeis olhos. Seu tom silencioso enquanto aproxima seu rosto do meu inclusive dá a impressão que esteja me cortejando – continuou ela enquanto ele se afastava timidamente com as bochechas ruborizadas, arrancando outro sorriso da princesa, que parecia se divertir com a situação.
- Me desculpe, minha senhora... – justificou-se novamente tentando disfarçar a vergonha que sentira. Não sabia o que pensar ou como agir, sua insegurança parecia tomar lentamente seu corpo ainda que relutasse. – É que não sei se conseguirei atender suas expectativas – completou ele em tom gentil no mesmo momento em que quase pisou novamente no pé da princesa.
- Suas atitudes revelam mais do que pensa, sabia?... De qualquer forma, quanto mais olhos curiosos estiverem atentos, maiores serão as chances de evitarmos qualquer ação que estejam planejando. Agora, com a aproximação dos reinos, é bem provável que eu possa comprovar minha intuição nos próximos bailes que virão e você possa me ter como uma amiga ao invés de uma lunática.
Cavian assentiu tentando pensar como concordar com a primeira parte sem que concordasse com a segunda.
- Acredito que tenhamos que continuar depois, vossa alteza, seu pai parece ter assuntos a tratar com você... – disse ele desviando o olhar em direção à Kynius, que se aproximava dos dois ao término da música, enquanto Cavian cortejava a princesa em agradecimento à dança.
Kynius era visivelmente um humano fora dos padrões normais. Apesar de seus cabelos brancos e a recente cicatriz que percorria o meio de seu olho esquerdo, atribuída à negligência com a forja, um dos conhecidos hobbies do rei, ele apresentava um porte físico que rivalizava com os Orcs. Sua presença era imponente, digna de um rei, e seu manto azul com detalhes prateados ostentavam o símbolo do celeiro daquele mundo, as hélices ao vento dos moinhos de Audar. O reino, apesar de não possuir poderio bélico tão imponente como outros ali presentes, tinha sua importância estratégica devido à sua produção de alimentos, que abastecia grande parte dos reinos pelo comércio das cidades comuns. Assim era considerado quase intocável, já que um ataque a Audar representaria um ataque à própria existência dos povos.
Kynius não consideraria a aproximação de sua filha a um dos príncipes dos dragões de todo mal. Os dragões costumavam ser generosos em suas alianças e as histórias diziam, inclusive, que o casamento de Melin com Bahamut só teria ocorrido devido à necessidade da reconstrução de Landris, após a derrota do rei Oda na era antiga, o que teria deixado o terceiro reino humano, além de Audar e Tessan, completamente dizimado.
- Príncipe Cavian... – disse Kynius inclinando levemente a cabeça em gesto de cumprimento.
- É um prazer conhecê-lo, meu rei – respondeu Cavian, ajoelhando-se aos pés de Kynius em sinal de respeito.
- Não se apegue às formalidades, meu caro – disse ele sorrindo gentilmente a Cavian.
- Meu pai, Cavian, estava me contando algumas histórias sobre seu povo... – disse Lis em tom formal, enquanto olhava para seu pai. De fato, não parecia tão entusiasmada com sua chegada, mas depois do que Cavian acabara de escutar não era de se admirar tal comportamento, por mais que seus gestos fossem abafados pelos atos protocolares entre ele e o rei.
- Vindo de lá tenho certeza de que são magníficas, como tantas que já conheço. Tenho seu pai como um verdadeiro irmão, então me faz muito gosto que Lis possa desfrutar de tal companhia – exclamou o rei com entusiasmo contido.
- Sua filha possui uma destreza exemplar, vossa alteza – observou Cavian.
- Típica dos originários de Audar – respondeu o Rei com um olhar orgulhoso à filha, ainda que esta correspondesse com um sorriso alongado não acompanhado pelo próprio olhar. – Infelizmente, temos que partir, vossa alteza. Há assuntos a tratar em Tessan, mas fico feliz em vê-lo, meu jovem, percebo que Aquia tem um sucessor à altura de seu pai.
Ele assentiu agradecendo.
- Até a próxima oportunidade, meu príncipe – disse Lis, curvando-se em cumprimento ao seu novo confidente.
- Que seja em breve, vossa alteza – disse ele tomando sua mão e beijando-a, enquanto a princesa deu uma sutil piscadela em agradecimento em um breve momento em que seus olhos se encontraram.
Um gesto sutil que significava que talvez a confiança de Lis havia sido depositada sobre a pessoa certa, mas que só o tempo poderia confirmar. Ainda assim, aqueles últimos acontecimentos dominavam a mente de Cavian por completo. Não era possível que Kynius soubesse de tamanha desconfiança, parecia apenas um pai orgulhoso e gentil, mas percebia de algum modo que havia algo errado. Havia sentido tanta sinceridade nas palavras de Lis que seu coração se recusava a aceitar que fosse apenas um devaneio. Estaria ela trilhando o mesmo caminho de seu irmão? Sua angústia era tão legítima quanto o comportamento do rei. Talvez devesse olhar mais atentamente aos detalhes. Talvez Yuki pudesse ajudá-lo.
Yuki

A primogênita de Bahamut se encontrava em uma análise apurada sobre de qual região pudesse vir aquele vinho com traços tão adocicados. Certamente de mãos élficas – pensara, ainda que soubesse que ninguém ali fosse admitir. Os seus principais rivais estavam presentes, mas aquele vinho com certeza não vinha de Audar. Talvez uma consulta aos registros de recebimento pudesse dar a pista que precisava. Ninguém ligava para papéis velhos de qualquer forma. Yuki possuía interesses tão exóticos quanto seus cabelos longos em tons de prata mesclados entre tons mais escuros e mais claros que pousavam gentilmente sobre suas costas. Não fosse a presilha acobreada de penas que prendia seu cabelo, o tom de seu vestido fazia com que tivesse uma aparência quase monocromática. Uma bela dama de prata, não havendo nenhuma dúvida de que havia herdado a beleza de sua mãe. Seus olhos levemente puxados eram traços dos Inazuma, assim como sua curiosidade em descobrir até mesmo de onde haviam vindo aquelas uvas. No horizonte o vinho bom e o ruim se encontrarão, diziam os velhos sábios de Aquia, mas Yuki gostava tanto dos enigmas que conseguia enxergá-los até mesmo naquela taça. Os elfos não estavam ali, claramente somente seu vinho participara da festa, então quem o trouxe? Quem teria tal acesso? Vinhos bons como aquele não poderiam ser comprados em feiras das cidades comuns. Eram vinhos nobres, talvez como um agrado a algum dos reis presentes. Sua mente estava imersa de teorias, até que seus pensamentos foram interrompidos.
- Ei,Yuki, acorde! – dizia seu irmão ao seu lado furtivamente. Não que qualquer presença passasse despercebida aos ouvidos aguçados da princesa, mas certamente suas teorias pareciam mais excitantes do que uma festa de nobres interesseiros.
- Sim, faísca, do que precisa? – respondeu ela em tom carinhoso a Cavian, enquanto abaixava sua caneca.
- Já pedi que não me chame assim em lugares como esse, sabe como as pessoas reagem... – disse ele em tom tão baixo quanto repreensivo enquanto se posicionava ao seu lado, fingindo estar interessado em alguns doces caramelizados de figo que se estendiam até o outro lado da extensa mesa sobre o mezanino lateral. Estavam atrás da borda maior, de onde ainda era possível ver o salão abaixo deles.
- Com certeza várias pessoas aqui estão escutando nossas conversas – ironizou ela olhando para trás em direção aos convidados onde as risadas e as conversas ainda continuavam de algum modo, mesmo com o som amplificado das músicas que corriam entre as mesas como o próprio vento.
- Enfim, não é esta a questão... – continuou o príncipe, retomando a conversa. – Precisava de uma opinião sua. Você acha que existiria alguma possibilidade de algum acontecimento que tivesse o intuito de fazer o bem, e que talvez de fato o fizesse, pudesse servir de fachada para algo completamente ruim? Digo, consigo pensar em algumas pequenas possibilidades, mas faria algum sentido para você se isso acontecesse em grandes proporções? Mesmo que essas mesmas pessoas tivessem tanto poder que nem precisassem esconder suas intenções?
- Hmmm... – pensou ela por alguns segundos. - Ainda que eu precise de um certo contexto para tirar a conclusão que procura, há somente dois jeitos bem assertivos de esconder ou minimizar algo... A primeira é criando um fato pior que tire a relevância daquilo que se pretende esconder... – disse ela saboreando o último gole de vinho enquanto pedia um momento com a outra das mãos – Ouuuu... Justificando esse ato por meio de algo extremamente benéfico para um determinado grupo de interesse. Pense que no fim, as pessoas em sua maioria só querem estar melhor que aquelas que estão ao seu lado, meu irmão, ainda que elas estejam em situações inegavelmente deploráveis... Bom, não sei se respondi sua pergunta, mas fiquei curiosa para saber dos detalhes... – respondeu baixinho em tom interessado, voltando os olhos a seu irmão.
- A princesa de Audar... Bem, ela veio até mim com uma história um pouco estranha... Dizendo que talvez todo esse tratado pudesse esconder outras pretensões. Você acha que precisariam disso para que pudessem governar? Caso o interesse fosse poder por exemplo, aqui eles já teriam a maioria dos mais fortes exércitos, não? – devolveu o doce que acabara de pegar, aparentemente tentando simular uma desculpa para estar onde estava, ainda que o sorriso de canto de boca de Yuki, enquanto corrigia a posição da guloseima retornada por seu irmão, indicasse que a ação não surtira nenhum efeito.
Aliás, não era como se Cavian tivesse feito qualquer bagunça, eram tantos doces enfileirados e a mudança tão pequena que somente os olhos encrenqueiros de Yuki poderiam perceber tal ato. Uma das poucas coisas que Cavian conseguia utilizar contra o quase inabalável estado de espírito de sua irmã.
- Você pensa no poder como a maioria, meu irmão, mas posso dizer que há alguma verdade na desconfiança dela. Os maiores reinados se constroem sob técnicas sutis de dominação. Os antigos deuses, por exemplo, governavam pela força, mas é muito mais estável e sustentável que se governe pela paixão. Querendo ou não, reuniões como essa promovem os reis como heróis e isso gera uma submissão mais forte do que o próprio medo. As pessoas dariam a vida para salvar seus heróis, mas dificilmente a dariam a um tirano. É um poder grande a se ter nas mãos... Mas ainda que concorde parcialmente, não consigo ver na atual situação nenhuma ação que possa ter resultados a curto prazo. Assim como bons vinhos, as imagens de grandes heróis levam tempo para serem construídas... - explicou a princesa em tom sereno.
Yuki, em alguns momentos, tinha uma postura tão elegante quanto de sua mãe. Não à toa era admirada pelos Aquirianos, que a tinham como principal herdeira do trono, ainda que se tratasse de um acontecimento irrealizável.
- Lis acha que Nox foi morto por descobrir algo e não porque ficou louco, e que isso teria a ver com o fato de ter descoberto algo sobre essa tal coisa que mesmo ela ainda parece sequer saber o que é... – sussurrou Cavian.
Ela sorriu sutilmente, encarando-o nos olhos.
- Isso sim é interessante, faísca... – exclamou ela apontando o dedo indicador ao irmão – Veja só, antes de me interromper em meus pensamentos, havia pensando sobre a razão que levaria vinhos élficos chegarem até aqueles barris... – observou ela apontando para os barris de carvalho escorados nas paredes ao fundo - E por mais que isso não faça qualquer sentido, pensei em todas as vezes que vi a política encontrar um meio para atender seus desejos - continuou ela, novamente enchendo a taça com o vinho licoroso - Sei que pensa que a princesa possa ter o mesmo fim do seu irmão Ian, mas não descarte as possibilidades e nem se encante pelas doces ações dos nobres que aqui estão. Todos eles são movidos por seus próprios interesses. No xadrez da política, quem ganha é aquele que consegue agir primeiro e prever os movimentos do seu oponente. Se de fato o que a princesa disse for verdade, a morte do príncipe com certeza esconderia algo grande e a ausência de Iadrin desse jantar significa ou que ele se tornou uma vítima de mais uma ação dos rebeldes, ou que ele descobriu algo que ainda não percebemos. De qualquer forma, já são dois indícios incomuns para um mesmo dia, o que faz com que a história da princesa não seja tão estranha quanto parece.
De fato, Iadrin não estava lá, mas não se atentara ao fato de que aquilo pudesse ser estranho de certo modo, talvez estivesse tão focado em sua conversa com Lis que esquecera que inclusive Kynius se despediu dizendo que iria a Tessan. Mesmo que acostumado, Cavian ainda era surpreendido com o fato de Yuki conseguir observar tantas coisas ao seu redor e juntar tantas informações com tanta facilidade, mesmo concentrada em uma caneca de vinho. O sentimento de dúvida de outrora foi tomado por uma felicidade que não sabia se vinha do fato de achar que a princesa estivesse saudável ou da possibilidade de reencontrá-la, ainda que o fato em si fosse preocupante. Sorria sozinho em meio ao seu pensamento disperso.
- Pelo menos para alguém a festa parece ter sido proveitosa – Yuki direcionou um sutil sorriso malicioso ao irmão ao vê-lo tomado pelo entusiasmo.
- Não seja tola, Yuki – resmungou Cavian rapidamente, franzindo o cenho - Foi apenas uma conversa.
- Sei... Está quase na hora das lutas, pelo que disseram Uruk é que irá enfrentar Cusgar – disse ela mudando de assunto ao perceber o desconforto do irmão. Não que se importasse, aliás, era um de seus principais divertimentos, mas a luta que estava por vir era interessante demais para deixar de se observar.
- Uruk não teria chance, Cusgar nunca perdeu... – observou Cavian finalmente enchendo a boca com o primeiro petisco que vira em sua frente.
- Mas também nunca enfrentou um oponente desse porte meu irmão. De fato, caso os reis não mexam seus dedos, talvez o ambiente confinado não o favoreça. O tronco de Uruk é muito largo assim como seus braços. Acho que ele teria dificuldade contra um oponente que encurtasse a distância, como aparentemente seria fácil de fazer naquela arena... Talvez você é que devesse desafiá-lo ao invés de Uruk, seria interessante avaliar como tem evoluído... – sugeriu ela em tom sério e pensativo, enquanto analisava as possibilidades.
- A única que teria chance contra ele é você, minha irmã. Por que não segue seu próprio conselho? – respondeu Cavian, virando-se para olhar a entrada de alguns humanos vestidos com roupas largas escuras, que iniciavam as marcações para uma pequena arena improvisada onde anteriormente haviam ocorrido as apresentações das danças. Os símbolos da cabeça de leão em tom dourado estampados no centro de suas vestes indicavam que eram criados daquele castelo. Se aquele castelo pode se erguer, não havia dúvidas de que era graças aos seus leões encouraçados que haviam lutado por aquelas terras anos atrás.
O piso central levemente elevado facilitava a visão de todos, tanto das mesas quanto dos mezaninos laterais que corriam todo o salão e onde estavam dispostos os membros da nobreza e seus convidados mais próximos.
- Nada que eu faça irá mudar minha condição, meu irmão, sabe disso – respondeu ela se dirigindo ao limite do mezanino acompanhada por Cavian.
- Os reis não duram para sempre, você com toda certeza deveria saber disso mais do que ninguém - completou Cavian enquanto se inclinava, apoiando seus cotovelos no parapeito e entrelaçando seus dedos em postura atenta ao que estava por vir.
- Até lá talvez minhas pretensões tenham mudado... – concluiu ela em tom indiferente, também voltando seus olhos à arena, enquanto as trombetas anunciavam o início das batalhas.
Uruk
As arenas de batalha eram uma celebração típica de vários povos, uma forma de provar o título de poder. Os povos das montanhas cinzentas eram particularmente adoradores dessa arte. Suas lideranças acompanhavam o festim dos corvos que se deleitavam sobre os desafiados derrotados, no qual qualquer um que tivesse a coragem de apostar o jogo final poderia se tornar rei. O mais forte deve liderar, a imagem de um líder poderoso inspirará seus exércitos para a vitória, clamavam. Não que não houvesse verdade naquelas palavras, mas a força de um líder não era medida só por bons músculos. As palavras certas haviam derrubado ao longo da história muito mais exércitos do que boas lâminas, mas entre estes, poucos davam valor às escritas antigas.
Cusgar, o guerreiro escolhido de Bahamut, era guardião de Blackhelm e parecia de alguma forma fazer parte do próprio castelo. Tinha um porte tão grande quanto o de Kynius, mas não tão alto quanto o dos dragões originários, ainda que a diferença fosse pequena. Nunca ninguém o vira sem sua armadura, que era composta por escamas largas que se sobrepunham umas sobre as outras, brilhando tanto quanto as rochas enegrecidas da edificação que o circundava, mas que era certamente composta por Trilium, o segredo esculpido e aprimorado nas forjas beijadas pelo fogo das montanhas de Kerradum desde o início dos tempos. Nada era mais valioso naqueles tempos, talvez nada fosse mais temido pelos deuses da criação. Seu martelo, que trazia marcas de batalhas de outrora, arrastava-se no chão enquanto se dirigia à arena e era tão grande quanto seu próprio portador. O som do arrastar do metal contra as pedras era quase como um grito de morte, ainda que fosse impossível que alguém lutasse naquelas condições. Impenetrável para um bom duelo festivo, mas em um combate de alto nível a velocidade era tão importante quanto a força do oponente.
Aquela noite, com um evento como aquele, teria que ser especial. Talvez por isso, Uruk, filho de Belzog e herdeiro do trono de Volus, fosse o desafiante. Um pouco maior até mesmo que Cusgar, Uruk era a contemplação da força bruta. Sua pelagem arroxeada e os tons de vermelho que cobriam sua face intocada indicavam que aquela era uma criatura nascida para a guerra. Seu status como general dos exércitos de Volus comprovara isso. Ao contrário de Cusgar, não vestia proteções, apesar de sua aparência indicar que a sua pele dificilmente seria atravessada por qualquer lâmina que o atingisse, tanto que, diferentemente da maioria dos guerreiros de seu reino, não possuía cicatrizes, exceto por um rasgo reto que cruzava seu peito, feito pelo próprio Belzog quando ainda era jovem. Um titã de força bruta que se encaminhava na direção de Cusgar empunhando sua Nangu em uma das mãos, um tetsubo de bronze, forjado entre as pedras derretidas das montanhas cuspidoras de fogo da terra em que nascera, avançava à arena sob os aplausos fervorosos da multidão. As apresentações que envolviam príncipes sempre eram mais formais do que espetáculos em si, mas aquele parecia não ser o caso, com certeza ambos eram adversários formidáveis, ainda que duvidassem que Cusgar ganharia do príncipe mesmo que ele de alguma forma pudesse fazê-lo.
Ambos se posicionaram ao centro da arena, aguardando o sinal do juiz de partida que se encontrava posicionado a alguns metros, enquanto a maioria tomava certa distância. O perigo era iminente e os desafiantes inspiravam um certo sentimento de temor. Uruk abriu os braços e rugiu, arrancando um susto dos mais desatentos. Já Cusgar permanecia em sua posição original, travando ambas as mãos na haste de seu martelo. Por seu elmo, só era possível ver seus dois grandes e esbranquiçados olhos.
Assim que o juiz fizera o aceno, o primeiro ataque veio direto como um aríete. Uruk aplicara um golpe de cima para baixo tão rápido quanto potente, mas que fora contido pela haste do martelo de Cusgar. Por algum momento pareceu até mesmo que não fizera força para deter o golpe, ainda que qualquer percepção de realidade garantisse que fosse impossível. Golpe de sorte, alguns pensaram, a armadura deveria conter algumas travas que o impediam de se ajoelhar, mas em um movimento tão rápido quanto inesperado, Cusgar girou pela direita do corpo de Uruk, manejou o imenso martelo contra as pernas do titã, e arrancou os pés descalços do príncipe do chão e fazendo com que caísse em um baque seco, sob o olhar incrédulo daqueles que aos assistiam.
De onde viera tamanha força? Era impossível que tivesse feito o que fez, não sem nenhuma magia, ou aquele martelo parecia ser mais leve do que aparentava ou aquele que o empunhava possuía uma força digna dos deuses. Não havia palmas e nem falas, todos observavam atônitos o que acabaram de presenciar.
Cusgar não atacou em seguida, moveu-se até o limite da arena em direção aos tronos e esperou que Uruk se levantasse antes de se virar para enfrentá-lo novamente. Nunca se vira tamanho ódio em um só olhar. Como poderia perder para um reles serviçal. Nem sangue nobre ele tem, pensara Uruk. Por um momento inclusive achou que de alguma forma um dos reis poderia estar disfarçado, mas a fama de Cusgar o precedia, mesmo que Uruk relutasse em aceitar. Se Uruk era general do exército de seu reino, Cusgar controlava toda Blackhelm a pedido de Bahamut e tal local não seria dado a um qualquer. Algum segredo escondia e Uruk estava inclinado a descobrir. O elmo, é só arrancar aquele maldito elmo, pensara ele estudando seu próximo ataque enquanto os dois se observavam. Uruk novamente correu rapidamente em direção a Cusgar, deslizou o tetsubo ao chão tentando atingir as pernas do cavaleiro frontalmente. Ele sabia que seria um golpe fácil de defender, mas não estava procurando acertar de fato suas pernas e sim apenas tirar do caminho o martelo de seu próximo ataque. Ainda tinha uma das mãos livre enquanto Cusgar utilizava as duas. A vantagem era óbvia, e suas mãos só precisariam alcançar seu elmo. Não que pretendesse amassar o elmo de Trilium, ainda que sua força provavelmente permitisse, mas se o alcançasse o arrancaria da cabeça de Cusgar com mesma facilidade que arrancaria uma rolha de um cantil. Uruk pulou lateralmente à esquerda depois de Cusgar girar o martelo posicionando a base da cunha próxima ao chão, impedindo seu ataque como previsto. Quando a mão de Uruk estava prestes a alcançar o Elmo, em outro movimento ainda mais rápido que o anterior, Cusgar soltou uma de suas mãos segurou o braço de Uruk e varreu suas pernas em um movimento marcial de raro talento com o corpo do gigante arroxeado ainda no ar, jogando-o ao chão pela segunda vez. Em seguida puxou o seu martelo com apenas uma das mãos e posicionou a cabeça da arma contra o pescoço de Uruk. A multidão em silêncio observava atônita o que acabara de acontecer. Nunca ninguém havia ganhado de um príncipe, não se sabia sequer que era possível. Com certeza Cusgar seria morto em breve por alguns dos reis. Um ato tão corajoso quanto estúpido, até que o silêncio foi rompido pelas palavras de Bahamut.
- Contemplem a força das mãos guardiãs de Blackhelm! – bradou o rei dos dragões se levantando da cadeira de acolchoado vermelho acetinado e apontando sua mão direita a Cusgar. - O príncipe Uruk ainda tão jovem já durou mais do que todos os outros combatentes que enfrentaram Cusgar. Não à toa é aquele que herdará a vontade dos filhos de Volus – arrancou aplausos da multidão, na qual muitos se entreolhavam respirando aliviados, já que tudo parecia correr conforme planejado. Bahamut pareceu controlar os ânimos ali presentes mesmo sob o olhar visivelmente furioso de Belzog, que derretera inclusive a própria taça de ouro que segurava em suas mãos, espantando um pequeno servente que se aproximara dele naquele momento. A presença do rei de Volus era tão aterrorizante que poucos ousavam chegar perto do calor que exalava de seu corpo, não fosse sua aparência semelhante à dos terrenos com seu nariz longo e afilado e do rosto esguio. Apesar do tamanho semelhante ao de Bahamut, era como se o próprio fogo tivesse ganhado vida. Eram inúmeros os contos que descreviam suas ações nas batalhas da era antiga, exércitos dizimados em meio ao calor sufocante, muitos pedindo para que fossem mortos antes de serem queimados vivos, mas contos eram contos e mesmo que fossem verdade, era bastante reconfortante que ele estivesse agora do lado dos votos pacíficos de seus pares, ainda que sua aparência naquele momento contraposse qualquer formalismo - Aproveitem as festividades, meus caros, as batalhas continuam! – finalizou Bahamut, com um novo anúncio das trombetas, abrindo caminho para os representantes de Qualim e Audar, enquanto Cusgar retirava o martelo do pescoço de Uruk estendendo a mão para que se levantasse.
Apesar da gentileza, o príncipe de Volus se negou a aceitar, levantando-se rapidamente do chão de pedras geladas e se retirando do salão sem nem dirigir qualquer olhar ao seu pai. O cenho do príncipe derrotado estava tão franzido que ninguém parecia estar disposto a lhe dirigir a palavra.
Cavian
- Eu disse – vangloriou-se Cavian, dando um pequeno cutucão no ombro de Yuki com o dorso da mão enquanto abria um sorriso vitorioso.
- Tenho certeza que seus olhos são bem treinados, meu irmão, ainda que eu tenha quase certeza que seu palpite tenha sido fruto de mero acaso.
- Pode pensar o que quiser, vitórias são vitórias! – exclamou. - Inclusive deveria seguir mais seu coração, nem todas as decisões podem ser tomadas com base nos números.
- Só as melhores – respondeu Yuki de prontidão. - Seu coração um dia te trairá, Ian. Você, como futuro líder de Aquia, deveria entender que todas as suas decisões terão consequências e que muitas delas serão duras o bastante para que você questione sua própria humanidade. Governos baseados em emoções tendem a gerar tiranos, apesar de confiar que você nunca consiga ter a soberba necessária para tal. – terminou ela arrancando risadas de seu irmão.
- É só uma brincadeira,Yuki, você leva todos os assuntos do reino tão a sério. – completou ele. – Aliás, voltando aos fatos estranhos, viu o que estão falando dos roubos dos tesouros? Acha que pode ser Nymo? – questionou se referindo às comitivas assaltadas no caminho até Blackhelm.
Ainda não se sabia ao certo o montante, já que o assunto parecia ser abafado pelos próprios governantes, mas seria a primeira vez que um assalto a comitivas da alta nobreza ocorrera com sucesso. Nymo era um antigo general de Aquia, considerado um desertor do reino quando Cavian e Yuki eram mais jovens. Também era responsável por lecionar as artes da guerra para os filhos da nobreza, que atraía inclusive os olhares dos próprios reis dragões, dada sua notável maestria. As histórias contavam que havia abandonado seu posto após a invasão de Aquia pelos gigantes do reino cinza, que resultaram na morte de sua família, ainda que isso ainda não explicasse sua deserção. Considerado um dos mais temidos generais da era antiga, Nymo conseguiu fugir e nunca mais fora encontrado. Muitos diziam que ele se juntou aos rebeldes e por isso foram capazes de destruir Lumeran, outros achavam que havia sido morto por Bahamut e que a história da fuga era somente um pretexto para evitar transtornos junto ao seu próprio povo, no qual Nymo ainda era tido por muitos como um herói. O fato era que nenhum rastro seu fora encontrado desde então, nenhum que viesse a público pelo menos.
- Não sei, Cavian, você vê Nymo como nosso pai o retrata? A troco de que ele faria esses roubos? De fato, só alguém com habilidades exemplares para despistar metade dos exércitos que estão aqui conseguiria tal feito, mas o mundo é tão grande e tão cheio de tantas pessoas notáveis que sequer conhecemos... – completou Yuki, pensativa.
- Não acho, por isso gostaria que fosse ele. Das poucas lembranças que tenho dele, lembro que era um sábio e bom homem – respondeu ele em tom nostálgico.
- Talvez o homem certo para se sentar naquela cadeira – apontou com os olhos a princesa, referindo-se à cadeira vazia que seu pai deixara.
- Nosso pai não é tão ruim assim, Yuki, veja o que ele está conseguindo fazer aqui.
Yuki franziu o nariz.
- Você dizendo isso faz com que eu concorde ainda mais com a teoria de sua princesa de cabelos de fogo.
Cavian riu.
- Acho que todos aqueles livros te deixaram um pouco paranoica. Também não concordo com as regras de sucessão Yuki e sei que isso te chateia, mas você sabe mais do que ninguém que eu sou a última pessoa que gostaria de assumir tal posto, aliás, torço todos os dias para que nosso pai viva tanto quanto os deuses permitirem.
- Porque é um tolo – sussurrou Yuki em seu ouvido antes que retomasse sua posição. – Um dia irá entender que nosso pai só pensa em poder, Cavian. Ele e Tiamat não aceitam ser submissos a ninguém, mas ainda não entenderam que o tempo dos dragões já se foi. Ainda há medo pelo poder deles, seria idiota negar isso, e talvez por isso os bajulem como cachorros sem dono, mas no fim eles são só dois velhos dragões abençoados pelos deuses antigos com a dádiva da morte. Ainda agradeço todos os dias por terem permitido que você tenha nascido primeiro que aquele inepto – completou ela se referindo a Malfien, seu meio-irmão mais novo.
Yuki sempre foi a preferida entre os Aquirianos para herdar o trono, ainda que isso fosse impossível. As regras de sucessão previam que somente os filhos homens teriam direito adquirido, sendo o mais velho o herdeiro natural do trono. Yuki era uma menina prodígio, aprendera antes de todos a manejar magia e controlá-la de forma precisa, além de ser uma exímia lutadora e estudiosa de todo conhecimento que Aquia pudera proporcionar. Nada disso seria suficiente. Suas qualidades em relação aos seus irmãos eram imensas, mas independentemente do que fizesse, sabia que nada iria mudar. Se provar melhor que seus irmãos talvez pudesse soar egoísta, mas era uma forma de demonstrar que tudo o que tivesse ao alcance dela teria sido feito e assim ser sempre uma sombra para que Cavian pudesse ser o melhor de si. Ele sabia que tinha que acompanhá-la. Não poderia descansar sabendo que Yuki não poderia alcançar seu sonho mesmo que fizesse de tudo para isso. De alguma forma sabia que não podia falhar.
- Talvez os deuses tenham errado em seu julgamento – disse ele desesperançoso.
- O tempo é sábio, meu irmão. Eles permitiram que nascesse antes de nosso querido irmão por alguma razão. Não desperdice a chance que foi lhe dada, muitos dariam a vida para estar em seu lugar – completou Yuki, retirando-se em direção aos aposentos – Aliás, que bom que Egen não está com você, você parece mais... Confiante – disse ela se voltando novamente para as escadas.
Tudo parecia calmo e sereno. A música continuava e os soldados dançavam desengonçados em meio às hábeis dançarinas. O álcool de fato fizera seu trabalho. Aquela cena de povos tão distintos festejando entre si parecia tão real. Talvez a desconfiança de Lis e Yuki fosse exagerada, talvez finalmente pudessem, depois de tantos anos, viver sem preocupações. Nem a ameaça dos rebeldes minava seus pensamentos, ela seria contida em alguma hora, pensara ele, afinal, os mais poderosos guerreiros de Aldoin estavam ali e mais outros se juntariam com o passar do tempo. Seu coração se reconfortou por um instante enquanto os ventos gélidos da incerteza insistiam em correr noite afora.
PRELÚDIO DA TEMPESTADE
Cavian
Na sacada de um dos penúltimos quartos de Blackhelm, Cavian aguardava ansioso. Muitas cartas de papéis amarelados e selos uniformes haviam viajado pelas asas duplas dos Fuseluns, pássaros de bico alongado e asas duplas usadas nos novos tempos. As viagens até Audar eram longas, mas sempre retornavam com palavras perfumadas pelas flores do campo. Depois de meses, naquela noite em Fisbia, era a chance de finalmente reencontrá-la. Não discutiram sobre a conversa que tiveram desde a última dança. Lis não tocara no assunto e ele tampouco, desde o banimento da magia, os mecanismos de comunicação existentes haviam se tornado pouco seguros. Saudades daquelas malditas pedrinhas, pensara ele, referindo-se às pedras de comunicação utilizadas antes da restrição. Tempos sem magia eram tempos sem mordomias e facilidades e a impressão que se tinha é que haviam voltado décadas atrás. Um mal necessário para que se evitassem mais tragédias. Mesmo depois de meses e com toda a força dos reinos aliados, os rebeldes autodenominados libertos não haviam sido contidos. Escondidos entre as brumas e as florestas, não se sabia ao certo sua origem ou pretensões, mas a sensação de insegurança era clara entre os becos e bares. As alianças precisavam prosperar, era necessário mostrar força ao povo, mostrar que eles poderiam encontrar segurança nas mãos daqueles que prometeram protegê-los.
Apesar disso, Cavian se mantinha de olhos abertos como prometido, mas infelizmente ou felizmente não haviam fatos novos que pudessem levantar suspeitas, a não ser o sumiço misterioso de Iadrin naquele mesmo dia. O desaparecimento do rei de Tessan ajudava a piorar a sensação de insegurança. Se o maior mago daquele mundo não se opusera contra as forças obscuras, quem poderia? Novas medidas haviam sido impostas para contenção de violações. Prisões, interrogatórios e até mesmo isolamento dos infratores passaram a se tornar cada vez mais comuns. Havia, inclusive, boatos de presídios criados em terras longínquas de modo a isolar aqueles que representassem perigo iminente. O temor da ira dos deuses se tornava cada vez mais real e a necessidade de uma resposta de impacto se tornara cada vez mais latente.
- Mestre Cavian, a comitiva de Audar acaba de chegar – disse Bacus diante da porta de entrada do quarto, um ser humanoide de sorriso gentil e de um avantajado olho solitário em meio a testa.
- Muito obrigado, Bacus, hoje será um grande dia – exclamou ele, enquanto se sentava em sua cama para ajeitar a bota de couro em seus pés. Em seu braço direito era possível ver as marcas acobreadas dos filhos de Iscalon, o deus antigo dos dragões. Linhas grossas que se contorciam como o próprio vento e corriam de parte do ombro até seu pulso. Cavian procurava não as deixar à mostra. Sua própria mente já tratava de lembrá-lo todos os dias de suas responsabilidades, ainda que participar de bailes e resolver problemas sem relevância fossem suas maiores preocupações no momento. Não ligava se isso se mantivesse por muito mais tempo, afinal, não havia nascido entre lâminas e sangue como seus pais e em tempos como aquele, se a manutenção da ordem já estivera ameaçada sob o comando de Bahamut, certamente seria impossível que houvesse glória por meio de suas próprias mãos.
- O senhor precisa de mais alguma coisa? – questionou o ciclope.
- Um conselho, Bacus, me dê um conselho... – lembrou ele ao se levantar e ir até Bacus, sacudindo as mãos na tentativa inútil de se acalmar. - O que levar para a princesa? Pensei em comprar algumas flores na feira central, o que acha?
- Flores para Audarianos seria como levar água para um Natelurianos, jovem mestre. Se quer impressionar a princesa sugiro algo que só o reino mais inacessível desse mundo possa ofertar...
- Hmm... – pensou por um momento. - Contas de Aquia! – respondeu ele rapidamente parecendo encontrar milagrosamente a resposta que procurava. – Só não há mais tempo - acrescentou subitamente tomado por um tom de tristeza.
- A não ser que se importe com a cor – respondeu Bacus retirando uma pulseira de contas alaranjadas da bolsa de couro velha pendurada em sua cintura com um olhar de satisfação em seu rosto, enquanto atraía os olhos recobrados de brilho de Cavian. As contas de Aquia eram esferas de ar turbulento, que lembravam pérolas vivas, moldadas pelas mãos de pequenos Aquirianos enquanto aprendiam os caminhos das artes místicas.
- Seu fanfarrão... Yuki certamente deve ter levado falsas histórias aos seus ouvidos – pegou a cabeça de Bacus e beijou energicamente sua calva testa.
- Seus olhos contam mais a verdade do que suas palavras, jovem mestre – deu um sorriso desajeitado ao príncipe.
- E seu olho grande está vendo coisas demais assim como minha irmã. Mas tudo bem, hoje você salvou meu dia, meu amigo! Vejo você no jantar?
- Com toda certeza, sua mãe mandou preparar a carne ensopada que tanto gosta. A propósito, ficarão na terceira torre – disse Bacus enquanto saía pela porta.
Bacus era um ciclope adotado pela família Inazuma durante a grande guerra. Era pequeno para os padrões dos ciclopes, mas era mais sábio do que qualquer outro. Apesar do seu único olho, o fato que mais chamava atenção era seu jeito de andar peculiar, um pouco desengonçado por conta da paralisia parcial de sua perna direita. Tinha Melin como sua irmã e cuidara de Cavian e Yuki desde pequenos, enquanto Melin se abarrotava com as atividades do reino. Uma criatura de sangue não nobre que vivia entre nobres. Uma presença que incomodava a muitos, mas não mais do que a possibilidade de enfrentar Melin. Por mais que não fosse a única rainha de Aquia, era a mãe do futuro rei e uma feiticeira hábil tanto com as artes ocultas quanto com as palavras.
Cavian
O jantar se iniciara e as cadeiras vagas se estendiam por toda mesa, a reunião dos povos aliados seria daqui a uma semana, mas devido aos acontecimentos recentes era prudente que não viessem de uma vez só. A previsibilidade era tão insegura quanto a própria noite e os transgressores até o momento não pareciam se importar com qualquer hierarquia de poder.
O ouro roubado naquela noite não havia sido fato isolado. Passou a ser distribuído em toda noite de lua vermelha, que acontecia entre as mudanças de estações. Toda a casa que deixasse uma vela acesa durante a noite recebera sua parcela e quanto mais o boato se espalhava, mais casas se iluminavam, visto que não houvera, até o momento, qualquer tipo de retaliação por parte dos reinos, pelo contrário, estes adotaram como discurso que aqueles atos se tratavam de uma obra de autoria dos próprios reinos, uma ação de ajuda aos mais vulneráveis.
De uma forma ou de outra, ainda não se sabia se os saques produziram os resultados esperados, mas a única certeza é que havia desconforto entre as sutis conversas que corriam entre os bem afortunados. O discurso, apesar de caro, pareceu funcionar a curto prazo. Mesmo com o medo crescente, a confiança em seus reis parecia aumentar, afinal, a guerra era de quem dava o pão contra quem pudesse tirá-lo de suas casas. Ainda assim, todo aquele ouro era precioso à nobreza e não havia nenhum caminho fácil a ser trilhado para sustentar a situação por muito mais tempo, ainda mais se as ações começassem a se espalhar pelas cidades comuns, onde o controle militar era tão sólido quanto castelos de areia.
Nenhum reino se enfraqueceria para cuidar de terras tão distantes de cultura dispersa e de tantas crenças, a menos que partilhassem o risco. As alianças seriam a única forma de manter as cidades comuns, que se lançavam como pilares econômicos importantes para a guerra que estava por vir. Não à toa os saques de outrora incomodavam tanto. O raciocínio era simples, quanto maior a construção, maior a necessidade de pilares, e não era necessário enfraquecer muitos deles para que toda a estrutura viesse a pó. Era necessário estancar a sangria, todos sabiam disso, a reunião ao fim daquela semana determinaria o sucesso de tudo que fora construído ao longo dos anos, uma aposta alta demais para se curvar a pequenos desejos ou pretensões.
Cavian adentrou o salão menor do castelo, ainda mais belo do que havia conhecido naquele dia. Todos já estavam devidamente acomodados, exceto por seu pai e sua tia Tiamat. Na mesa de madeira queimada e resinada que se estendia por metros, foi ao encontro dos olhares de Lis, que trocava risadas com Yuki, que apesar de não ser admiradora de eventos sociais, sabia se portar como a mais amável das princesas quando lhe interessava. Sabia de alguma forma que Yuki estava atrás de respostas, se não fosse isso certamente teria se atrasado como sempre fazia. O sorriso da irmã em direção a Cavian provava seu ponto, o sorriso de quem confirmaria todas as suas observações.
Lis parecia estar vestida com um recorte do próprio céu estrelado, com pedras que imitavam estrelas e que se confundiam com suas poucas sardas. Audarianos e Aquirianos compartilhariam a mesma mesa naquela noite. Era uma cena que Cavian gostaria de se acostumar. Até mesmo Thalia, a segunda esposa de seu pai e irmã de Belzog se juntara ao jantar. Thalia costumava ser inconveniente com Cavian tanto quanto pudesse, mas a presença de sua mãe talvez fosse até mais intimidadora que a do próprio rei dragão. Seu sorriso era tão pacífico que era impossível que alguém descobrisse suas intenções e era justamente esse o fato que intrigava a todos. A sensação de não se incomodar com nada era diferente do comportamento de Yuki. No lugar da frieza, Melin distribuía sorrisos gentis gratuitamente a todos, independentemente da mensagem recebida, e sua voz era tão doce quanto as águas que banhavam as pedras de seu nascimento. Cumprimentando a todos com um aceno cordial, sentara-se ao lado de seu irmão mais novo, Malfien, filho de Thalia, em um lugar reservado aos príncipes, no lado oposto ao qual realmente gostaria de estar.
Malfien era a última pessoa naquele mundo com quem Cavian gostaria de partilhar a ceia. Não por falta de tentativas, mas seu irmão parecia tratá-lo como um obstáculo aos seus próprios anseios e toda vez que se sentava ao seu lado as palavras de Yuki ecoavam como tambores em seus pensamentos. Ela tinha razão, por pior que fossem suas mãos, ainda seriam melhores do que as dele. A única semelhança entre os dois eram as poucas horas entre seus nascimentos, já que Malfien parecia ser exatamente o oposto do que ele almejava ser um dia. Não possuía problemas em ostentar a riqueza dos dragões originários. Seus anéis e correntes, assim como os detalhes de puro ouro em suas vestes negras eram provas disso. Os cabelos escuros escondiam uma pálida face, nada incomum para alguém que preferia as masmorras do que ar das montanhas, mas a maior semelhança com seu pai ainda era o ar de prepotência que o circundava. O herdeiro perfeito para o trono, o que fora preterido pelos deuses, talvez um castigo para o reino que havia dizimado tantos outros no passado. Não restara por exemplo nenhum filho das serpentes das tempestades, deles havia sobrado somente pó e histórias.
Cavian não tinha dúvidas de que Malfien apenas esperava ansiosamente por qualquer descuido que pudesse demonstrar seu despreparo em assumir tal posição, ainda que somente sua própria morte pudesse ajudar seu irmão de forma concreta. Por mais que soubesse do perigo, sabia que estava seguro de certo modo. Sua morte repentina atrairia todos os olhos e os melhores investigadores para Aquia e os responsáveis dificilmente sairiam impunes. As tradições talvez fossem o tesouro mais precioso daquelas terras, algo que nem Bahamut ousara enfrentar ou que simplesmente passara a entender o real significado. As tradições tinham os dragões como os descendentes diretos dos deuses, as tradições eram a fonte da subserviência, as tradições eram mais importantes do que as próprias vidas dos Aquirianos, e talvez por isso tivessem tido tanto êxito em seu passado recente. Não era só o poderio bélico dos dragões, um povo que dava a vida para manter vivo seu reino era o maior poder que um rei pudera ter em mãos.
O crime de traição em Aquia era mais grave do que qualquer crime de sangue, por quem quer que fosse cometido. Os corpos dos transgressores eram hasteados no fosso das lamentações, pendurados por dias ao sol escaldante, no local mais próximo do julgamento dos deuses, apenas esperando que os corvos realizassem seu trabalho. Segundo os contos, que podiam ser ouvidos até mesmo pelos mais novos seres daquele reino, os corvos eram os mensageiros da morte que levariam os traidores para o julgamento de Iscalon. Nymo fora o único condenado que não havia sido visto em tal condição, ainda que muitos acreditassem que tenha se jogado do fosso antes que fosse possível sujeitá-lo ao ritual de passagem.
- Que bom que chegou, Ian, Lis estava me contando que pensara em intensificar as relações entre os reinos... – disse Yuki sorrindo maliciosamente ao irmão que acabara de se ajeitar na cadeira, enquanto ele retribuía o gesto de maneira forçada, ainda calado evitando falar algo que pudesse comprometê-lo.
- Estava dizendo a sua irmã que como estamos no mesmo lado dessa guerra, temos que nos conhecer mais, meu príncipe, para explorarmos nossos potenciais – continuou Lis em tom formal. – Afinal, conhecer nossos aliados é tão importante quanto conhecer nossos reais inimigos.
- Com toda a certeza, vossa alteza – direcionou seu olhar a Yuki. Se pudesse com certeza daria um jeito de fazê-la ficar quieta naquela noite. Já era difícil o bastante permanecer vigilante sobre seus próprios atos.
- Do jeito que fala, princesa, estamos perto de um confronto iminente – interpôs Malfien repentinamente, com os cotovelos apoiados sobre a mesa, esfregando os anéis sobre os dedos.
- É evidente, meu príncipe, basta caminhar pelas ruas da cidade para sentir a tensão em seus olhares, é como se a pólvora estivesse apenas aguardando uma pequena centelha. Não demorará muito até que algo aconteça – respondeu Lis visivelmente preocupada.
- A senhorita realmente acha que um punhado de camponeses pode fazer frente às nossas tropas? – ironizou Malfien franzindo o cenho, parecendo interessado na conversa. Certamente gostaria de ouvir a visão da princesa, que na visão deste, provavelmente só ocupasse seu tempo procurando tecidos nobres ou em chás que se iniciavam pela manhã e duravam até o pôr do sol.
- Nesse único ponto Malfien está correto – interferiu Yuki. – Os números são bastante discrepantes.
- Se não há preocupações, por qual razão estariam se reunindo? – questionou a princesa humana, enquanto Cavian tentava pensar em algo para dizer. Concordara com Lis nesse ponto, se não houvesse problemas não se reuniriam daquela forma e com tantas precauções.
- Cautela, eu diria, insetos são insetos afinal, não é porque não geram riscos que não precisam ser eliminados - observou Malfien fixando os olhos na princesa, enquanto girava sua taça se vinho. - É mais uma questão de assepsia social.
- É engraçado pensar que se preocupam tanto com os esgotos como diz quando as ruas estão cheias de lama, não é mesmo? – ironizou Yuki.
- Pare, Yuki, por favor, não é o momento... – interferiu Cavian, tentando acalmar os ânimos, sabia para onde aquela conversa iria. Já vivenciara centenas de outras, principalmente ao longo dos últimos anos. Malfien e Yuki eram como água e óleo, era nítido que ambos não tinham a menor preocupação em agradarem um ao outro.
- Ah, não me entenda mal, minha irmã – justificou-se Malfien, relaxando sobre a cadeira com um sorriso debochado ao rosto. - Há insetos por todos os lados, dos mais variados tamanhos, mas o mais importante de tudo é que por mais que tentem, nunca serão mais do que nasceram pra ser? É como se fossem incapazes de entender que nunca assumirão as posições de poder e talvez por isso continuem lutando contra sua própria natureza enquanto corroem as estruturas do progresso.
- Exatamente, acredito que a incapacidade deva ser algo bastante difícil de lidar – observou Yuki. - Os velhos deuses parecem gostar de interferir na mínima possibilidade de que esses seres incapazes possam decidir o futuro de seus reinos, já percebeu? Dar sua própria e preciosa criação na mão de tolos parece ser um preço alto até mesmo para o livre árbitro – continuou Yuki, levantando a taça de vinho na direção de Malfien com a satisfação estampada no rosto, enquanto olhava pacientemente o sangue tomar as pupilas de Malfien. A fúria parecia transbordar do olhar do jovem dragão quando este se levantou da mesa. De fato, de um jeito ou de outro, o trono estava tão longe dele quanto de Yuki, e a filha de Melin não escondia o prazer em vê-lo naquela situação.
- Chega, Malfien! Yuki não quis dizer o que disse, não é, minha irmã? – interferiu Cavian novamente, enquanto Yuki dava os ombros, fazendo com que se levantasse para apoiar a mão direita no peito de seu irmão suplicando por calma, enquanto Lis olhava atônita a situação. Uma confusão familiar era a última coisa que desejaria gerar naquela noite e Yuki parecia não ter qualquer intenção de colaborar respondendo Cavian somente com um sorriso mudo que transbordava felicidade.
Malfien tirara a mão de Cavian do peito na mesma velocidade com que saiu da mesa. Certamente encerrara sua participação no jantar daquela noite. Não poderia se dar ao luxo de fazer algo que ferisse a própria reputação. Era Cavian que deveria tropeçar e não ele.
- Dessa vez foi quase – brincou Yuki som o rosto coberto pelo mais puro contentamento. - Deveria interferir menos, Ian. Seu coração é bondoso demais para lidar com ele.
- Sabe que não é uma noite para esse tipo de confronto... – repreendeu ele. - Peço desculpas pelo ocorrido, vossa alteza – completou ele se dirigindo a Lis.
- Eu que deveria pedir desculpas, acredito que eu tenha sido a causadora da discussão, não? – observou Lis, ainda que não parecesse preocupada.
- De forma alguma, Yuki tem o estranho hábito de irritar pessoas, umas mais do que outras – disse Cavian.
- Algumas verdades podem soar um pouco indigestas de fato – retrucou Yuki, girando e tomando delicadamente mais um gole de sua taça de vinho. - Mas gostaria de uma opinião, Lis. Discuto muito com meu irmão sobre os rumos que a postura atual que nossos pais têm tomado. Não acredito que todas elas sejam corretas e Cavian acredita que nosso pai seja um governante muito mais capaz do que ele por exemplo. Gostaria de saber se acha que Cavian seria um bom rei? – disse ignorando o olhar de reprovação de Cavian.
- Acredito que a princesa gostaria de tratar de assuntos mais interessantes, Yuki – disse ele tentando intervir.
- Não, vossa alteza, de forma alguma - respondeu Lis. - A política com certeza deve ser alvo de nossas discussões. Acredito que não é porque ainda não temos o poder das canetas em nossas mãos que não possamos pensar em alternativas – continuou enquanto Yuki acenava positivamente ao irmão. – O que posso dizer é que o bom rei deve ter a humildade de ouvir aqueles que verdadeiramente o querem bem, por mais duras que sejam suas sugestões. A verdade sempre será o caminho mais curto para um bom conselho.
- Bravo, minha princesa... – exclamou Egen depositando sua caneca de cerveja à mesa e se juntando aos demais. – A propósito, alguém estava sentado aqui? – questionou, referindo-se ao lugar que Malfien deixara.
- Não... É bem provável que Malfien não volte... – respondeu Cavian.
- Entendo, parecia um pouco nervoso quando cruzei com ele. Mais uma das discussões com Yuki? – constatou Egen arqueando as sobrancelhas, como se tratasse de uma obviedade.
- Tão claro quanto previsível, meu amigo – concordou Cavian.
- De qualquer forma concordo com tudo que Lis disse, por mais que Cavian tenha seus defeitos, é, sem dúvida, o filho do rei dos dragões e o sangue de liderança corre naturalmente em suas veias.
Cavian sorriu timidamente.
- Egen está só sendo gentil, acredito que eu não estaria preparado de qualquer forma – observou Cavian. - Agradeço o elogio, minha princesa, porém, com todo o respeito, acredito que conheça pouco dos bastidores de Aquia.
- Reinos são reinos, meu príncipe, e no fim são poucos os defeitos e qualidades que realmente importam, acredito que deposite um peso muito grande em coisas que não possuam tanta relevância – disse Lis com um sorriso gentil.
- É o que sempre digo a Cavian – continuou Egen. - Acredito que ele coloque muito peso em cima de suas costas e que isso o reprima um pouco. Não me canso de dizer que ele precisa acreditar mais nele.
- Vou me manter quieta a pedido de meu irmão... – completou Yuki quando os músicos anunciavam a chegada dos reis dragões.
A conversa não se estendeu por muitas horas. Ao término do jantar, os reis se retiraram para uma reunião reservada, enquanto os príncipes se dirigiram aos seus respectivos quartos.
Lis se despedira com um aceno de mãos a Cavian e Egen enquanto Yuki se dirigia ao portal que dava acesso à torre onde estavam hospedados.
Assim que se despediram de Egen nos corredores que davam acessos aos quartos, Yuki voltou-se a dirigir ao irmão.
- Você estava realmente impossível hoje, Yuki – repreendeu ele franzindo o cenho. - Já não basta meu desconforto habitual? Da próxima vez me certificarei de me sentar bem longe de você.
- Desconforto por qual razão, faísca? Foi você mesmo que disse que estava vendo coisas demais, não se lembra? – atiçou Yuki como habitualmente fazia. – Aliás, você deveria me agradecer, já que em uma única noite expulsei Malfien de seu lado, coletei informações importantes e me certifiquei de firmar um compromisso para você amanhã pela manhã – completou contando nos dedos suas façanhas.
- Compromisso? Pelos deuses... – suspirou desoladamente. - E eu achando que as coisas não poderiam ficar piores. O que você arrumou dessa vez?
- Apenas um encontro na feira central com sua princesa seguindo os conselhos que a própria nos deu. Confesso que havia marcado de ir também, mas acredito que todo aquele vinho tenha me deixado um pouco indisposta – disse Yuki franzindo o nariz enquanto massageava a barriga em uma atuação pouco convincente. - De qualquer forma, não tenho dúvidas de que poderá nos representar a altura – completou ela lhe dirigindo um sorriso e o encarando antes de voltar seus olhos para o corredor à frente.
- Yuki... – disse ele em tom repreensivo.
- Não diga nada, meu irmão, será uma ótima oportunidade para entregá-la o presente em seu bolso, que aliás acredito que ela vá adorar!... Ah sim, o horário, quase me esqueço... Combinamos de nos encontrar na entrada da feira assim que o sol nascer – disse Yuki se afastando à direita quando chegaram à primeira bifurcação, deixando Cavian em uma mistura de aborrecimento com felicidade. Um encontro? De fato, não conseguira a oportunidade que precisava aquela noite e não tinha muito tempo, já que a cada dia, mais e mais pessoas chegariam. Certamente deixaria de reclamar com a irmã no dia seguinte, apesar de ter certeza que ela já soubesse disso. Não que admitisse, mas se ele mesmo planejasse tal ação não haveria feito com tamanha maestria. Nunca quis com que a noite acabasse tão depressa. Tantos planos passaram por sua cabeça, enfim todas aquelas conversas poderiam sair das letras frias no papel.
Cavian
Cavian se arrumou como um verdadeiro herdeiro do trono. Não era muito adepto a cuidar de sua aparência, mas se tratava de uma ocasião especial. Conferiu cada detalhe mais de uma vez. Não confiava em sua memória de qualquer forma, já o havia deixado na mão mais vezes do que gostaria de lembrar. Os corredores do castelo ainda estavam completamente vazios, a não ser pelos guardas que se encontravam em troca de turno.
Passou pela pedra do tratado de qualquer forma. Era impossível não passar por ela ao sair. Ela ficava ao final da escadaria principal como um monumento de lembrança.
Parecem não entendê-lo até hoje, pensou ele enquanto apressava o passo. Não sabia se Lis já tinha saído, mas o sol estava quase nascendo. Havia se enrolado demais com os preparativos e chegar depois de uma dama não parecia nada educado. Lembrava das palavras de sua mãe quando mais novo, em um momento que na época nem imaginava que chegaria. As aulas de etiqueta real eram sem dúvidas as piores e pareciam se arrastar por horas até que acabassem. Em sua mente que já se distraia facilmente, qualquer coisa era pretexto para pensar em algo que o tirasse de lá.
Chegou instantes antes da hora marcada. Lis já estava lá, vestida como uma camponesa, cabelos amarrados e com um vestido solto e tão leve que era possível sentir seu peso com os próprios olhos. Se arrependeu de se arrumar. De fato, parecer com alguém da corte real não era o melhor modo de aproveitar o que realmente a feira tinha a oferecer. Assim, antes que Lis percebesse, jogou sua túnica em um dos becos, trajando apenas uma camiseta de linho branco que vestia por baixo. De algum modo se sentia mais confortável, era como se todo o peso do reino tivesse sido tirado de suas costas, ainda que o desejo de permanecer ali fosse algo tão vivo quanto distante. Nunca tivera de fato escolha. Sabia que muitos gostariam de estar em seu lugar, a vida não era fácil de qualquer forma, principalmente nas cidades comuns onde não houvera qualquer governo instituído. Passaram anos na marginalidade antes de entenderem que poderiam se fortalecer como um povo sem um deus ou um rei. Cidades livres em todos os seus conceitos e assustadoramente pujantes. Não era à toa que tinham despertado o interesse dos poderosos. A miscigenação se provara de alguma forma ser o segredo da prosperidade, ainda que uma terra sem leis e sem controle pudessem gerar problemas, principalmente para as mentes céticas que começariam a se questionar se de fato precisariam se submeter aos desejos de seus soberanos.
Fisbia era a cidade certa no local certo, e poucas das melhores mentes daquele mundo sabiam da importância de Blackhelm para os projetos ambiciosos dos povos aliados. Tornar a maior cidade livre a melhor de todas elas, com um governo unificado, faria com que se tornasse um modelo. Um que passaria a ser desejado por outras delas.
A entrada da feira central de Fisbia possuía um portal florado, enfeitado com muito cuidado pelos diversos comerciantes que ali se encontravam. Parecia ser um monumento em que se dispunham a demonstrar a força de sua união. Era enfeitado por flores das mais variadas formas e cores, esculturas de madeira entalhadas à mão, cordões confeccionados por artesãos e até mesmo pedras exóticas enfeitavam o grande arco de entrada, tudo delicadamente amarrado em fios de capim dourado, que nasciam nas terras ao norte. Uma ode ao sentimento de união e desapego encontrado até mesmo em seus pequenos gestos. Não se sabia se existia monumento tão belo naquele mundo, mas com certeza não ficaria atrás de nenhum deles.
- Vejo que os Aquirianos fazem jus à pontualidade – disse Lis quando Cavian se aproximou.
- Seria bastante mal-educado de minha parte fazer com que esperasse.
- Achei também que seria melhor ter vindo assim – observou Lis, referindo-se às roupas atuais do príncipe.
- Sim... Imaginei que seria uma boa forma de nos misturar... – levou sua mão direita atrás da cabeça enquanto sorria desconfortavelmente.
- Sua irmã nos acompanhará? – questionou a princesa.
- Disse que estava um pouco indisposta. Pediu para enviar suas desculpas por hoje e por ontem. Acredito que tenha bebido um pouco além do limite.
- Ah, sim, de fato estava bastante animada, mas não há por que pedir desculpas, honestamente adorei conversar com ela, acho inclusive que com o tempo seremos grandes amigas... Ela possui uma visão tão única... É como se tivesse explorado todos os cantos mais longínquos desse mundo. Sabia de coisas que poucas pessoas de Audar sabem hoje em dia... – revelou Lis impressionada.
- Com certeza um dos sintomas de quem mora em uma biblioteca.
Lis riu.
- De fato, mas não é de todo mal que não tenha vindo, não haveria melhor oportunidade para que finalmente possamos colocar nossos assuntos em dia.
Cavian corou.
- Para ser sincero não via a hora - arqueou o braço para que a princesa pudesse apoiar sua mão enquanto caminhavam.
A feira de Fisbia era a maior feira a céu aberto que qualquer par de olhos poderia contemplar. Era lá que se poderia encontrar desde os pequenos bonecos de madeira esculpidos pelas mãos finas dos seres da floresta, até as poções coloridas em seus frascos redondos e esverdeados vindos de Tessan. Crianças passavam correndo entre os corredores lotados sem qualquer preocupação que as cidades antigas eventualmente pudessem trazer, afinal, independentemente de suas origens, ali todos tinham seu lugar ao sol. Um até trombara com Cavian, correndo de seus outros pequeninos amigos. Em sua maioria, filhos de pais que de alguma forma renegaram suas origens, alguns como desertores de seus juramentos, outros poucos apenas amantes da vida moderna. Uma terra das famílias sem nome e sem as amarras das tradições.
A miscigenação das raças não era bem vista entre os plebeus. Os mestiços por si só na maioria das culturas eram vistos como traidores dos seus próprios deuses e culturas. Não era adequado se juntar com raças que pouco tempo atrás estavam massacrando seus próprios irmãos, mas a grande verdade é que a maioria daqueles que lavaram a terra de sangue não haviam feito por vontade própria, e sim pela vontade de seus deuses ou daqueles que herdariam seus desejos. Somente após o tratado se iniciariam as lutas por seus próprios ideais.
- Não sei se são más notícias, vossa alteza, mas durante esses meses não pude encontrar nenhuma pista sequer, nem mesmo sobre o desaparecimento de Iadrin... – revelou ele enquanto caminhavam desapressadamente.
- Acho que tive mais sorte que você então – disse Lis, ainda que mantivesse certa preocupação no olhar. O mesmo que viu no dia que a conheceu - Naquele dia que fomos à Tessan, Iadrin havia fugido com seus filhos. Parece ter havido um ataque ao castelo, mas o que mais me intriga é que não parecia um ataque dos libertos, Ian, não havia qualquer vestígio deles. Olhei atentamente para um dos mortos e a lâmina que atravessou seu peito era a mesma utilizada pelos soldados dos reinos aliados. A rainha parece ter sido uma das vítimas, mas seu corpo não foi encontrado. Rapidamente meu pai me mandou embora e notei em seus olhos, Ian... Notei quando olhou pra aquela cena recheada de pontas soltas com preocupação. Agora por que se preocuparia com um ataque que deu errado? Há algo muito estranho ali, se Iadrin não morreu, depois de todos esses meses o que de fato aconteceu? Por que evitam o assunto?
- Não sei, mas se isso se concretizar seria uma situação que faria com que o próprio tratado estivesse em risco. Contei para Yuki sobre o que havíamos conversado, e nem mesmo ela pode encontrar qualquer fato que nos levasse a novas conclusões, mas talvez isso possa ajudá-la. Fico me perguntando se não haveria a possibilidade de haver libertos infiltrados entre os reis. Será que Iadrin não poderia ser um deles? Isso explicaria grande parte da força que eles teriam obtido nos últimos tempos. Se tivessem o suporte de outros reinos... Bem, talvez tivessem força o suficiente para contra-atacar.
- Sim... Não disse nada na noite anterior, mas por isso mencionei a preocupação deles em se reunirem tão depressa e com tantos cuidados. De qualquer forma, acho que ao final dessa semana conseguiremos algumas das pistas que procuramos. Eles estão planejando algo grande, Ian, sei disso porque as viagens de meu pai têm se intensificado nas últimas semanas.
- O que mais me intriga nessa situação é cogitar que Iadrin possa ter se juntado a eles... Logo ele que talvez seja o mais amado rei entre os humanos, não é possível que apoie tais atrocidades.
- Ou a história que temos escutado durante todos esses anos pode não ser exatamente o que de fato aconteceu, meu príncipe. Como disse antes, há várias peças que não se encaixam e essa é somente mais uma delas. De qualquer forma, temo que não nos reste mais nada a ser feito por agora. Eles ultimamente têm sido mais cautelosos, principalmente por contas dos assaltos. Meu irmão inclusive se dirigiu a Stormcrow antes de nos dirigirmos para cá no dia de ontem, porque segundo as informações do chefe da guarda real de Audar, as ações provavelmente tenham sido coordenadas por lá.
- Havia percebido a sua falta no jantar, mas imaginei que fosse somente uma ausência proposital. Talvez uma das cidades mais estranhas que conheci, não me admira que tenham descoberto algo. Só tive oportunidade de ir até lá uma vez, acho que não era longe daqui, correto?
- Alguns dias acredito, mas tanto faz, acho que já tivemos a nossa dose de assuntos da nobreza. Não podemos desrespeitar esse dia e sua paisagem – disse Lis tampando parte dos olhos como se procurasse algo ao longe.
- Tem razão – concordou ele assentindo com a cabeça. – Olhe só essas pessoas, parecem tão felizes, Lis, parecem estar onde gostariam de estar.
Lis sorriu, assim como todos que ele conseguira encarar por qualquer breve momento.
Continuaram pelos corredores, até a praça principal. No caminho de carrinhos e tendas que sumiam ao horizonte, uma maçã rolou lentamente aos pés de Lis. A senhora que derrubou a cesta parecia ser originária do reino acinzentado, mas as marcas do tempo, sua postura arqueada e o véu que cobria sua cabeça não permitia qualquer distinção. Não que também importasse, não ali. Dentro do objeto, algumas poucas maçãs, um pequeno pão e algumas ervas frescas. Era bem pouco, certamente para uma única ceia ao longo do dia. Não viviam com muito além daquilo, mas ainda assim pela ajuda, a senhora ofereceu a maçã a Lis, que a recusou gentilmente com um gesto de mãos. Não havia dor ali, pelo contrário, um sorriso que parecia abraçá-la, algo que nenhum ouro poderia comprar. Infelizmente, não trouxera nada de valor naquele dia, mas Cavian ofereceu à senhora as contas alaranjadas que guardava em seu bolso. Não eram obras de artífices, mas eram raras, o que as conferiam algum valor. A senhora relutou por um momento.
- Não farão falta a mim, minha senhora, por favor, aceite – pediu ele se ajoelhando enquanto trazia a mão da senhora gentilmente junto de si. Depositou as contas sobre a mão sofrida de dedos finos e longos e com a outra mão a fechou sobre o objeto.
Os olhares se cruzaram por um breve instante até que a senhora finalmente assentisse. Agradeceu-o com os olhos marejados e um sinal de benção herdada dos tempos antigos sobre sua testa. As palavras não ditas ali valiam por mais de mil delas.
A senhora se dirigiu a Lis a cortejando e se despedindo, antes que finalmente se distanciasse com passos morosos e certamente mais contentes do que os que haviam chegado momentos atrás.
- Vejo que ganhou uma admiradora – observou Lis enquanto voltavam a caminhar.
- Pra ser sincero, tinha naquelas contas minha única esperança pra impressionar outra pessoa – suspirou ele.
- Não me referia à senhora, Ian – corrigiu Lis, enquanto o sorriso que tomara o rosto da princesa o encarava, fazendo com que seus olhos procurassem refúgio nos próprios pés que se trançavam a frente. Ela parecia poder arrancar de sua boca as palavras que nunca ousou dizer ao mesmo tempo que o intimidava desconfortavelmente.
Não caminharam muito além dali. A praça de Solaris era o principal ponto de encontro dos visitantes, que não raramente se perdiam em meio à multidão. Uma fonte de água cristalina que banhava a estátua de Baran e seus nove leões, um herói dos tempos antigos, que protegera principalmente os humanos em ataques de outrora. Poderia haver discussão se Baran fora o maior entre os sacerdotes de Amber, mas não havia dúvidas de que fora o único a flertar com sua grandeza. Era conhecido como o humano banhado pelos deuses, e suas vitórias foram tantas que o corajoso e bondoso leão de fogo solidificara sua fama ao longo das histórias contadas entre pais e filhos. A mais gloriosa delas ao fim da batalha com o nome que batizava a praça, onde ele e seus nove leais seguidores foram a única barreira entre a recém-criada Fisbia e um completo genocídio promovido pelos quase mil homens restantes do exército do submundo de Dargal. A noite fora iluminada pela única chama de Alpha, uma das três relíquias sagradas entregues aos reis humanos pelos anões de Kerradum. Seria impossível que sobrevivessem, mas naquela noite não houvera mais baixas. O sangue do exército humano havia sido suficiente para saciar os velhos deuses. Fisbia prosperou desde então. Por mais que não tivessem um rei, alguém sem nenhum dever com qualquer um deles, foi capaz de arriscar sua vida para salvá-los. Era mais do que qualquer um fizera até então e o bastante para que não arrumassem qualquer desculpa que os impedissem de seguir em frente. Os leões de Fisbia foram eternizados por toda cidade, ainda que tivessem sido mortos tempos depois por Smaglor, o invencível, em uma ação suicida até para os escolhidos. Apesar de ter tido êxito em colocar o título do rei dos Orcs à prova, o choque entre Itsi e Alpha, apenas fez com que ambos se juntassem ao plano dos criadores daquele mundo.
- Baran... Ouvi suas histórias quando pequeno – disse ele, encarando a estátua com os olhos erguidos, depois que se sentaram na longa mureta que circundavam a fonte. - Acho que essa dívida de gratidão é o que os move. Acho que ele era um devoto de Amber também, não era? – questionou à princesa, relembrando a discussão que tivera com Egen sobre o assunto dias atrás.
- O maior deles – respondeu Lis entusiasmada. - Meu sonho é que um dia possa me aproximar pelo menos um pouco dessa fé inabalável que o guiava. Dizem inclusive que seu sacrifício é o motivo pelo qual nunca nevou por aqui, como se tivesse abençoado essa cidade como seu primeiro rei.
- Que alívio! – exclamou ele. – Escutando esses feitos, fico pensando que provavelmente ainda me reste bastante tempo antes que eu tenha que finalmente exercer aquilo que todos esperam que eu faça.
Lis riu.
- Que besteira, meu príncipe, os tempos são outros, como já disse tenho a certeza de que será brilhante.... Só espero que eu possa acompanhá-lo de perto.
Suas bochechas ruborizaram, se perguntara por um momento o quão perto ela se referia.
- Egen havia comentado de seu colar outro dia – desconversou. - Imaginei que realmente fosse importante para você.
Lis assentiu.
- Era de minha mãe, carrego comigo desde que ela partiu. As histórias das velhas amas dizem que os Archel são os guardadores dos ensinamentos de Amber nesse mundo, então acredito que de alguma forma, se ela ainda estivesse por aqui, que ela ficaria feliz em me ver tentar levar isso adiante sabe... Pelo menos gosto de imaginar que sim – explicou Lis de forma saudosa, segurando a cruz e a girando em sua mão. – Já em relação ao seu amigo, bem... O que pude perceber é que sua irmã não tem muito apreço por ele ou por seu irmão, apesar de entender seu descontentamento em relação ao segundo – completou ela sorrindo.
- Ficou tão óbvio assim? – questionou rindo. – Confesso que Egen sempre fala um pouco demais, mas é uma boa pessoa... Um irmão que Malfien nunca fez questão de ser... Quando éramos pequenos brincávamos nas montanhas dizendo que ele seria a lança e eu o escudo de Aquia e que sob nossa proteção ninguém nunca mais seria capaz de nos fazer qualquer mal. Sei que Yuki implica com ele e em grande parte das vezes com alguma razão, mas ela sempre passava tempo demais se dedicando àqueles livros e à obsessão pelos olhos de meu pai enquanto eu só queria alguém para inventar histórias idiotas de heróis imaginários... No fim, acho que sem os dois seria impossível que eu entendesse minha posição nessa loucura toda em que nasci.
- É como dizem, Ian, os amigos são os irmãos que pudemos escolher para nós. Como provado no meu caso e no seu, o berço pode nos reservar o melhor dos amigos ou até mesmo o pior de nossos inimigos.
Cavian assentiu.
- Apesar de tudo isso, sou grato, ver toda essa gente aqui, independente da felicidade estampada no rosto de alguns, me faz pensar em todas as lutas que nunca precisei lutar... – Não havia terminado de falar quando fora surpreendido pelas trombetas tocadas ao centro da praça enquanto uma multidão começara a se adensar.
Kirins eram os mensageiros dos reinos aliados. Vestidos com seus sobretudos de detalhes costurados em alto relevo, de tecidos finos tingidos de um gradiente entre o azul e o vermelho escuro e capacetes arredondados que mais pareciam escafandros braseados, eram vistos constantemente perambulando pelas cidades comuns. Acólitos fiéis e portadores de uma eloquência que tinha o poder de dar vida às palavras jogadas ao vento. Não à toa eram escolhidos a dedo e cercados de tanto prestígio. Quem tinha o poder da palavra detinha o poder da verdade e em tempos nos quais passaram a ser umas das únicas fontes de informações disponíveis, passaram a ser tão valiosos quanto os mais raros tesouros.
Andavam costumeiramente em trios, ainda que não se entendesse claramente a razão. De algum modo parecia haver hierarquia em seu processo. Os broches de asas fixados em suas lapelas eram a prova, o líder possuía três deles, um de cobre, um de prata e um de ouro. As histórias diziam que não se conheciam entre si, com revezamento contínuo de seus pares, o que impedia a formação de qualquer relação afetiva entre eles. Não existia caminho de sucessão sem a queda do próximo nível hierárquico. Toda conduta ou informação incorreta ou mal conduzida poderia ser levada ao seu conselho que decidiria o futuro do Assimir, o nome dado ao mais alto cargo entre os Kirins. Deste modo, o que se via na prática eram anúncios que raramente fugiam da perfeição, com a vigília dos próprios pares, ávidos pelos menores deslizes.
Não se sabia o destino dos condenados, mas também não se sabia quem se escondia por trás das máscaras. A única coisa que se tinha conhecimento é que o preço da informação era valioso, tanto que vários jovens se alistavam para o processo de recrutamento em busca das vidas luxuosas que o ouro proporcionara aos seus adoradores.
- Prezados, obrigado pela atenção de todos os presentes – iniciou o menor entre os três acólitos presentes, levando dois de seus dedos ao pescoço. - É com grande satisfação que os povos aliados convidam a todos para a celebração de uma união real. Uma festa para o tratado... Um deleite aos antigos deuses que derramaram seu sangue no lugar do nosso. Todos estão convidados a celebrar, das águas ao sul às montanhas ao norte, no castelo onde perdura a justiça e a alma de nossos nobres heróis, a história será novamente marcada. Em tempos nos quais o medo e a dúvida insistem em tentar sem qualquer sucesso abalar nossa fé de um futuro glorioso, Audar e Volus preferiram festejar a paz. O príncipe Uruk, herdeiro do trono de Volus, comandante das espadas das terras escaldantes e descendente direto de Belphyr, e a princesa Lis, dos moinhos de Audar e dos campos que se perdem ao horizonte, sacerdotisa da deusa do sol e do fogo, convidam todos para celebrar sua união, abençoada pelos antigos deuses e por aqueles que carregam seu legado. A todos ao que o som do vento possa alcançar, estendo os cumprimentos dos reinos aliados em nome dos quais agradeço por toda a atenção – finalizou cruzando o braço ao peito e arqueando levemente a cabeça em agradecimento.
Do que se tratava aquilo? Lis parecia atônita, toda a felicidade que compartilhara naquela manhã parecia ter sido tomada à força por um completo vazio. Antes que a princesa levasse as mãos ao rosto, ele pôde sentir o desespero em seu olhar e o temor que tomava suas veias, como se os raios de sol queimassem sua pele como ferros de um braseiro. Ele sabia que não se tratava de um simples anúncio. As uniões reais eram eventos que reuniam os mais altos membros na nobreza e nunca houvera um tempo em que haviam sido alterados por quem quer que fosse.
- Ei, ei, se acalme... - disse ele se agachando em frente dela. - Com certeza deve haver um mal-entendido... Se eu conversar com meu pai... Ele certamente poderá interceder...
- Você não entende, Ian... – interrompeu Lis com a voz embargada. - Pense em todas as uniões que ocorreram nos últimos anos... Os humanos são a força de trabalho mais valiosa nesse mundo e Aquia tomara a posse de Landris, com Tessan sem um governo não passará muito tempo para que tomem a cidade e o único povo sem alianças entre os reinos aliados era o nosso, meu pai sabia disso e seu pai com certeza sabe também.
- Lis, me escute… – disse ele puxando ambas as mãos da princesa e as abraçando com a palma de suas mãos, encarando os olhos verdes e avermelhados com a convicção que não faltaria em suas palavras. – Nunca lutei por nada na vida e sempre deixei que as coisas acabassem sendo impostas a mim, mas dou minha palavra que não deixarei com que isso aconteça... Confie em mim. Falarei com meu pai e minha posição de herdeiro com certeza contará a favor. Eles certamente encontrarão outra aliança que os sirva – completou ele tentando acalmá-la, ainda que tentasse controlar sua própria agonia. Nunca enfrentara seu pai antes, ainda que poucos tivessem ousado fazê-lo, mas Lis fora a primeira coisa em sua vida que trouxera a ele algum propósito. Nem mesmo os olhares de seu pai o amedrontariam dessa vez. – Prometo por sua deusa e por todos os demais deuses antigos – continuou determinado, abraçando-a pelos próximos minutos que viriam. Lis descansou a cabeça em seu peito, o lugar mais próximo e seguro que encontraria para se esconder em meio à tempestade.
Cavian
Cavian entrou pelo portão principal de Blackhelm ainda mais rápido do que quando partiu mais cedo. Era próximo ao horário do almoço e se dirigia à sala do trono. Dois guardas a guardavam quando Cavian avançou velozmente sem que tivessem tempo de reagir, empurrando ambas as faces da imensa porta com as mãos. Tiamat e Bahamut olharam fixamente o príncipe que respirava ofegante, enquanto ambos os guardas entraram no salão ainda em dúvida se deveriam apontar as armas em direção ao príncipe, porém, antes que houvesse qualquer mal-entendido, o sinal vindo da mão de Bahamut fez com que desistissem de qualquer investida.
- A que devo a honra, meu filho? – questionou o Rei dos dragões, com a mão direita ainda levantada coçando os dedos, enquanto se mantinha sentado sobre o trono reservado ao mais alto posto dos reinos aliados, acima dos degraus iluminados pela abóboda envidraçada da torre central, o ponto mais alto de Blackhelm. Das cinco lâminas douradas e lustrosas que insurgiam aos céus em seu longo espaldar, a central era a mais larga e a mais alta delas. A mão dos deuses que governara o novo mundo. Tiamat estava de pé na lateral, vestida em uma armadura que trazia a delicadeza dos traços Aquirianos em finas folhas de metal que refletiam o brilho das asas escamadas. Os dragões originários provavelmente não precisavam de qualquer proteção, mas seria loucura dizer que as aparências certas não alimentavam o fervor de seus devotos. Os mais sábios sabiam que o poder sempre estivera escondido entre os menores detalhes.
- O casamento de Lis, meu pai, você não pode deixar que aconteça – ordenou Cavian finalmente.
Tiamat riu sarcasticamente.
- Ora, ora... Talvez seja um pouco tarde para começar a se preocupar com os assuntos do reino, rapazinho... – ironizou Tiamat.
A observação não fora plenamente desarrazoada, Cavian talvez não desse a devida importância às burocracias do reino como se esperaria, mas não poderia ser acusado de total leniência. Suas tentativas exaustivas de superar o desgaste da herança do reino por suas propagadas incapacidades, eram de uma forma respeitáveis para os poucos olhos que haviam acompanhado a espinhosa trajetória até ali.
- Continuemos depois... – disse Bahamut a Tiamat, que assentiu imediatamente.
- Espero que lhe dê alguns modos, meu irmão, a influência daquela humana provavelmente tenha consumado o pouco que ele talvez tivesse a oferecer – completou Tiamat se referindo a Melin antes que se retirasse. Ela o encarou com um sorriso debochado e intimidador enquanto andava por todo o trajeto até a porta principal, fechada pelos guardas logo em seguida. Foi quando ele finalmente prosseguiu, ajoelhando-se na base da pequena escadaria com uma das pernas perante ao rei dragão.
- Meu pai, com todo o respeito, realmente entendo o que tem tentando fazer, mas acredito que haja outras saídas para o mesmo resultado... Eu mesmo poderia me dispor, caso seja de seu desejo.
Bahamut gargalhou.
- Ah, meu filho... – suspirou, levantando-se e andando até ele vagarosamente, enquanto sentia a vibração dos passos que lhe gelavam a espinha. - Nessas horas vejo o quanto está longe de assumir meu lugar. Se pensasse por dois segundos veria que seu pedido nada mais é do que um mero devaneio. Por qual motivo dariam o controle de todos os reinos humanos à Aquia? Sequer entende do que se trata tudo isso. O herdeiro do trono deveria saber o quão valioso é o apoio de Volus em todo esse processo...
- Não se trata disso...
- Shhh, shhh, shhh! – interrompeu Bahamut, parando no degrau acima. - Se possuía intenções com a princesa humana, guarde-as para si. Reinados não se constroem sobre desejos juvenis e não haverá qualquer discussão a esse respeito. Matará sua sede em breve com uma dama ainda mais bela e jovial em um reino só seu para governar, um onde poderá tomar suas próprias decisões.
- O senhor acha que unir a princesa com tanto desgosto, será bom para fortalecer esses laços?
- Isso não é problema meu e muito menos seu.
- Se ela se recusasse por exemplo... Isso não traria consequências ainda mais desastrosas?
- Se recusar?... Quem vocês acham que são, garoto? – ironizou Bahamut, franzindo o cenho enquanto esfregava as mãos. – Eu realmente espero que ela não o faça, ou sem qualquer dúvida enfrentaria um destino incômodo.
- Meu pai... Sabe que nunca fiz qualquer pedido ao longo desses anos... – iniciou ele finalmente se levantando e o encarando. - Sempre carreguei a sucessão do trono como minha única responsabilidade ao longo de todo esse tempo, sem questionar qualquer uma das decisões que me foram impostas e o senhor sabe disso. Entendo que meu pedido talvez traga consequências indesejadas, mas garanto que será o primeiro e último pedido que lhe faço. Prometo, meu pai, que irei recompensá-lo e farei tudo o que estiver ao meu alcance para atender suas expectativas... Independentemente de quais elas sejam.
Bahamut sorriu brevemente e o encarou por um momento.
- Não espero que goste do que vou dizer e não faz diferença de qualquer forma – justificou Bahamut. - Mas infelizmente não vejo nada que possa fazer para atender minhas expectativas – completou secamente.
- Meu pai, peço pela última vez que me escute... – implorou ele enquanto seu coração se tomava pela raiva. Debaixo da camisa branca seu braço direito se iluminava e as marcas draconianas transpareciam como a luz de um sol azulado sobreposto por uma fina cortina.
Bahamut gargalhou.
- Se acha que tem o poder para me desafiar garoto, tome o trono para si e submeta o reino às suas próprias vontades – desafiou o rei dos dragões encarando seus olhos de cima, como um predador observando o movimento de sua caça. A respiração pesada que era percebida sorrateiramente no profundo silêncio e os olhos amarelados e inflexíveis, certamente colocaria em dúvida os mais corajosos corações - Caso contrário se atenha ao seu papel nesse jogo, meu filho, às suas festas na corte e aos seus passeios matinais, faça o que sua mãe o treinou pra fazer.
Pense Cavian, apenas pense, não se derrota um adversário poderoso frente a frente, pensou ele enquanto lembrava dos ensinamentos de Bacus. Sua mente sabia que não era a melhor ação, mas havia um impulso selvagem, um que implorava para que suas mãos confrontassem seu pai. Nunca havia se sentido assim, nunca experimentara a sensação de perder algo que lhe era tão precioso. Talvez fosse o que precisava para se sentir vivo. Sabia que não venceria daquele jeito e por Lis implorou para que seu coração se acalmasse. As marcas em seu braço se tornaram menos visíveis enquanto sua respiração se abrandava.
- Entendo, meu pai... Farei o que deseja... – disse ele seriamente sem que deixasse de encará-lo.
Bahamut sorriu.
Provavelmente sabia que Cavian não faria nada, assim como nunca fizera, mas o simples fato de pensar em confrontá-lo certamente o intrigou o rei e provavelmente traria novas ideias de como usar o herdeiro.
- Muito bom... Sempre há tempo para corrigir nossos caminhos, desde que nos encontremos dispostos a trilhá-lo... Deveria andar mais com seu irmão...
- Vossa majestade – disse ele se curvando ao seu pai ao cumprimentá-lo antes que saísse em direção à porta.
Não havia nada o que fazer ali, era necessário encontrar outro modo que o garantisse mais chances. Era claro que seu pai não poderia ser enfrentado sozinho, mas juntando as peças certas talvez pudesse ser evitado. Passara a tarde pensando em seu quarto. Não almoçara naquele dia e nem sabia se Lis participaria de qualquer outro evento naquela tarde. De qualquer forma era duro demais encará-la sem que pudesse fazer nada, ainda mais com as promessas que a havia feito.
Uma fuga, pensou ele se erguendo sobre a cama, com certeza conseguiriam se misturar em qualquer lugar que fossem, não importava onde. Com certeza havia lugares naquele mundo que até seu pai desconhecia. A vida seria difícil, sem dúvida, mas estava disposto a arriscar.
Quando a noite caísse afora, tentaria achar um jeito de encontrá-la, ainda que fosse impossível chegar ao quarto da princesa pelos métodos convencionais, não pelo menos se ele quisesse que ninguém soubesse. Esgueirou-se até a sacada do próprio quarto com a informação que Bacus lhe dera naquela manhã. Pela lógica, a nobreza se encontrava nos quartos superiores e a distância das torres era considerável para um ser sem asas, mas Cavian tinha outros truques guardados consigo. Seu apelido da faísca não fora dado por Yuki por acaso. Segundo as escrituras, era ele o herdeiro do poder de controlar as tempestades, ainda que estivesse longe de conquistar tal façanha.
Os sábios Aquirianos costumavam glorificar os reis dragões e seus filhos, desse modo as traduções de suas escrituras poderiam ser bastante incertas, o que não excluía o fato de que ainda que houvesse certa verdade em todas elas.
Cavian
O príncipe fechou os olhos e cintilou a ponta de seus dedos de seu braço direito, apoiando-os contra a parede de rochas. Sabia que havia algum metal contido naquelas rochas, o suficiente para que continuasse com seu plano. Assim correu contra a sacada e se lançou entre as brumas esparsas da noite em direção à outra torre. Não sabia voar de fato, mas antes de pular era perceptível o contorno azulado das marcações em suas mãos e até mesmo por baixo da camisa de linho branca que vestira, como se tornassem vivas de algum modo. Assim que tocara a superfície da torre, suas mãos se grudaram às rochas como dois grandes ganchos, enquanto seus pés se apoiavam entre as frestas. O vento gélido atingia seu rosto com violência e o ponto que atingira era alto suficiente para que não conseguisse enxergar as pequenas tochas dispostas nas paredes do pátio abaixo. Com certeza a queda seria algo que não sabia se poderia lidar, mas estava de alguma forma seguro. Pensara por um breve momento se as torres e montanhas de Aquia não poderiam ser como aquelas. De qualquer forma mostraria sua nova invenção para Yuki mais tarde, caso conseguisse encontrá-la. Voltando a si, começou a escalar a torre para o seu próximo ponto de salto. A torre onde se encontrava Lis era a próxima e as janelas iluminadas indicavam que a comitiva já se preparava para o jantar. Se chegasse rápido talvez tivesse um pouco mais de meia hora com a princesa, o suficiente para conversarem sem que fossem notados. Chegando ao ponto de salto, contraiu suas pernas contra as rochas e se lançou novamente contra as brumas. Quando tocou novamente a superfície rochosa da próxima torre, suas mãos deslizaram mais do que o previsto. As rochas estavam mais úmidas, provavelmente indicando que a chuva se aproximava. Não conseguiria fazer o caminho de volta com segurança, mas depois pensaria em um meio. Seu objetivo estava próximo. Ao chegar se apoiou na base da janela subindo sua cabeça vagarosamente, de modo a não assustar ninguém que o visse do outro lado de forma repentina.
Do outro lado, viu Lis ao espelho penteando seus longos cabelos avermelhados. Cavian então assobiou lentamente para chamar sua atenção de forma sutil, ainda que tivesse sido em vão. Lis puxara a espada ao lado da penteadeira antes que pudesse reconhecer o príncipe. O barulho do desembainhar da lâmina acionara os guardas à porta.
- Princesa, está tudo bem? – questionou um dos guardas que se aproximara à porta.
- Sim... Tudo sim, acabei tropeçando... Somente isso... – respondeu a princesa um pouco esbaforida enquanto acenava silenciosamente para que Cavian entrasse no quarto.
- Você está louco, Cavian? O que faz aqui? – sussurrou advertidamente Lis, aproximando-se da janela, ainda que não escondesse a felicidade em revê-lo.
- Pensei que fosse um bom modo de conversarmos em segurança – respondeu ele também baixinho.
- Chamando a atenção dos guardas e me fazendo quase cuspir meu coração pela boca? – disse ela o repreendendo gentilmente enquanto sorria.
- Realmente não havia pensado nessa parte do plano, mas... Ocorreu quase tudo conforme planejei – exclamou orgulhoso.
- Ai, Ian, como você é bobo – disse a princesa enquanto sua expressão retomava a preocupação inicial. – Se você está aqui, quer dizer que a conversa com seu pai não foi a das melhores, estou certa?
- Infelizmente não... Massss... – disse ele segurando as mãos da princesa, com a confiança transbordando de rosto. – Pensei em uma outra saída que só depende de nós... Vamos fugir, só eu e você... Chega de prender nossas vidas a de nossos pais, pense Lis, nós podemos viver livres longe daqui, sabe disso...
Lis sorriu.
- Com esses cabelos acho que não demoraria muito até que batessem à nossa porta – brincou a princesa.
Cavian riu contidamente, com os ouvidos atentos à porta.
- Ainda aguardo a resposta, minha princesa? O que me diz?... Se tudo der certo como espero, conseguiríamos partir amanhã à noite. Posso conseguir um barco até lá e daí partiríamos em direção ao sul, aquelas montanhas são tão longas e brancas que demorariam anos para que achassem qualquer pista...
- E largar tudo para trás, Ian? Não que eu não queira... Mas se algo desse errado... Bem, eu nem sei o que pensar, quanto a mim é provável que nada mude, mas você, Ian, você nem sabe quais consequências terá que enfrentar. Além disso, talvez nunca tenhamos estado tão perto de descobrir o que eles de fato planejam...
- E o que poderíamos fazer a respeito? Não vou mentir que não pensei sobre tudo, mas não é como se tivéssemos qualquer poder em nossas mãos. Ainda que soubéssemos de algo, passaríamos nossas vidas vivendo de planos não concluídos, com você presa em algum lugar no meio do nada pensando em como poderia ter vivido sua vida. É provável que meu pai consiga a desculpa perfeita para colocar Malfien em meu lugar como sempre quis, mas tirando isso, esses objetivos que pretende atingir... Talvez eles só estejam longe demais de nossas mãos. Mesmo que eu assumisse o trono algum dia... Estamos falando de dar nossas vidas por algo que nem sabemos o que realmente é.
Lis sorriu.
- Sabe, Ian, depois da morte da minha mãe e depois de Nox... Pensei muito no que fazer. Passo os dias me perguntando se a realidade que vejo não é fruto de um mero desejo em achar algo que justifique tanta dor... Mas é como se cada pedaço arrancado de mim alimentasse ainda mais essa desconfiança, é como se os pequenos fatos insistissem em sussurrar em meu ouvido suas próprias verdades que ainda tem se costurado... Mas entre tantas dúvidas, o que tenho certeza é que fazer com que meu pai perca esta aliança e de alguma forma atrapalhar esse indeterminado futuro, e ainda assim poder viver ao seu lado, seria algo pelo qual eu certamente lutaria - completou ela, abraçando-o.
Por um breve momento, pôde sentir que tinha poder sobre suas próprias escolhas. Uma vida sem as responsabilidades que lhe foram impostas, sem jantares de aparências e de vidas escorrendo por suas mãos. De nenhuma forma parecia tão ruim, apesar de saber que sentiria saudades das broncas de Yuki a cada movimento mal feito ou dos conselhos de sua mãe sempre que precisasse. Na pior das hipóteses, se não conseguissem, o destino de Lis se manteria, ainda que duvidasse do seu. Ainda assim seria melhor viver pensando sobre o que poderiam ter feito.
Na próxima lua, na badalada do último sino, estes encontrariam seu destino.
A princesa, ao contrário de Cavian, provavelmente não tivesse nada a perder, seus tesouros já se encontravam guardados junto aos deuses antigos e provavelmente só em uma nova vida pudesse garantir que encontrasse novos deles. Ela dispensara o jantar aquela noite. Todos entenderiam de qualquer modo. Sua reação era esperada de certa forma, ao contrário do que viria a seguir.
Cavian
Cavian acordara antes do primeiro raio de sol. Depois de anos sobrevivendo àquele mundo, finalmente havia achado algo pelo que devesse se erguer. Estava entusiasmado de certo modo. Nunca fizera algo como aquilo. Passaria anos sem vê-los na esperança que o mundo mudasse, ainda que talvez essa mudança nunca viesse. É bem provável que Yuki não aprovasse sua decisão, mas talvez as portas também fossem abertas para que encontrasse seu caminho, afinal, passara anos vivendo à sombra de quem poderia ser. Deixaria uma carta de despedida, não do modo que ela gostaria, cheio de enigmas para resolver. Por mais que tentasse, nunca chegaria perto de algo que a desafiasse de qualquer forma.
Foi até o jardim do castelo ao fundo, para encontrar Egen. Havia um único lago no castelo, moldado entre as cavernas escondidas na própria montanha e sombreado pelas aveleiras de copas largas e arredondadas perto do muro que o separava de um profundo penhasco. Um dos segredos que tornava Blackhelm tão segura. Os únicos acessos fáceis seriam pela frente, o que facilitaria o trabalho de qualquer exército ou pelos ares, o que naqueles tempos tornava a missão de invadi-lo quase impossível.
O lago era o esconderijo perfeito para Egen, e Cavian sabia disso. Quando pequenos, costumavam jogar pedras nos lagos de Aquia para encontrar o amigo que costumava viver no fundo das águas profundas. Talvez parte de sua natureza o chamasse para viver perto das sombras e do silêncio, assim como seus antecessores, ainda que fora dela parecesse querer garantir que não houvesse qualquer semelhança, uma dualidade certamente intrigante. A dádiva partilhada entre ele e os Nateluriano conferira ao amigo o apelido de dragão das águas. Cavian pegou uma pedra irregular ao chão, grande o suficiente para chamar a atenção, mas que ainda cabia em sua palma. Ao jogá-la ao lago, não demorou muito para que Egen subisse à superfície.
- Diga, meu amigo - exclamou Egen ao emergir sobre o espelho d’água. - Estranho te ver tão cedo por aqui – observou, sentando-se sobre as bordas de pedras que circundavam o lago, enquanto chacoalhava seus cabelos esverdeados com as mãos. Vestia somente uma calça escura que mais parecia com a pele escorregadia dos peixes.
Cavian se agachou e olhou para os lados cuidadosamente, enquanto pôde perceber somente alguns guardas ao longe.
- Precisava que entregasse essas cartas amanhã – disse ele sussurrando, retirando os pacotes de dentro do colete.
- Está me assustando, Ian, por que você mesmo não as entrega?
- Não estarei por aqui, meu amigo... Não sei se há alguma forma melhor de dizer isso, mas fugirei com a princesa de Audar esta noite.
- Oi? - Egen paralisara por um momento, parecendo não acreditar em suas palavras. Cavian sabia muito bem quais as consequências ele estaria enfrentando e provavelmente era o que se passava na cabeça de seu amigo naquele momento. As histórias eram contadas por todos em Aquia, dos pequenos aos sábios, e todos sabiam que os traidores carregariam sua sentença e que até mesmo os príncipes não saíriam impunes. - Você tem noção de que será considerado um desertor, Ian? Já seria ruim o suficiente se fosse sozinho – questionou Egen finalmente, ainda que Cavian já esperasse o tom repreendedor de suas palavras.
- Sim, é por isso que tenho sido cuidadoso. A única pessoa com quem vou me encontrar antes de partir é você.
- Cavian, pense bem... – disse Egen segurando firmemente em sua nuca. - Você trilhará um caminho sem volta, meu amigo, abandonará o trono... Isso mesmo, o trono do maior império desde a era antiga, um trono que a maioria arrancaria seus próprios olhos para alcançar, por conta da princesa humana?
- Ela fará o mesmo por mim.
Egen meneou a cabeça, respirando fundo antes de finalmente suspirar.
- Sendo sincero não sei o que pensar, no momento acho que está sendo precipitado e inconsequente, com certeza mais que o normal... Mas se acha que será feliz assim, que tipo de amigo eu seria se tentasse impedi-lo, não é mesmo? – disse Egen, sorrindo finalmente a Cavian, que respirou aliviado.
- Sei que poderia contar com você, meu irmão – deu o último abraço em Egen.
- Só não me mande cartas dizendo que está com saudades – brincou Egen, enquanto Cavian ria ao se levantar.
- Provavelmente sentirei mais saudades de você do que de suas piadas, mas prometo que um dia voltaremos a nos encontrar, meu amigo, em um mundo melhor que o de hoje. Cuide deles por mim.
- Você também se cuide, meu irmão – disse Egen ao também se levantar. – O mundo lá fora é bem mais perigoso do que qualquer coisa que tenhamos imaginado – completou bagunçando o cabelo de Cavian em seu gesto de despedida ao amigo.
- Quando eu voltar é bom que se prepare então, porque será um alvo fácil pra mim.
Ambos riram.
Cavian havia prometido que voltaria, mas sabia que o destino não estava em suas mãos. Com sua partida, o sucessor do trono passaria a ser Malfien, assim não restara dúvidas do desejo em seu coração para que seu pai ainda vivesse por bons e longos anos. Mesmo com a benção dada pelos antigos deuses, ele tinha certeza de que os dragões não partiriam tão cedo, afinal, os únicos que poderiam desafiá-los partilhavam agora do mesmo vinho e das mesmas ambições.
Cavian
Andava por uma travessa que ligava as torres, um largo corredor com longas aberturas laterais interrompidas por pequenos pilares de metros em metros. Cavian se dirigia ao seu quarto para finalizar os preparativos para a viagem. Preparara o essencial, ainda cedo havia adquirido um pequeno barco no estaleiro, por uma quantia que provavelmente daria para comprar uma dúzia deles. O silêncio tinha seu valor, e o pescador que o vendera agora poderia viver por alguns anos sem maiores preocupações. As montanhas nevadas ao sul eram um local onde as histórias eram tão raras quanto as pegadas marcadas no chão. Depois de um tempo poderiam pensar em um lugar melhor, mas a prioridade agora era que seus rastros sumissem em meio ao mar e à neve. Um barco pequeno como aquele não poderia fazer um trajeto muito longe da encosta, e velejando durante toda a noite, provavelmente seria o suficiente para fugir de qualquer perseguição que porventura viesse a ocorrer.
Pensando em tantos detalhes, tomou um susto quando percebeu que sua mãe o aguardava ao final do corredor.
- Ian, que bom encontrá-lo, está tudo bem? – indagou Melin logo à sua frente. Cavian tinha a estranha sensação de que ela pudesse ler pensamentos e sabia que sua pergunta não havia sido em vão.
- Apenas pensamentos ao vento, minha mãe – respondeu com um sorriso enquanto a cumprimentava, beijando o dorso de mão que trouxera junto de si.
- Desse jeito acabará exatamente como sua irmã.
- Ainda tenho uma longa estrada a percorrer – brincou ele, enquanto ambos se entreolhavam com olhares carinhosos.
- Algum desses pensamentos tem relação com o casamento da princesa de Audar?
- Alguma vez já conseguiram esconder algo da senhora?
- Não por muito tempo – respondeu sua mãe, com o elegante sorriso habitual.
- A senhora é feliz, mãe? Digo, em todo esse emaranhado de problemas e obrigações, há alguma coisa que a faça ter vontade de continuar vivendo tudo isso?
- Hmm... Provavelmente mais do que imaginava tempos atrás... Vivi outros tempos, Ian, tempos nos quais sobreviver talvez fosse o objetivo da maioria de nós e que ainda assim poucos de nós tiveram a sorte de alcançá-lo. A vida que tenho hoje talvez seja a melhor das que eu poderia ter vivido, meu filho... Muitos acham que com o poder em mãos é possível controlar o próprio destino, mas só que já viveu os dois lados pode entender que isso não passa de uma ilusão – disse Melin arrumando o cabelo que caíra sobre seus olhos pelo vento gentil que os cortava. - Não há dúvidas de que pode senti-lo, mas são tolos aqueles que acham que podem trancafiá-lo junto de si. Quando os ciclos se findam Ian, e eles certamente se findarão hora ou outra, independente dos desejos de quem os tem em mãos, sejam homens ou deuses, tentar moldar a realidade que nos foi dada para aquilo que esperamos, sem arrependimentos pelos erros que só seriam claros no avançar dessa busca, talvez seja a melhor forma de encontrar o que sua jovem mente chama de felicidade.
- Entendo... Pelo que a senhora diz, seria impossível que meu pai ou quem quer que fosse pudesse controlar o destino de alguém?
- Exato, como eu disse, é somente um devaneio daqueles que ainda não o perderam. Veja seu pai... Ele ingenuamente acha que nosso casamento ocorreu por sua exclusiva vontade, mas se eu não decidisse fazê-lo, nunca teria acontecido. Não quero dizer que não há consequências Ian, eu decidi e vivi cada uma delas, boas ou ruins, mas foram minhas escolhas e não poderia culpar ninguém por ter feito o que fiz. Como disse, independentemente de qualquer ordem que recebesse de seus avós, independentemente de qualquer efeito que qualquer ação que tomasse pudesse produzir, os caminhos estavam à minha disposição. Uns mais fáceis, outros mais difíceis, mas ainda assim todos à minha disposição. As escolhas ainda são nossas, apesar dos caminhos incertos.
Cavian sorriu.
- Sabe, mãe, gostaria que os velhos deuses me dessem o dom de saber decidir meus caminhos mais sabiamente, assim como a senhora sempre fez.
- Não tenha essa prepotência - soriu Melin. - não disse que escolhi os melhores caminhos, disse que os tomei por vontade própria. Por mais sabedoria que um dia possa adquirir, não existe certo ou errado, porque no fim só há como trilhar um deles. Se posso te dar um conselho – disse ela puxando sua mão esquerda e a cobrindo com suas palmas acalentadoras, em um gesto de carinho materno que Cavian certamente sentiria falta. – Sempre é melhor que conviva com o fato de que a escolha foi sua, porque quando os bons ventos vierem, eles carregarão a certeza de que você nunca poderia ter se abdicado deles. Esse será o momento que terá a certeza de que fez a escolha certa – concluiu ela puxando a cabeça de Cavian em sua direção e dando um beijo carinhoso em sua testa. – Agora vá, meu filho, parecia estar com pressa.
Cavian deu um abraço apertado em sua mãe. Passaria um tempo até que voltasse a encontrar seus braços, ainda assim o deu como se fosse o último, já que por um momento, talvez pela saudade daquelas palavras que sempre alcançavam sua alma, sentiu que deveria tê-lo feito.
- Muito obrigada, mãe... Por escolher estar em minha vida. – agradeceu ele com os olhos marejados enquanto segurava as mãos de Melin.
- Lembra dos bons ventos que te falei? Você e sua irmã sempre serão meus maiores presentes. Espero que algum dia vocês possam ser abençoados pelos velhos deuses assim como fui e possam ter a sorte que tive ao encontrá-los – concluiu sua mãe acariciando seu rosto enquanto sorriam um ao outro.
Cavian se despediu. A conversa com sua mãe apagara as dúvidas que insistiam em habitar sua mente. Trilharia seu próprio caminho assim como ela fez um dia. Sentia-se reconfortado de certa forma, sempre passara a vida pensando que ela não tivesse tido outra opção e que alguns destinos eram inevitáveis. Talvez quisera que essa conversa tivesse acontecido anos atrás, ainda que achasse que provavelmente não a entendesse naqueles tempos.
Cavian
Cavian ficara em seu quarto o restante do dia. Havia preparado uma pequena mala, alguns mantimentos que pegara escondido no salão mais cedo que durariam cerca de duas semanas para ambos, mais do que suficiente até encontrarem um abrigo seguro. Água e tecidos encontraria no barco que comprara no outro dia. Não poderia levar mais do que uma mochila, a locomoção seria difícil de qualquer modo.
Posicionou-se sobre a abertura da janela. A troca de turno aconteceria daqui a alguns instantes, devendo chegar à janela antes da badalada do último sino. Cavian novamente pulou entre brumas, mais rápido dessa vez, sabia exatamente seu destino e sua capa enegrecida farfalhava e chicoteava no ar com violência. Quando chegou ao seu destino, Lis já estava à sua espera, linda aos seus olhos como sempre, enquanto a luz penumbrada da lua revelava a face da princesa. As vestes que ela vestia, levemente largas e de cortes retos, provavelmente haviam sido subtraídas de algum dos soldados de pouca estatura, já que provavelmente não permitissem algo além de vestidos em seus grandes armários de madeira. A capa escura com o capuz que só não cobria os poucos fios desamarrados sobre o rosto da princesa também era fruto do combinado da outra noite. Deveriam ser imperceptíveis, silenciosos como os lagos entre as montanhas e invisíveis como o vento que soprava nos campos abertos.
Não falaram nada um ao outro, ainda que dificilmente precisassem, quando os sorrisos em seus rostos pareciam falar por eles. Qualquer ruído estranho poderia alertar os guardas, ainda mais naquela hora em que os únicos sons eram do estalar das tochas que iluminavam os corredores. Lis vestiu a mochila que pegara de suas mãos, dividindo o lugar com a sacola de couro que já carregava consigo. Depois disso, pulou em suas costas, abraçando-o em volta do pescoço e cruzando as pernas sobre sua cintura. O ar coberto pelas flores de jasmim era entorpecedor. Andou até o peitoril da janela e escorregou seus corpos em direção as paredes rochosas da parte externa da torre. Fixou suas mãos o suficiente para que o peso de ambos fosse suportando e aos poucos diminuiu o fluxo sobre seus dedos para que finalmente começassem a deslizar nas paredes em direção ao abismo, que só revelava as brumas sob seus pés. Lis o abraçava com a força de quem experimentara o medo pela primeira vez e só depois de alguns minutos foi possível vislumbrar algumas chamas na base da torre.
Os pés de Cavian finalmente tocaram a fina grama que cobria o jardim. Sentira o orvalho frio que escorria entre as finas folhas sobre seus pés nus. Não permitira que Lis descesse de suas costas. Ele poderia correr mais rápido com ela onde estava e o peso da princesa não era qualquer desafio para o sangue que corria em suas veias. O muro dos fundos era a melhor opção sem dúvidas, mas não teria as vantagens que teve ao escalar o castelo de pedras metalizadas, o abismo de rochas maciças e arenosas seria para ele como tentar se segurar em uma corda imersa em óleo, fazendo com que sua única opção se tornasse a saída pela porta da frente. O sino emitira a primeira de suas cinco badaladas e Cavian acelerava seu passo enquanto o sopro frígido o atacava com ferocidade. Lis se mantinha firme, ainda que provavelmente o chão visível sob seus pés fizesse com que seus braços levemente relaxassem. A segunda badalada se deu, assim como a próxima e a seguinte, até que ao fim da quinta badalada Cavian avistou o muro que planejava subir e como um felino pulou de encontro a ele. Não havia qualquer sinal de guardas por perto. Teriam poucos minutos até que o próximo percorresse o caminho até o ponto de vigília.
Cavian escalou o muro com uma destreza impecável, o que o surpreendeu positivamente, já que finalmente depois de anos pudera utilizar os anos de treinamento para algo que realmente parecesse útil. Não que as lutas com Yuki e Egen fossem desinteressantes, muito pelo contrário, mas nunca havia se sagrado vencedor contra Yuki e contra Egen, os seus feitos eram tão raros que poderiam ser contados nos dedos, o que conferira certa falta de credibilidade sobre seus esforços. Não se destacava entre seus irmãos em nada, mas ser o filho de um dragão ainda carregava suas vantagens, afinal, como o próprio Egen costumava dizer, ser o mais fraco dos dragões ainda era ser um dragão, e seus últimos feitos traziam essas palavras para luz da verdade de certo modo.
Em alguns bons segundos estava em seu topo, entre o portão principal e a torre de vigia lateral, no curto corredor de rochas que os separavam da liberdade. Não viu ninguém ao longe como esperava e não esperou até que a sorte o surpreendesse. Imediatamente correu o mais rápido que pôde, saltou sobre o peitoril e se agarrou às pedras pelo lado de fora do castelo, deslizando da mesma forma como fizera na torre. Estavam relativamente distantes da escadaria principal, onde eram focados os cuidados da guarda real. As paredes retas de Blackhelm desciam por alguns metros até os pés da montanha, onde somente mais abaixo era possível encontrar os vilarejos de casebres rústicos e de pouco engenho que se espalhavam por Fisbia. O castelo certamente tinha seus informantes, mas seus olhos procuravam por exércitos escaladores, não por suicidas se jogando ao abismo.
A luz da lua tentava iluminar de modo tímido a descida entre as brumas e o coração do príncipe dragão só se aliviou quando seus pés finalmente puderam tocar o chão.
- Conseguimos, Ian... Realmente conseguimos! – sussurrou Lis entusiasmada, encarando-o com olhos brilhantes e alegres, logo após descer de suas costas.
- Temos que chegar ao porto ainda, Lis, e rápido, qualquer tempo perdido é precio... - Não conseguiu continuar quando os lábios da princesa encontraram os seus e as mãos sedosas abraçaram seu rosto. Seus pensamentos simplesmente haviam fugido dali. Quando sua consciência voltara a si, teve a sensação de que talvez pela primeira vez, não tivesse qualquer dúvida de que tivesse tomado a decisão correta, talvez os ventos mencionados por sua mãe tivessem vindo cedo demais. Sabia que ninguém poderia pará-lo até chegar ao barco e até então o castelo permanecia tão mudo quanto os leões empedrados que o guardavam.
- Não se preocupe demais, vai dar tudo certo – sussurrou novamente a princesa enquanto seus sorrisos se entreolharam.
De mãos dadas, aceleraram os passos silenciosos entre corredores que ziguezagueavam, ora espaçosos ora apertados, entre as paredes coloridas de barro. Mesmo com os rostos cobertos pelas capas escuras, a busca dentro das próximas horas seria inevitável e quanto menos pistas dadas, mais longe estarão dali quando descobrirem o que realmente aconteceu. Cavian sempre puxava a mão de Lis e se guiava pelos sons que alertavam seu ouvido aguçado. No caminho não encontraram nada mais do que gatos e grilos, somente eles pareciam ter coragem de sair nas ruas ameaçadas pelos novos tempos. Foi somente ao fim da segunda hora que pode avistar finalmente o cais.
O local era mal iluminado, mas havia revisitado o caminho tantas vezes, que tinha impressão que sequer precisasse de seus olhos para chegar ao seu destino. Não havia qualquer movimento perto do porto. Apertou a mão de Lis de forma mais firme e se encaminharam a quietos passos em direção ao barco, quando de repente, quase que por reflexo, desviou de dardo que passara a poucos centímetros de seu pescoço, quando a noite se tornara dia. Não eram luzes de tochas e sim de globos mágicos que pairavam no ar. O temor tomou todos os seus sentidos quando finalmente viu a silhueta em meio às sombras. Cusgar seguia na direção deles. Não arrastava seu martelo como antes. Estava desarmado, porém com a mesma armadura de outrora. Com a luz, ele também avistara atiradores em pelo menos seis direções no topo dos prédios, e outra multidão de soldados que acompanhava seu general. Ele puxou Lis para trás de suas costas ainda que acreditasse que dificilmente os machucariam, era também o que indicava o dardo atirado, o mesmo que utilizavam nas caças de campo. Eram príncipes e seus destinos seriam selados pelo julgamento dos deuses. Sabia que poderia derrotar os soldados, mas não Cusgar, conhecia suas histórias e viu de perto o que podia fazer. Jogou a mochila ao chão. O peso atrapalharia sua próxima ação.
- Cavian Inazuma Suneater e Lis Archel Tinebrig, pela lei dos povos... – bradou Cusgar quando sua fala foi interrompida pelo soco do príncipe em sua direção. Atravessara alguns metros em alguns segundos. Era rápido, rápido como um descendente de Iscalon deveria ser. Seu punho fora contido por Cusgar, acertando a proteção do antebraço da robusta armadura, mas sua joelhada encontrou seu destino, mesmo contra as placas de ferro. As centelhas que transbordaram seu corpo eram de tom azulado e seu som lembrava uma revoada de pássaros que percorreram o corpo de Cusgar. O impacto de seu joelho no estômago do general teria sido o suficiente para desacordá-lo, mas Cusgar mal se mexeu. Cusgar travou a mão no seu punho direito, o mesmo que usara para acertar o general inicialmente. Tentou se desvencilhar puxando seu braço e aplicando um novo golpe com sua perna esquerda, mas agora sem a velocidade que atacara anteriormente. Cusgar novamente ignorou o golpe. Os caminhos luminosos corriam no corpo de Cusgar como as águas de um rio, mas de alguma forma pareciam não o afetar. Era forte demais. Pegou seu outro braço. Sua velocidade não era mais uma surpresa e não podia se mover de qualquer modo. Olhou para trás e viu Lis alvejada pelos dardos vindos dos telhados já ajoelhada ao chão. Ela havia tentado correr em direção aos dois, sem qualquer sucesso, com os olhos impotentes e desesperançosos.
- Desgraçados. Lis, fuj... – não conseguiu sequer terminar a frase. Cusgar avançou seu crânio contra o dele. Sentiu o metal frio e inflexível tomar sua consciência. Ajoelhou diante de seu oponente, que soltou finalmente seus braços. As luzes se tornaram esparsas. Tentou desesperadamente encontrar Lis, tateando o chão a sua frente, mas os globos de luz se tornaram tão densos que só o que via era luz e sombras. Um arrepio gelado percorreu sua espinha, a respiração tornou-se curta e superficial, como se os pulmões se recusassem a se encher de ar.
Seu desejo havia sido maior do que poderia realmente ser capaz de defender. No fim, não foi possível mudar seu destino e as luzes finalmente se apagaram, afinal, ninguém poderia desafiar os deuses, nem os antigos e nem os novos.
MOVIMENTO VINTE E DOIS
Lis
Lis acordou assustada com os raios de sol que atingiam seu rosto. O vento estava calmo naquela manhã e sua cabeça doía como se tivesse sido acertada por um martelo. Também pudera, lembrava dos detalhes do terrível pesadelo daquela noite , ainda que estranhamente passara a mão esquerda em seu pescoço e sentira os hematomas. O desespero tomou conta de sua mente, não havia sido um sonho afinal, ela e Cavian haviam realmente sido pegos. Todos esperavam por eles naquela noite, com consequências que estava disposta a desvendar.
Levantou rapidamente e trocou a camisola sedosa e branca que a acompanhava pelo primeiro vestido que encontrara no armário, tinha que conversar com alguém, precisava saber se Cavian estava bem. Tentou a abrir a porta, que parecia estar emperrada, negando-se a acreditar que estivesse trancada ali. Puxou com violência dessa vez e a porta permaneceu imóvel.
- Alguém me ajude! – gritou ela batendo repetidamente na porta de seu quarto. O som da madeira maciça não ecoava como esperado, mas a força fora suficiente para que alguém por perto a escutasse.
- Senhora, seu pai pediu para que permanecesse em seu quarto, ele mesmo virá vê-la no tempo adequado – respondeu uma voz firme do outro lado.
Lis reconheceu a voz, era de um dos guardas que sempre vigiava seu quarto. Johan talvez, não se recordava ao certo. Respirava energicamente. O pânico começou a espalhar sobre seu corpo, fazendo com que sua consciência oscilasse por algum momento. Não sabia o que fazer, nem mesmo podia sair daquele lugar. Andou até a janela para tomar ar, enquanto observava toda a calma ao seu redor, como sempre costumava ser. Cavian provavelmente ficaria preso em seu quarto também até o casamento. Era provável que agora, qualquer ação impensada refletisse sobre o futuro de dele. O destino talvez tivesse dado a eles uma segunda chance. Afinal, exceto por Cusgar e seus guardas, ninguém presenciou o que acontecera na noite anterior.
Lis
Já era fim da tarde quando a porta finalmente se abriu. Não era seu pai como esperava, era Egen, que apareceu pela porta e a fechou logo em seguida, enquanto seu coração encheu de esperança.
- Egen, que bom revê-lo – disse ela esfregando os olhos inchados e ainda marejados.
- Minha princesa, que bom que está bem, venho lhe adiantar que seu pai conseguiu sua absolvição desde que mantenha o compromisso do casamento.
Lis assentiu.
- Cavian está bem? – questionou ela sem titubear. Era só o que importava no momento.
- Infelizmente não, minha princesa, essa é uma das coisas pelas quais vim até sua presença. Consegui autorização de minha mãe para que passasse dos guardas, mas não tenho muito tempo. Não sei nem como dizer isso – disse ele com a voz embargada. – Mas... Bem... Cavian não se encontra mais entre nós. Sua execução... Sua execução ocorreu na noite de ontem. Sei disso porque escutei uma conversa entre Bahamut e minha mãe esta manhã. Manterão ela em segredo e dirão que ele fugiu – continuou Egen com os olhos rebaixados. – Não pude fazer nada – completou ele caindo em lágrimas enquanto a princesa desabava de joelhos. O olhar atônito não conseguia mais acompanhar as palavras que vieram em seguida. Cavian havia morrido por sua causa, foi ela que havia concordado em fugir, mesmo sabendo dos perigos que os aguardavam. Foi ela que deixara a ambição pela vingança contra seu pai e seu irmão falar mais alto do que qualquer limite.
Egen se ajoelhou também, segurando suas mãos pálidas e frias.
- Desculpe, minha princesa... – parou por um momento enquanto buscava fôlego. - Imagino o que esteja sentindo, Cavian foi um irmão para mim. Quando soube a única coisa que queria fazer era acabar com tudo isso... – fez uma breve pausa. - Mas depois de um tempo percebi que ele certamente não gostaria que sua morte tivesse sido em vão. É o que vim propor a você. Não obedeça às ordens de seu pai. Vou me certificar de que você fuja como um dia ele desejou. Ele havia deixado três cartas para ser entregues essa manhã, uma para Bacus, uma para Yuki e outra para sua mãe. Seu maior desejo era que vocês dois vivessem uma vida livre. Melin irá nos ajudar.
Lis desabou a chorar. Tinha planos com Cavian que nunca mais poderia realizar, mas Egen tinha razão, não poderia deixar se abater, era o que esperavam que ela fizesse. Sabia o quanto aquele casamento era importante para seu pai. O peso de tudo aquilo levara ela a pensar em desistir de sua vida por um momento, mas isso seria apenas mais uma desculpa para que criassem a história que fosse mais conveniente a eles. Sua fuga deveria servir de mensagem aos demais que quisessem enfrentá-los. Deveria envergonhá-los e deixá-los expostos. Se Melin e Egen estavam dispostos a lutar, ela também lutaria. Devia isso a Cavian e não tinha mais nada a perder. As lágrimas de outrora finalmente secaram.
- Tudo bem, Egen... Só me diga o que preciso fazer – disse ela decidida, enquanto secava o rosto. - Só peço uma coisa, quero que todos saibam que decidi fugir, que decidi não me curvar aos desejos deles. Quero que seja algo que nunca esquecerão.
- Fique tranquila minha princesa, faremos o maior show que esse mundo já viu – respondeu Egen sorrindo, enquanto beijava sua mão. – Agora tenho que ir, esteja preparada quando a hora chegar. Melin irá vir te preparar para o casamento.
Lis
Passaram-se três dias, até que o dia do casamento real finalmente chegasse. Lis recebia suas refeições no quarto e seu pai não a visitara desde então, muito menos seu irmão. Não fazia nenhuma questão de qualquer modo. Era um dia ensolarado, ideal para o evento que a aguardava. Não passara nenhum dia sem pensar em Cavian, tão pouco tempo e tantos sonhos, não lembrara da última vez que se sentiu assim. Depois que sua mãe morreu, ela e seus irmãos prometeram junto à sua lápide que cuidariam um do outro, não importava o que acontecesse, e assim viveram por anos até que o mundo real os atingisse. Com a partida de Nox não lhe restara mais nada, até que meses atrás aquele prazer em viver retornara, aparentemente só para lembrá-la que a felicidade era algo que nunca conseguiria alcançar. Era preciso camuflar os olhos cansados e o coração ainda raivoso para o que estava por vir.
Melin adentrou o quarto, assim como uma ajudante que a acompanhava carregando o vestido branco e perolado impecavelmente dobrado sobre seus braços. Era uma rainha formidável, seu quimono azulado em tom claro tinha tecidos que acariciavam o chão com leveza e que lembravam as águas de uma cachoeira. Seus cabelos brancos e longos haviam sido amarrados em um pequeno pedaço de madeira entalhado em formato de pena, com pequenas escritas que Lis não conseguira identificar. Uma jovem rainha que transpirava poder da forma mais sutil de sua existência. Estranhamente não parecia abalada de qualquer modo, sorria como sempre, como no jantar dias atrás e impregnando o ambiente com a mesma paz de outrora. Como poderia? Cavian deixava subentendido nas cartas por diversas vezes o amor que tinha por sua mãe. Seguramente era um sentimento recíproco, tamanho sentimento não poderia ter crescido sem ser semeado, disso Lis tinha a mais clara certeza. Vivera na própria pele como os laços podem ser fortalecidos ou corrompidos. De qualquer modo, não perderia tempo tentando entender suas razões. Tinha o mesmo desejo que o dela e isso já bastaria para quem quer que fosse.
- Posso abraçá-la? – perguntou Melin repentinamente.
Lis não se furtou. Por um momento parecia ter voltado aos tempos remotos nos quais passeava nos campos de trigo com sua mãe e irmãos. Eram tão altos que a cobriam na época. Tempos tão distantes que mal se lembrava da sensação. Pôde sentir quanto o trote acelerado em seu peito finalmente se acalmou e quando seus pensamentos se clarearam como a luz que entrava pela janela.
- O tempo curará sua dor, minha querida, e meu filho permanecerá em suas boas lembranças assim como permanecerá junto das minhas para todo sempre – disse Merlin terminando seus cumprimentos.
- Com certeza estará, minha rainha... – pausou por um breve momento olhando para o chão e pensando nas palavras que viriam. – É só que não consigo aceitar o que fizeram.
- Trocaria de lugar com ele se pudesse, mas não fui hábil o suficiente para anteceder seus planos e ajudá-lo adequadamente. Pela primeira vez na vida como mãe, me senti impotente – disse ela segurando as mãos de Lis, enquanto por um momento ela pôde sentir sua dor. Momentaneamente, em um pequeno instante de deslize, sentira a aflição que a rainha tentava esconder habilmente. - Tivemos uma boa conversa antes disso e a única certeza que sempre tive é que Cavian, mesmo sabendo das consequências que o esperavam, faria tudo outra vez. Ele sempre foi aquele que arriscaria sua vida para salvar aqueles que ama, mais do que qualquer outro... Essa sempre foi sua verdadeira dádiva, ainda que muitas não a enxergassem.
- Meu coração, que se fora com sua partida, tinha a certeza disso, minha rainha. Dedicarei meus dias para que sua morte não tenha sido em vão.
- Não viria até aqui se não tivesse essa convicção – respondeu Melin voltando a esboçar o sorriso habitual. - Mas agora deixe-me ajeitá-la – disse a rainha, que em um toque em seus cabelos substituira o avermelhado pelo castanho. - Você vestirá aquelas roupas ali - apontou para a acompanhante que começara a derreter em uma massa densa de barro e pequenas esferas cobertas por ele que Lis não conseguira distinguir, ainda que se distanciasse dos tecidos que cobriam seu corpo e do vestido festivo sem que pudesse sujá-los. Antes que pudesse pensar em perguntar, a rainha novamente se adiantou – Antes que me pergunte, se trata de magia antiga, difícil de conseguir os elementos necessários, mas meu ajudante é um exímio avaliador. Peço por gentileza que se vista com elas – completou ao apontar para as vestes campestres da ama, que se desfizeram quando logo depois se dirigiram à massa ao chão, acompanhando o movimento de giro da mão direita de Melin. Os dedos se moviam delicadamente para junto da rainha, enquanto a massa dispersa ao chão voltara a se movimentar se remoldando e dando forma ao vestido que ela mesma carregara instantes atrás.
Lis não acreditou em seus olhos quando terminou de tomar forma. Já vira magia antes, mas nenhuma como aquela. A magia tinha suas peculiaridades, mas moldá-la tão delicadamente era como esculpir um fino graveto com uma agulha. Uma cópia idêntica de sua face e traços. Não era possível sentir qualquer vida emitida dali, mas se tornara uma marionete perfeita.
- Não se preocupe, por mais que não fale servirá ao propósito. Era uma magia usada militarmente, então tive que fazer algumas adaptações. Você seguirá até o fim das escadas para a sala dos cuidadores. Ninguém estará lá, exceto por Egen.
- Desculpe, minha rainha, mas é um casamento real, os guardas conferirão cada detalhe no trajeto e os muros estarão repletos deles.
Melin sorriu.
- Não fugirá pelas estradas, pequena. Na bolsa presa em sua cintura encontrará um pequeno artefato. Coloque-o em sua boca quando chegar a hora.
Lis terminara de fechar as travas do corpete que cobria a blusa de cor parda que Melin trouxera. A saia de tecido liso, carregava uma calça colada por baixo do pano solto e parecia suficientemente boa para permitir que mexesse suas pernas livremente. O chapéu composto por uma touca que cobria seus cabelos amarrados e a aba arredondada que escondia seu rosto abaixado fariam o restante do trabalho.
Melin se despediu com um novo abraço.
- Muito obrigado, minha rainha, não sei nem como agradecer – respondeu ela.
- Só fique bem, minha pequena, viva a partir de agora por você e por ele. Será agradecimento mais que o suficiente. Tenho certeza que um dia poderão se reencontrar.
Melin abriu a porta, os guardas permaneceram imóveis enquanto a falsa princesa atravessava a porta.
- Está dispensada, Clarice, muito obrigado por sua ajuda – ordenou Melin sorrindo a Lis e aos guardas. Lis se curvou perante a rainha em sinal de cortesia e cruzou os guardas sem que dirigisse o olhar. A escada de descida estava às suas costas. Virou-se e se moveu cuidadosamente de modo que não chamasse qualquer atenção, mas sua vontade era de correr pela escadaria até seu destino. Não se recordava de a torre ser tão alta. Seu coração batia celeremente. Daria tudo errado novamente?, pensou ela aleatoriamente enquanto descia as escadas. O sentimento de vingança a dava forças e fazia com que suas pernas se movessem de algum modo. Faria com que os reinos aliados se passassem por tolos na frente de todos. Se os próprios reis, filhos dos deuses antigos, não conseguissem nem mesmo ter controle sobre seus próprios filhos, imagine em relação a problemas maiores como os libertos. Não sabia o que pensar em relação a eles, mas que havia algo de errado em toda história que estava sendo contada, disso tinha certeza. A morte de Cavian só confirmara a ela de que os reinos aliados não eram bons samaritanos como costumavam pregar.
Finalmente chegou à base da torre, uma sala redonda cheia de mesas e estantes vazias. De fato, não havia ninguém ali, mas Egen também não estava. O desespero de outrora começara a tomar seu corpo novamente até que ouviu um sussurro.
- Ei, Lis... Por aqui – escutou ela até que pudesse ver a silhueta de Egen em meio às sombras. Lis esquecera que Egen tinha sangue dos elfos da noite. Eram filhos das sombras e as conheciam como a palma de suas próprias mãos.
Foi quando finalmente se acalmou. Correu de encontro a Egen tentando não fazer barulho com seus passos. Egen pegou Lis pela mão fazendo um sinal de silêncio com a outra. Caminhavam por um corredor escuro cruzando a cabeça pelas tochas apagadas. Ela mal podia enxergar seus próprios pés à sua frente. Não era de todo mal, em todos aqueles corredores que se interligavam seria bastante difícil que alguém os achasse em meio a tamanha escuridão. Depois de alguns minutos, viu uma pequena luz no horizonte e ao chegarem à uma das portas de saída à área externa Egen se voltou para Lis novamente.
- Lis, precisamos ser rápidos agora – sussurrou ele. - Existe um lago a alguns metros daqui. Melin deve ter te entregue algo.
Lis aproveitara o pouco de luz que vinha da pequena janela da porta e pegara o artefato que Melin havia lhe entregue. Um tubo no formato de um T. Seu tom era um azul perolado, lembrando algumas das pequenas conchas das praias e tinha em si uma única abertura.
- Isso? – mostrou o artefato à Egen.
- Sim, é um respirador – disse ele. - Fará com que possamos fugir daqui. Mergulhe no lago assim que chegar até ele e use-o para respirar abaixo da lâmina d’água – disse Egen mostrando um outro respirador que tirara de um dos bolsos de sua jaqueta e colocou em sua boca brevemente demonstrando a ela seu uso. Era cinza, um pouco maior do que o de Lis e bem mais rústico apesar de parecer servir para os mesmos fins. Ao fim, guardou novamente em seu bolso.
Lis assentiu.
Quando Egen abriu a porta, caminharam por um momento. Havia guardas por todos os lados. Ao longe, em direção oposta, na qual se situava o portão de entrada, o som das trombetas soou. Não era um sinal de festejo e sim de alerta. Os guardas tomaram suas posições, olhando desconfiadamente para os dois. Não havia qualquer saída por ali de qualquer modo. Egen puxou sua mão apressando o passo, quando viu o corpulento Bahamut contornando uma das torres em suas asas que batiam ferozmente contra o ar. Tal imagem foi suficiente para congelar sua espinha. As asas negras cortavam o vento como finas lâminas e a cólera de seu olhar poderia ser sentida mesmo àquela distância. Sabiam que não haveria misericórdia por parte dele. Havia sido capaz de matar o próprio filho, não seria qualquer desafio os eliminar. Correram tanto quanto puderam para o lago não tão distante, ainda que seus olhos comprovassem que o rei dos dragões chegaria em instantes.
Os guardas apontaram suas bestas e pareciam aguardar com semblante indeciso, esperando que alguém atirasse primeiro. Sabiam que a morte de um príncipe, por mais justa que fosse, provavelmente significaria abraçar a própria morte. Talvez por isso as setas imprecisas atingiram a fina grama próxima aos seus pés da princesa, talvez dessa forma pudessem dizer que tentaram pará-los.
A alguns metros do lago, Lis avistou os guardas mais próximos serem arremessados contra os muros atrás de suas armaduras. Viu quando Melin chegara pelo corredor lateral, o lado oposto pelo qual viera Bahamut, finalizando um gesto de mãos. Lis pensou em parar por um momento, mas Egen novamente puxou suas mãos. Não havia tempo, o único plano era chegar ao lago. Bahamut estava prestes a alcançá-los quando uma lufada de ar o atingiu e o jogou contra o muro de Blackhelm com a força de golpe de aríete, enquanto os cabelos de fogo da princesa, agora castanhos, balançaram-se e se debateram ao vento.
Bahamut gargalhou, enquanto cravou o punho ao chão para se erguer sem dificuldades.
- Ora, mas que surpresa, minha própria rainha apoiando uma rebelião – disse o rei dos dragões. – Acham mesmo que podem enganar seu rei e trair seu reino outra vez? Seus cegos olhos não enxergam a vala diante de seus próprios pés – ameaçou o rei dragão com a voz grave que alcançava os instintos primitivos de qualquer coração.
- Os jovens partirão, meu rei, não há nada o que possa fazer para impedir – retrucou Melin.
Quando Lis parou instintivamente para ajudar Melin, Egen agarrou a cintura da princesa e a arremessou em direção ao lago sem nenhum esforço, pulando e mergulhando logo em seguida. Lis abriu sua bolsa já sob a água e pegou o instrumento conforme Egen a orientara. Assim que posicionou o bocal em seus lábios o denso entorno pareceu se tornar uma densa massa de ar, tamanha a facilidade com que respirava. Egen também utilizara o seu. Lis bateu os braços e pernas na tentativa de submergir, mas Egen a abraçou novamente, puxando seu corpo rapidamente para o fundo do lago. Com o braço direito ainda estendido em direção à rainha, pôde ver quando ela caminhara seus passos em direção ao rei dragão, antes que seus olhos fossem obstruídos pelas rochas da montanha sob a água.
Melin
- Sua subserviência sempre foi uma das poucas qualidades que admirei em você, assim como o resto de sabedoria que pareceu se esvair com o tempo. No fim, todos de sua raça parecem se perder dentro das regras patéticas de suas vidas terrenas, tentando fugir de suas próprias fraquezas e temores.
Melin sentira aquela estranha sensação novamente que a acompanhava durante toda a manhã. Recordara-se das lições de seu pai, uma das que se orgulhara de ensinar longe dos olhos de sua mãe. Os tesouros proibidos, como eram chamados nas escritas antigas, eram as magias que aproximavam os mortais de seus deuses. No entanto, o uso do sagrado artifício sempre cobrava algumas moedas, já que toda mente sábia reverberava dentro de si a sua primeira regra, o equilíbrio era a chave da magia.
Ela sabia que alguém a observava por meio de seus próprios olhos. Foi certamente como descobriram o que estava por vir. Ela própria já havia utilizado do mesmo artifício algumas vezes e era bastante provável que outros tivessem sido utilizados como inalcançáveis espiões. Cavian? Lis? Não teriam percebido se o tivessem feito. Era sutil, quase que um sussurro em meio ao caos e imperceptível para a absoluta maioria dos mortais. Seu observador não a observava o tempo todo e nem podia, os tesouros proibidos não receberam o nome por mero acaso. Ele se tornaria vulnerável, o que exigiria certamente certo tipo de planejamento. De qualquer modo, Melin se certificara de que ele continuasse observando o que estava por vir, impedindo que qualquer informação adicional pudesse ser repassada além dali. Sabia que Bahamut iria tentar interceptá-los, mas sem qualquer sinal de sua fuga e com ele ocupado com ela naquele lugar, algum tempo precioso conseguiria ser dado a eles. Sempre um passo à frente do oponente, dizia seu pai quando pequena enquanto a ensinava as artes táticas da guerra em um pequeno tabuleiro que os acompanhava todas as tardes, quase sempre ao som da densa chuva e da queda das águas das cachoeiras que circundavam o castelo de Matsu. Yuki a lembrava nisso. Foi o que a fizera sobreviver em um terreno perigoso e hostil de pessoas igualmente hábeis e sagazes. Não enfrentara a guerra de lâminas como seu pai, mas batalhou entre as palavras que se cruzavam e a cada peça que se movia no tabuleiro dos tronos. Fora mais do que o suficiente para prepará-la.
- Sabe, meu rei... – iniciou ela lentamente se aproximando de Bahamut sem que o temor a alcançasse, - Te acompanhei por todos esses anos, sabia quais eram suas ambições e frustrações desde que nossos olhares se cruzaram pela primeira vez. Desde então cada passo foi medido até que chegássemos até aqui. No caminho pensei que provavelmente e pela primeira vez eu pudesse tê-lo superestimado. Seu ego evidentemente é algo grandioso, mas poderia transpassar a razão que sempre o guiou? O tempo pode ter me levado a sabedoria, mas certamente você ainda os teme, não é? O pequeno poder que ainda exercem sobre esse mundo o faz estremecer, sabe que é incapaz de escapar do destino traçado por eles – chegou finalmente perto de sua face, sentindo o ar quente de suas narinas bufosas e encarando-o com a coragem que sempre lhe fora peculiar. - Lembre-se da frase que te disse naquela noite chuvosa. Os deuses abençoaram nosso filho, e sua morte lhe trará a ruína do reino dos céus. Seu destino foi selado por suas próprias mãos, meu rei – terminou ela com o costumeiro sorriso em seu rosto.
Quanto Bahamut sorriu de volta, seu coração finalmente se confortou.
- Você sempre achou que sabia de tudo, mas não tem qualquer ideia do que está por vir, minha rainha – disse o rei dos dragões agarrando seu pescoço, com as garras frias se dedilhando até que quase o cobrissem por inteiro. Olhou-a como um predador que finalmente capturara sua presa. Me deixe sair, me deixe sair!, dizia a voz angustiada que ecoava na cabeça de Melin. Uma voz feminina e familiar. Nunca tivera a oportunidade de fazer algo parecido e se divertiu com o desespero de quem a observara de longe. Podia senti-lo agora tanto quanto a mão posicionada em seu pescoço. Certamente um erro de cálculo – Você carrega a mesma soberba que eles carregavam antes de partir. O reino de seus falsos deuses perecerá e você poderá levar a mensagem pessoalmente até eles. Diga a eles que não me faltará coragem para fazer o que precisa ser feito.
Em um movimento rápido as garras de Bahamut atravessaram seu estômago e a ergueram ao ar. As gotas orvalhadas da fina grama aos seus pés se mancharam de vermelho. Ela não desviou os olhos de Bahamut ou emitiu qualquer som. Mantinha seu sorriso, um calmo e aterrorizante sorriso, o que nunca fugira de sua face desde que partira das calmas águas de onde nascera em direção ao reino dos dragões, o que escondera tristezas e suas fraquezas e que a permitiu chegar até ali, para que fizesse sua última jogada, assim como seu pai a ensinara um dia.
FRAGMENTADO
Cavian

Podia sentir a frieza do ferro em seu pulso que puxava seus braços para longe de seu corpo. Sua face fora selada por algum tipo de elmo, mas sem qualquer viseira habitual, o que o impedia de enxergar. Podia sentir seu peso e as pequenas ranhuras da estrutura ferrosa colada ao rosto. A pequena abertura em sua boca se unia em sua nuca à uma linha gelada que corria por suas costas. Eram como pregos cravados em sua espinha, presentes e pulsantes, ressoando com os espasmos que ora o levavam dali e ora o traziam de volta para aquele lugar. O vento gélido corria sussurrante e a fina roupa que vestia era como uma peneira ao sol. Não o incomodara tanto assim. Lembrava dos tempos que Bacus o levara ao cume da montanha de Jizu, o ponto mais alto de Aquia. Estivera poucas vezes lá, mas se lembrava do ar que quase congelava seus pulmões a cada respiração que puxava. Era possível ver toda Aquia a seus pés, enquanto Bacus lecionava a importância das estruturas políticas do reino em aulas que duravam muito mais do que os ponteiros dos relógios insistiam em marcar. Não sabia se era dia ou noite, mas pelos ventos que o atingiam e pela umidade que sentira na ponta de seus pés descalços, era provável que estivesse sob as estrelas. Era como se tivesse sido pisoteado por uma manada de Bívios, gados de pelagem grossa, geralmente utilizados por mercadores para carregar seus arsenais.
As correntes tilintaram quando tentara se erguer. Não restavam muitas forças em seu corpo, mas tentou se esforçar para permanecer de pé. Ainda estava ligeiramente atordoado quando ouviu o rangido da porta ao se abrir.
- Vejo que acordou, meu jovem – disse a voz grossa e entusiasmada. O sotaque parecia não ser familiar, ainda que todos falassem a língua comum, era possível distinguir algumas pequenas diferenças. - Fique tranquilo... Você receberá aqui um tratamento digno de um príncipe.
- Deve haver algum mal-entendido... – disse ele tentando manter o tom de voz a um nível audível, enquanto engolia sua seca saliva. - Sou Cavian, filho de Bahamut, rei dos dragões de Aquia... – pausou novamente buscando fôlego. - Peço por gentileza que comunique a ele ou a alguém do reino que estou aqui.
Cavian escutou a gargalhada abafada daquele que o assistia.
- Mas foi ele mesmo que te mandou para cá, meu caro. Inclusive acredito que sua mãe morreu a dois dias trás. Não sei ao certo o que ocorreu, mas é o que sei... É só isso que desejava vossa alteza? – completou o homem em tom debochado. – Segundo o que me passaram... – executou uma pausa, enquanto a língua limpava os dentes emitindo um exótico zunido. - Esta será sua casa até que sua mente esteja livre do desejo de trair seus irmãos.
Cavian estava atônito. Seria verdade o que aquele homem estava dizendo? Dois dias atrás não significava nada para ele, não sabia quantos dias tinham se passado desde então, a última coisa que se lembrava era das luzes esparsas antes de apagar. Sua mãe morrera? Lis estava bem? Só imaginava que algo grave havia acontecido. Um ataque dos libertos talvez. Com certeza era por isso que estava ali, o capturaram para extorquir informações. Provavelmente Lis havia sido poupada. Seria muito mais fácil se a usassem em suas ambições. Precisava manter a calma, havia estudado como se portar em situações como aquela. Tentariam quebrar sua mente de alguma forma, criando um atalho mais fácil para as informações que desejavam. Precisava fortalecer seu corpo de qualquer forma, não conseguiria lutar naquelas condições. Com mais força poderia se livrar daquelas correntes e descobrir o que de fato acontecera.
Não respondeu, tampouco fez força para que ficasse de pé. Caiu contra as correntes que o seguravam. Percebeu que o homem se deslocara rapidamente para perto dele.
- Ei, príncipe, acorde! – disse o mesmo homem dando alguns tapas na máscara de metal que cobria seu rosto. – Pelos deuses, achei que esses nobres fossem mais resistentes. – resmungou enquanto se afastava. Cavian não gastaria suas energias com aquilo. Nem que tentasse conseguiria informações confiáveis, e mesmo que as tivesse, naquele estado não conseguiria fazer muito.
Cavian
Passou algum tempo até que fosse acordado por uma torrente que o atingiu. A água recobrara seus sentidos. Não sabia se estava pior ou melhor, nem quanto tempo passara desde seu último lampejo de consciência, mas certamente pôde perceber os detalhes que o cercavam com mais clareza.
- Ei, vossa alteza! – disse a mesma voz anterior. – Há comida e água para você. – completou o mesmo homem de antes, no momento que Cavian sentiu as correntes se afrouxarem e seus braços colarem ao seu corpo. Ajoelhou-se por um momento. Era a posição mais confortável que encontrara desde que chegou ali. Tateava o chão em busca da comida. Estava tão faminto que seu estômago ronronara em aflição. Tinha a impressão que mesmo que relutasse não conseguiria recusar tal oferta.
Encontrou uma pequena tigela, provavelmente de barro pelo tatear de seus dedos. Não se preocupara em analisar seu conteúdo, nem tivera realmente a opção, mas se o quisessem morto certamente não teriam aguardado até aquele momento. Ingeriu um líquido viscoso com alguns pedaços de carne, ainda que o que quer que tivesse sido usado para o preparo parecesse ter sido morto e curtido na própria panela a dias atrás. O cheiro fez com que seu estômago revirasse em protesto ainda que a fome se relutasse a recusar a única comida que encontrara nos últimos dias.
- Ora, ora, parece que realmente está vivo. Bem que Splenze disse que melhoraria ainda que demorasse – falou o homem observando por um momento o desespero voraz pelo prato que havia trazido. - Parece que não está muito a fim de falar comigo, mas você falará. Os mestres se certificarão disso – completou, enquanto saia novamente do local batendo a porta. Cavian escutou o correr do metal pela porta duas vezes. Nada muito desafiador desde que se livrasse daquelas correntes.
Depois de um tempo sentiu o calor dos primeiros raios de sol que o atingiram, apesar do vento que ainda soprava frio. Não dormira após a refeição. Aproveitara o limite das correntes para analisar onde estava. Era uma sala arredondada de pedras cuidadosamente polidas, não deixando frestas ou quinas, exceto pela porta de entrada, de ferro e provavelmente de espessura avantajada como já esperava. Poderia ter alguma vantagem afinal. Escutara o canto característico de Cirilos no topo, animaizinhos rechonchudos, de olhos grandes e pequenas asas transparentes que costumavam habitar regiões ao norte. O som era um zumbido modulado como sopros de flautins. Conseguira dar quatro passos largos do centro para todos os lados e os pequenos flocos de neve que caiam indicavam que a estrutura não possuía qualquer cobertura, apesar de achar impossível que conseguisse pular o suficiente. No fim, o intuito parecia estar bastante claro, conceder uma esperança inalcançável, já que escalar aquelas paredes lisas era impossível para quem quer que fosse. Tentara até mesmo sentir os metais nas paredes, mas infelizmente os únicos locais onde conseguira senti-los era em suas correntes e na porta à sua frente.
Escutou passos distantes. Voltou rapidamente ao seu lugar original, centralizado com os joelhos contra o chão áspero, tentando buscar em sua atuação o aspecto mais lastimável possível. As trancas se abriram. Diferente dos outros passos firmes de outrora agora eram passos sutis. Também escutou outro som, como se estivessem arrastando algo pelo chão.
- Veja, Ravel, que belo exemplar... – disse a voz arrastada enquanto Cavian sentia a sensação de ter seu coração tentando ser tomado pelo medo.
- Parece quase morto – completou a voz feminina, enquanto segurava seu queixo, levantando sua cabeça brevemente com os dedos longos e macios, antes que a soltasse logo em seguida.
- Ele se recuperará, foi um processo difícil de qualquer forma. Dumás disse que ele se alimentou pela manhã avidamente. Não demorará muito para que iniciemos o processo.
- Não tenho todo tempo do mundo, Graylock, dê um jeito de se apressar. Se sobreviveu às maluquices de Splenze, não será por minha mão que morrerá – ordenou Ravel, com a fala que parecia indicar um nível hierárquico superior.
Dumás era o nome do carcereiro, o que já era um começo. Ravel e Graylock, Cavian tentou lembrar dos nomes de algum lugar. O nome da mulher não lhe era estranho, provavelmente escutara algo similar nas conversas atravessadas de seu pai. Não lembrava de que tivesse utilizado tom hostil, com certeza o conhecera de algum lugar.
- Com licença, Sra. Ravel – iniciou Cavian. - Acredito que conheça meu pai Bahamut, rei de Aquia... Não a conheço, mas tenho convicção de que seu nome já fora citado a mim em algum dos eventos reais. Se puder fazer algo por mim, garanto a você que meu pai a recompensará.
Ravel gargalhou.
- Está vendo? Nem comecei e sua mente já se partiu ao meio, com isso certamente temos um novo recorde – debochou Ravel. – Meu caro, sei que é difícil acreditar em tudo que te falaram, mas posso te certificar que verdades e poucos devotos são as únicas coisas que circulam por aqui. Seu pai é quem gerencia esse lugar. Ele os coloca aqui e eu os devolvo ao mundo... Modéstia à parte com algumas melhorias.
- Senhora, entendo o que querem de mim, só adianto que não sou a pessoa ideal para que tentem algo do tipo. Não frequento as reuniões decisórias, tenho pouco conhecimento do que acontece nos bastidores do reino...
- Pelos deuses – interrompeu ela duramente. – Pare de ser tão idiota. Acha mesmo que somos contra seu pai, que queremos informações sobre seu reino? Nós somos generais dos reinos aliados, meu rapaz. Não ache que está naquele conto de fadas que acreditou estar. Sua mãe foi morta pelas mãos de seu próprio pai enquanto sua princesa escapava com seu querido amigo. Nem sua irmã permaneceu. O reino está um caos por sua causa, sua mãe morreu por sua causa. Pare de ser tolo e simplesmente acorde. Posso curar sua indisciplina, mas não posso curar sua burrice, isso terá que fazer por si mesmo – completou ela.
Sua mente fervilhava nas possibilidades, ainda que todas levassem praticamente ao mesmo lugar. Nunca utilizaram o fato de que Lis ou Yuki estivessem em perigo. Uma história como aquela não contribuiria em nada se as ambições de seus algozes fossem aquelas que havia pensado serem verdadeiras. Foi quando a tristeza tomara conta de seu peito. Seu pai não poderia ser capaz de fazer aquilo. Não se referia ao fato de estar ali. A traição em Aquia com certeza levaria normalmente à sua morte, todos Aquirianos conheciam as histórias, mesmo os mais jovens. Estar vivo já era estranho por si só, mas a realidade começara a tocá-lo. Não haviam sequer tentado extrair nada dele e a cada momento que se passava tudo o que procurara reprisar em sua mente começava a fazer mais sentido, o que fizera com que as lágrimas finalmente corressem por seu rosto.
- Ah, que pena, finalmente ele entendeu... – zombou Ravel. – Guarde suas lágrimas, meu príncipe, elas serão preciosas para o que virá a seguir – completou quando as correntes zuniram ao deslizar sobre a argola que as fixava. Cavian partiu para cima dos dois, quando quase que instantaneamente foi contido pelas próprias algemas em seus braços. Alguém as seguraram para que não corressem mais. Sentia a respiração próxima, ainda que não demonstrassem qualquer tipo de medo. Enquanto isso a fragrância do perfume doce dos ramalhetes de flores do campo tentava afagar seus instintos. Queria respostas logo e faria qualquer coisa para alcançá-las.
- Agora sim, parece com a descrição que recebi... Esquentado, acho que era o termo... De qualquer forma aqui não há mais espaço para comportamentos infantis, meu caro. A partir de agora você será meu brinquedinho – completou ela levando a mão ao pescoço de Cavian.
Cavian juntou as forças que alcançava e a eletricidade correu por seu corpo como antes, ainda que mais fracamente do que estava acostumado. Estilhaçaria aquelas correntes em um instante. Porém, estranhamente, o elemento que sempre lhe dera força havia encontrado outros caminhos. Sua máscara ardeu em brasas assim como todos os nervos do seu corpo. Parecia ter sido jogado junto à boca de um vulcão. Tentou levar instintivamente suas mãos ao rosto sem que conseguisse. Seu grito de dor ecoou nas paredes enquanto sua consciência se esvaía.
Cavian
Viu Yuki de relance, estava em Aquia novamente. As crianças de asas miúdas e de bicos coloridos corriam em meio ao templo de pilares altos, perto da estátua de Iscalon, o deus dos ares e dos dragões. Parecia verão, o clima era ameno e lá fora era possível ver o fino gramado cuidadosamente aparado que mais lembrava um tapete de linhas.
- Ei, Yuki – sussurrou ele com cuidado. O templo era um lugar sagrado afinal, não queria ser desrespeitoso, ainda que estranhamente só Yuki estivesse lá, ajoelhada ao genuflexório de pedra branca que se estendia do corredor central até alcançar as paredes peroladas cobertas pela história antiga.
Cavian se aproximara, mas Yuki parecia não o escutar. Quanto tocou seu ombro, ela se virou. Tinha os olhos opacos e a garganta dividida por uma cicatriz irregular, feita seguramente por uma lâmina sem fio.
O príncipe prontamente cambaleou seus pés para trás, afastando-se horrorizado. As crianças haviam sumido. Saiu correndo à porta, precisava encontrar alguém, mas quando olhou para o verde campo novamente, este havia sido tomado pelo fogo e pelas cinzas. Acelerou ainda mais o passo contra as chamas. Com os olhos dançando para os lados buscando algum refúgio, ainda que somente encarassem em vão a caótica paisagem. Aquia estava em chamas. Os corpos estendidos completavam a visão em meio aos restos das casas circulares que haviam cedido. A fumaça era tão densa que conseguira esconder até as estruturas montanhosas ao fundo.
Ouviu o bater das asas em sua direção. Viu seu pai, em sua forma original, corpulento como as calamidades divinas e com os olhos do tamanho do escudo partido em sua frente. Só o havia visto uma vez assim durante a infância. A raiva tomou conta de seu corpo enquanto o rei dragão o contornava, encarando-o nos olhos.
- Por que fez isso, meu pai? Por que destruiu o reino que tanto amava? – questionou ele com a voz embargada. – Pelos deuses, até as crianças? – disse ele enquanto as lágrimas tomavam seu rosto. - Yuki estava certa... Você não passa de um louco sedento por poder.
Bahamut gargalhou.
- Não fui eu quem fiz isso, meu filho. São suas mãos que estão cheias de sangue – quando Cavian levantou os braços e olhou para as próprias mãos, banhadas de vermelho, com uma tocha em sua mão direita e uma lâmina enferrujada e cega na outra, Yuki apareceu à porta do templo apontando o dedo em sua direção. – A traição leva à morte, Cavian. Já sabia disso – parou ele enquanto encarava Cavian. - Suas ações fizeram com que sua irmã e sua mãe traíssem seu próprio reino. Sua mãe não morreu por minhas mãos, você sabe que ela viria de qualquer forma. Só garanti que fosse rápida suficiente para que não sofresse. Não finja que a culpa não é sua, ao menos seja sincero consigo mesmo – completou Bahamut.
Cavian se ajoelhou nas brasas, soltando o que estava em suas mãos. Respirava com dificuldade. As palavras de seu pai não eram isentas de verdade. Arruinara a vida de todos aqueles que amava. Arruinara o futuro de seu reino. Arruinara a própria paz que os deuses lutaram para obter. Era um câncer para aquele mundo, um que tinha a obrigação de extirpar. Pegou a lâmina alaranjada ao chão. Suas mãos queimavam sem que se importasse. Empurrou a lâmina contra seu estômago quando passou a sentir tentáculos correndo contra as partes expostas de seu rosto.
- Estamos progredindo, meu rapaz – disse Graylock, enquanto Cavian respirava apressado tentando recuperar o fôlego. – Estou libertando sua mente de todas as mentiras que carrega consigo – completou ele, enquanto percebeu a mudança do ambiente.
Cavian estava sentado agora. Era uma cadeira de ferro que parecia ser uma extensão do chão gélido que tocara a sola de seus pés. Seus braços presos a ela, assim como suas pernas e sua cabeça que também fora travada em algum tipo de encosto. Não era só incapaz de se mexer, mas também de falar, ainda que ninguém prendesse sua língua. Era somente reflexo do sentimento que inundara sua mente, em um dilúvio de culpa e frustação. Preferia que tivesse o destino dos transgressores. De qualquer forma, não merecera permanecer vivo depois do mal que fizera.
- Todos os dias estarei por aqui. Você ficará amarrado por hora para que não faça nada estúpido. O começo é sempre difícil, mas garanto que se acostumará – completou Graylock enquanto partia.
Cavian conseguiu se manter acordado por hora, enquanto aquelas imagens permaneciam em sua mente, repetindo-se como o pôr do sol.
Passaram horas até que Dumás voltasse trazendo sua comida e água. Seus pulsos foram novamente amarrados às correntes, enquanto a cadeira fora brevemente afastada.
- Ei, príncipe, precisa comer. Logo sairá, os mestres sempre terminam rápido. Não durará mais do que alguns dias – disse o carcereiro esfregando algo sobre o chão.
As palavras de Dumás passaram no vazio. A vontade que tentara cultivar a outrora desaparecera por completo. Sem que pudesse fazer nada naquele estado, seu único desejo era que definhasse da pior forma possível. Só o sofrimento traria justiça por tudo o que fez.
Cavian
Os dias se passaram, sem que houvesse qualquer preocupação de sua parte em tentar contá-los. Todas as vezes que os sonhos se repetiam, parte de seu próprio eu se desintegrava. Provavelmente não restaria muito mais tempo até que aquelas correntes deslizassem sobre seu fino pulso. Não comia há dias. A única coisa que aceitara ingerir era água, para que pudesse prolongar sua dor. A escuridão também não parecia tão aterrorizante como antes. Entendia agora que era um preço mais do que justo a ser pago. Sua morte apenas acabaria com a dor, era um destino conveniente demais, um que não merecia. Concordou em comer o mínimo necessário aquele dia, o que animou Dumás. Havia sido o primeiro a durar por tanto tempo naquele estágio.
- A senhora Ravel irá te visitar hoje, finalmente chegou à metade do caminho. – dizia Dumás, soltando-o da cadeira, ainda que habitualmente reclamasse. Passara dias limpando-o com baldes d’água em sua cabeça. Havia menos trabalho com ele daquele jeito, mas eram ordens de seus mestres, daquelas que jamais ousaria em discordar. Acabou mencionando que o último que o fez morreu meses antes, enjaulado daquela mesma forma.
Passaram poucas horas até que ouviu novamente o arrastar de algo em sua direção. O cheiro era inconfundível. Não eram passos de qualquer forma, ainda que não conseguisse distinguir como Ravel se locomovia. Seus ouvidos pareciam melhores, ao ponto de achar que nunca os havia utilizado desde que nascera, tamanho os detalhes que passara a conseguir analisar.
- Está atrasado, meu rapaz, e meu tempo é precioso. Não gosto de desperdiçá-lo com teimosos ou idiotas – pausou Ravel por um momento como se o estivesse estudando. – Bom... Parece que está bem, mas não quer falar. Acha que viver dessa forma é uma forma de pagar pelos seus crimes, correto? – dizia ela, constatando de alguma forma o jeito como Cavian realmente pensara. – Antes que pense algo, já adianto que não é nenhuma magia para ler mentes, é que já fiz isso tantas vezes que o comportamento sempre é o mesmo. As mentes que dizem ser tão diferentes, parecem não ser tão distintas quanto pensam. Aqueles que decidem viver tentam se autoflagelar enquanto conseguem. Venha e abra a boca, é somente algo que te ajudará no processo – disse ela virando a cabeça de Cavian para trás e gotejando algo em sua boca. Engoliu de qualquer forma, estava inclinado a aceitar tudo que pudesse piorar sua situação, mas infelizmente não sentiu nada de diferente.
- Você é culpado pela morte de sua mãe, príncipe dragão? – perguntou Ravel.
- Sim – respondeu ele ainda que relutasse. Era como um reflexo. Esforçara-se ao máximo para tentar se manter calado, mas era como se alguém tomasse o controle de seu corpo por um instante.
- Bom... – disse ela pausando por um momento, parecendo anotar algo em algum lugar. Cavian escutava o som dos rabiscos contra uma superfície que não conseguia distinguir.
– Você reconhece seu crime de traição junto ao seu reino?
- Sim – respondeu ele novamente. Concordava com as respostas, só não queria dá-las a ela, ainda que não conseguisse fazer nada para impedir.
- Acha que merece ser punido pelo que fez?
- Sim.
- Estaria disposto a obedecer ao seu pai, Bahamut, o rei dos dragões e dos reinos aliados, visando a reparação de seus erros com o reino de Aquia por toda a vida que lhe restar?
- Sim.
- Mesmo contra aqueles que amara um dia, entendendo que a paz do reino é mais importante do que ambições pessoais por quem quer que seja.
Pausou por um momento. Sua mente entrou em conflito por um instante até que finalmente respondesse.
- Não – respondeu ele finalmente.
- Maldição! – esbravejou Ravel, jogando algo ao chão, irritada com a resposta que pareceu inesperada. – Parabéns, meu príncipe, você é comprovadamente um idiota, assim como aquele que me procedeu. Dumás, chame Graylock à minha sala imediatamente – ordenou ela.
Ele não sabia dizer ao certo o que acontecera. Mas lembrara daqueles que que ainda restavam nos pedaços de memória que guardara consigo. Bacus com seus sábios conselhos, Yuki com suas maluquices, Egen com suas brincadeiras e finalmente Lis, com seu sorriso que parecia fazê-lo se afastar de tudo o que estava passando ali. Será que estavam bem? Gostaria de pensar que sim. Talvez a morte de sua mãe já tivesse sido um castigo suficiente dos deuses para seu próprio egoísmo. De qualquer forma estavam provavelmente foragidos, vivendo clandestinamente, sendo perseguidos, em uma vida que passaram a viver por uma escolha dele, o poderoso Cavian Inazuma Bahamut, detentor do menor cérebro e do coração mais egoísta de Aldoin. Entendera finalmente os sábios de Aquia. Como em sã consciência pensara que algum dia pudesse assumir o trono? Que atrocidades teria feito com tal poder? Estava claro agora porque tinham sustentavam suas posições. Cavian não se atentara aos detalhes. Era infantil demais, desinteressado demais e inconsequente demais para se tornar rei, talvez os próprios deuses tenham se encarregado de corrigir a rota.
Cavian
A sessão daquele dia foi diferente. Não encontrou Yuki no antigo templo. Viu Lis, linda como sempre, com o vestido esverdeado daquele primeiro baile. Ela pegou sua mão e o conduziu para fora, atravessando o grande portal de saída. Estava alegre, como nunca a vira antes. Prometera em uma de suas cartas que a levaria a Aquia um dia.
Caminharam alguns passos pelo gramado até que tudo começou a se transformar novamente. Com o mesmo mar de corpos ardendo em meio às brasas e entulhos. Lis o puxou novamente com um sorriso alegre, como se não percebesse aquilo que se passava diante de seus olhos.
- Venha, meu príncipe, não me negue um passeio – convidou Lis com um sorriso estampado em seu rosto como era de costume.
A respiração do príncipe dragão pesou enquanto seu corpo permaneceu imóvel.
- Venha, meu príncipe, não se assuste, não é a primeira vez que passeamos... Lembra? Nossa felicidade deve vir sempre em primeiro lugar...
- Chega, Lis – repreendeu ele rispidamente. - Não vê o que aconteceu aqui? – questionou ele soltando a mão da princesa. - Não está vendo que estão todos mortos? – gritou ele inesperadamente a ela.
- Mas você me prometeu, Ian – disse a princesa com a face entristecida. – Disse que você estaria sempre ao meu lado, não importa o que acontecesse. Você mentiu para mim? A vida deles é mais importante do que a minha? – continuou com a voz embargada.
Cavian acordou novamente transtornado. Sentiu o calor em seu corpo, usou instintivamente seu poder e assim como na outra vez os metais se aqueceram. A dor, no entanto, o ajudou a limpar seus pensamentos. Sabia que Graylock estava ali. Sentia sua presença de alguma forma, não era o barulho de sua respiração que conseguira distinguir, isso já estava lá antes. Era como se por algum momento pudesse saber exatamente onde estava. Certamente um devaneio.
- Sei que está exausto, meu príncipe, mas precisa me ajudar a tirá-lo daqui. Ravel só permitirá sua saída se responder as perguntas corretamente – orientou Graylock bondosamente.
- É o que quero também – respondeu ele finalmente. – Preciso entender meus erros, se me ajudar com isso continue até onde quiser.
Graylock nunca fizera duas sessões em um único dia. Sabia dos resultados. Porém, Ravel havia se tornado impaciente. Sabia quais as consequências que aquilo poderia lhe trazer e Cavian não era um qualquer, seu vigor físico e mental era diferente de tudo que havia chegado a ele até então. Nunca falhara como acontecera na última vez e Ravel pensara que talvez pudesse estar perdendo a mão. Longe disso, sabia que havia vasculhado cada pedaço da mente de Cavian mais de uma vez. Nunca fizera um trabalho tão meticuloso antes. O sangue dos dragões mostrara seu valor, o que o levara a seguir seus instintos e atender o pedido do príncipe.
As sessões se sucederam por dias sem que houvesse qualquer resultado novo, mais tempo do que o esperado. Ainda assim, Cavian não conseguia responder Lis. Graylock fora mais incisivo a cada dia, testando limites que nunca haviam sido explorados anteriormente. Cavian parecia cada vez mais atordoado e fora se si. Por vezes chorara copiosamente ao final dos testes, o que demonstrava uma instabilidade crescente e incontrolável. Era bastante provável que seu limite fosse atingido em breve e que sua mente se quebrasse. Era um risco que Graylock precisava correr de qualquer modo. Sabia que seu próprio tempo estava acabando.
De volta ao templo, Lis ofereceu novamente sua mão à Cavian, mas havia mais alguém ao fundo, suas vestes enegrecidas eram panos pesados sem qualquer emblema. Um capuz de mesmo tom cobria seu rosto. Nunca o vira ali antes.
- Ei, idiota – disse o homem ao canto, enquanto Cavian era puxado pelas mãos por Lis em direção ao portal.
Cavian parou por um momento tentando prestar atenção ao homem.
- Sim, você, o príncipe idiota – gritou o homem a Cavian.
- Não sei quem é você, mas esse aqui é um templo sagrado, deveria ter mais respeito – respondeu Cavian enfaticamente.
- Você é quem deveria ter algum por si mesmo – retrucou imediatamente, enquanto Cavian tentava conhecer a voz familiar misturada aos demais sons que chegavam ao seu ouvido. – Acha que entrar nesse joguinho deles adiantará alguma coisa? Se quer fazer algo realmente decente, aja, não fique como um soldadinho desses acéfalos. Não percebe o quanto estão desesperados?
O homem caminhou na direção dele e finalmente tirou o capuz. Era uma imagem espelhada de sua face e de seus cabelos azulados, ainda que fosse difícil se lembrar de sua própria imagem depois de todo aquele tempo.
- Nossa, que surpresa – disse o homem de maneira debochada. – Eu sou você também. Um novo você. Vou tentar te ajudar a perceber que passar a vida inteira se remoendo por seus erros não vai nos levar a lugar nenhum. Aliás, as pessoas com quem se importa ainda estão lá fora correndo perigo enquanto você fica aqui igual um bebê chorão.
- Eu as coloquei nessa situação – disse Cavian.
- Sim e está fazendo o que para tirá-las da condição que você mesmo criou? Seu plano é, além de colocá-las lá, deixar que tentem sobreviver até que sejam pegas para terem um destino igual ao seu? Bravo! – ironizou batendo palmas. – Brilhante eu diria!
- E o que sugere que eu faça? Não consigo passar naquele maldito teste – respondeu ele decepcionado, enquanto avaliava as falas de seu outro eu. De fato, ficar ali não mudaria as consequências de sua ação de nenhuma forma.
- Primeiro, pare de ser burro ao ponto de achar que eles nos deixarão ir em nosso estado atual. Se não percebeu, só sairemos daqui quando nos tornarmos um zumbi, moldado exatamente de acordo com seus interesses. Um que não poderá fazer nada além de murmurar, exatamente como faz hoje. Se esse é o caminho que quer trilhar é melhor que desista logo – completou duramente.
- Já avaliei tudo, é impossível sair daqui sem que permitam, por mais que eu tente, aquele elmo me impede que eu use qualquer poder.
- Ah, sim, entendi... Mal consegue se manter de pé e acha que tem condições de pensar em algo. As oportunidades sempre aparecem, meu caro. Apareceram durante nossa vida toda. Nos provamos contra todos que achavam que éramos incapazes até que parassem de questionar. Não pararam porque tiveram pena de nós e sim porque nos impomos. Esse seu discurso de autopiedade só fará com que o sofrimento que você mesmo gerou a elas só aumente. Se realmente quer fazer algo, não tente fingir ser quem não é.
Aquelas palavras o atingiram como uma saraivada de flechas. Tinha razão, sua mãe se fora, mas tinham outras pessoas que se importava que ainda estavam lá. Precisava ajudá-las mesmo que não o perdoassem pelo que fez. Não tinha o direito de partir ou de se dar ao luxo de ficar ali por toda vida. Precisava corrigir seus erros independente do que precisasse fazer.
- Obrigado – agradeceu ele, enquanto soltava a mão de Lis.
- Sem essa, parar de reclamar a cada dois segundos já será um agradecimento mais do que o suficiente – terminou ele, cobrindo-se novamente com o capuz enquanto tudo se escurecia.
Cavian acordou do transe. Estava diferente e Graylock percebeu sua mudança de feição. Sabia até onde tinha ido e onde aquilo poderia levar. Os que chegavam ao limite permaneciam em estado alterado de consciência de modo permanente, como se suas mentes vagassem dentro de seus corpos até que seus próprios corpos perecessem.
- Não está adiantando, acredito que eu esteja fraco para o processo – disse ele em tom exausto.
- Creio que terá que descansar de fato – disse ele desconfiado. Havia algo errado em seu tom de voz. Parecia que esquecera de todo aquele tempo que estava ali. Não parecia prestes a quebrar como antes, mas a mente era um universo vasto, cheio de possibilidades, talvez a dele só tivesse apagado aquelas memórias. Já acontecera antes, não no estágio em que se encontravam, mas de qualquer forma talvez não fosse de todo mal, assim poderia explorar outras alternativas.
- Sabe me dizer quando chegou aqui? – perguntou Graylock aleatoriamente.
- Poucos meses, acredito – respondeu.
- E sabe a razão de estar aqui?
- Porque trai meu reino e meus irmãos, meu senhor, e mereço pagar pelos crimes que cometi – respondeu ele confiante.
- Hmm... Parece bem. Te darei uma folga hoje. Amanhã continuaremos. – disse Graylock com a costumeira apatia. - Dumás, pode assumi-lo, visitarei os outros hóspedes – completou enquanto o capataz trancava a porta. Sabia que demoraria mais algumas horas até que voltasse. Precisava se fortalecer. Quem quer que fosse aquele que o encontrou tinha razão. Nunca estivera tão acostumado como antes. Seus outros sentidos pareciam muito melhores que antigamente, algo que abria novas possibilidades. Sabia exatamente os momentos em que chegariam até ele. Havia a bendita porta de ferro e se pudesse controlar sua eletricidade de forma menos potente era provável que pudesse utilizá-la. Poderia tentar inclusive abrir o trinco da porta se a controlasse adequadamente e se conseguisse se livrar daquelas correntes. Onde estaria Yuki naquela hora? Sempre fora a que melhor em controlar as nuances da magia, como uma maestra conduzindo uma orquestra. Não à toa era admirada pelos sábios Aquirianos que tinham em sua essência o mesmo dom, ainda que sem o mesmo poder.
Cavian
Passou a se alimentar regularmente e as sessões pareciam não ser tão exaustivas, ainda que os pesadelos criassem novas raízes a cada adormecer. Novos dias se passaram e Graylock se mantivera na mesma situação. Ravel já havia feito dois novos testes não satisfatórios. Até que naquele dia pareceu desistir.
- Chega, Graylock, não há mais nada a ser feito. Levarei a Bahamut que falhou – repreendeu Ravel.
- Não há falhas, Ravel, sua mente foi fraca e se quebrou no processo. Parece ter entrado em um loop que não consigo desfazer. Uma reação bastante incomum eu diria, mas pelo menos seu desejo de morte passou. Começou a se alimentar conforme solicitado. Preciso pensar em algo, fale com o rei que preciso de mais tempo.
- Bom, não é problema meu se você é um incompetente – esbravejou Ravel. - Não é meu papel julgar seu destino de qualquer forma. Apenas levarei o relato do que aconteceu. Inclusive, é bem provável que até mesmo o rei tenha se esquecido. Há tempos não me solicita retornos e pelo que me disse era um filho imprestável desde jovem. Talvez tenha sido melhor assim. De qualquer forma o mantenha vivo e saudável. São as ordens do rei – finalizou ela se retirando.
- Como desejar – respondeu ele, permanecendo onde estava e saindo logo em seguida.
Cavian estava satisfeito. Não se sentia mal afinal, pelo contrário, se agarrara em um único objetivo, sair dali para que ajudasse a reparar os danos que causou. Viu, não disse que desistiriam de nós? – escutou a voz dentro de sua cabeça.
- Pelos deuses! – respondeu assustado para si mesmo ainda que fosse estranho. - Achei que me acompanhava só naquelas visões.
Só dar tempo a eles agora. O tempo passará e ficarão mais descuidados. Continue nos treinando para quando chegar a hora.
- Tudo bem, já me disse isso. Apenas fique onde está, o.k.? Cuidarei da situação.
Não seja ingrato, eu que nos tirei dessa.
- Não estou sendo, só é bem estranho conversar comigo mesmo, parecerá que estou louco.
Talvez esteja. – respondeu a voz. Cavian tinha noção de quão estranha era a situação, mas se por um lado era esquisito que pudesse conversar com alguém ali, por outro lado o lugar passou a não ser tão solitário.
Cavian
Começou a treinar seu equilíbrio se hasteando entre as correntes, encurtando-as em direção ao seu punho e levando seus pés ao céu como os morcegos que nunca escutara por ali. No começo mal conseguia se manter sem que caísse, mas com o passar do tempo se acostumara naquela posição, na qual passara e ficar por horas. Parecia encontrar alguma paz, uma que sempre estivera distante desde que chegou.
Também corria da porta ao fundo da cela, impulsionando-o contra a lisa parede com um único passo, pulando de costas em direção à porta, como uma longa pista infinita. Com o tempo recuperou o vigor de outrora, o que o lembrava dos exaustivos treinos quando jovem. Precisava novamente se provar, como nos velhos tempos, ainda que o gramado livre e as refeições sempre muito fartas em Aquia parecessem condições bem diferentes das atuais.
Eram somente duas refeições, o suficiente para que se sustentasse sem exagero. Não eram os apetitosos ensopados que sua mãe servia nos jantares de família quando estava presente, mas gostava de imaginar que fossem. Pensava nela de vez em quando e no que havia falado a ele antes de partir. Era preciso conviver com os resultados de suas ações e não fugir deles. Por mais que sua mente concordasse com aquelas palavras, seu coração ainda sentia a dor da saudade. Nunca mais a veria ou jogariam conversa fora, em ocasiões que tinham o poder de parar o tempo e nas quais o assunto era o que menos importava. Nas escassas ocasiões em que sua mãe estava presente, era com suas crianças que se ocupava, e por vezes ao fazê-lo enxergar coisas tão óbvias em seu mundo, tinha dúvidas se sua mãe o conhecia mais do que ele próprio ou se sua bagunçada cabeça apenas inventava dilemas para que ganhasse mais alguns minutos em sua companhia.
A LUZ PETRIFICADA
Cavian
Escutou passos em sua direção, novamente de Dumás. Tanto Graylock quanto Ravel não apareceram por dias depois daquela última conversa. Cavian se mantinha ajoelhado a cada vinda, mantendo-se com a aparência mais imprestável quanto fosse possível, apesar do contorno de seus músculos delatarem que não passava seu tempo dormindo. Ainda sim achou improvável que Dumás percebesse qualquer diferença. Via-o duas vezes por dia, o suficiente para que o achasse que estivera sempre como no dia anterior, ainda que qualquer outro que o visse agora dificilmente o associasse àquele rapaz faminto desejando a morte. Seus cabelos cresciam por dentro da máscara até que ganhassem a liberdade tão desejada por ele. Não que fizesse muita diferença, não enxergaria de qualquer modo. Preciso achar uma oportunidade, pensara ele enquanto navegava pelas possibilidades. Não escutava qualquer barulho de chaves das algemas com Dumás. Provavelmente não as tinha. Ninguém confiaria tal responsabilidade a um simples serviçal, o que limitava suas opções.
- Ei, senhor...Dumás, não é? – questionou Cavian quase como um sussurro. Estava sentado ao chão, abraçado aos seus joelhos como um animal indefeso ao centro da cela.
- Minha nossa, você ainda fala? – respondeu ele em tom surpreso. Não escutara a sua voz por dias e de acordo com o relato de seus mestres era bem improvável que ainda conseguisse falar.
- Quando vão me tirar daqui?
- Bom, não sei dizer, os quebrados sempre são abandonados. Geralmente vegetam até que seus corpos caírem ao chão. Já você sobreviveu de algum modo... Então o que posso dizer é que não sei o que vai acontecer com você, nunca chegamos até aqui com ninguém que eu saiba e os mestres vêm nos visitando com cada vez menos frequência. Parece bem agitado lá fora. Se puder te dar um conselho, só aproveite a estadia e torça para que um dia voltem e se lembrem de você – aconselhou Dumás rindo, enquanto enchia a concha em um balde para preencher a tigela que acabara de colocar ao chão.
- Por que veio parar aqui, Dumás? Parece não gostar muito desse lugar – questionou ele novamente.
- Só posso dizer que a pessoa que cuidava disso antes de mim está enterrada aos fundos, enquanto eu me farto de banquetes. É sábio pensar em estar do lado dos vencedores, sabia? Veja você, por exemplo, um príncipe que passará o resto de seus dias em uma cela, enquanto eu, nascido nas ruas e lutando por comida todos os dias, passarei todos eles te observando e me empanturrando de tudo que eu possa desejar. Não me parece um mau negócio – respondeu Dumás, pensativo, enquanto encarava Cavian curioso.
- Entendo... Ainda sim me parece não ter liberdade para ir aonde quiser... No fim está preso aqui assim como eu.
Dumás gargalhou.
- Não como você, meu rapaz. Imagino que tenha passado uma vida de fartura. Não sabe quantos trocariam essa liberdade que glamuriza por estar aqui exatamente no meu lugar. Os mestres estavam certos, algo quebrou em sua cabeça – respondeu Dumás dando tapas em seu elmo, enquanto se mantinha sem reação. – Como eu imaginava, não passa de uma carcaça vazia dizendo besteiras.
Cavian não respondeu a ele, mantinha-se indiferente. Dumás não era seu alvo, estava ali por uma simples casualidade. A única coisa que realmente o incomodava era que o carcereiro era impecavelmente metódico. Colocava as tigelas de comida e água sempre nas mesmas posições, a cerca de dois passos de Cavian, a de comida sempre à direita. Desconfiava que vinha em horários regulares também, já que com o tempo era como se pudesse prever quando seus passos chegariam aos seus ouvidos. Não sairia dali tão cedo, sabia disso. Mesmo que desacordasse Dumás não conseguiria se livrar das correntes, ao menos que as destruísse. Tentara algumas vezes, mas quanto maior a descarga que criava, mais o elmo e seu corpo se aqueciam. No fim, apagava antes que pudesse fazer algo. Puxara-as contra a parede também, mas tanto ela quanto as argolas não cederam, como se tivessem profundas raízes pelas paredes. Quem quer que tenha feito aquilo o conhecia como seu próprio pai. Novamente, Yuki estava com a razão, talvez a única que soubesse dos verdadeiros limites do rei dos dragões. Sua irmã o havia alertado por diversas vezes, mas ele preferira pensar que ela era apenas preocupada demais. Pediria desculpas quando se reunissem novamente, ainda que tivesse dúvidas se isso algum dia voltaria a acontecer. Tentava resistir à apatia, ainda que sua mente não encontrasse novos caminhos.
Cavian
Nevava naquele dia, mas não sentira o frio como antes. Era como se de alguma forma ele não se tornasse mais seu inimigo. Seus saltos agora pareciam lançá-los ao vento como pedras ao mar. Ainda assim, o tempo passava sem que nada mudasse. Começava a suspeitar que se preparava para a oportunidade que nunca chegaria a acontecer.
- Disse que sairíamos daqui, não disse? – disse ele conversando consigo mesmo.
Disse que sairíamos um dia. Você nem sabe quantos deles se passaram desde que chegou aqui.
- Como se fizesse diferença.
Você só reclama como sempre. Se está tão insatisfeito por que não deixa que eu assuma seu lugar?
Cavian riu.
- Não me leve a mal, mas não é como se você de fato existisse e eu pudesse simplesmente sumir. Você se considera tão superior a mim, mas se esquece que se eu realmente quisesse você nem estaria aqui.
Pelos deuses! Cavian, o mais poderoso guerreiro dessa cela acaba de me ameaçar – disse a voz em tom de deboche. - Não seja ridículo. Mesmo que pudesse eu sei que não o faria. Eu sei o que você pensa, esqueceu? Sei que acha que nunca sairemos daqui e toda aquela baboseira de salvar quem você acha que fez mal. No fim, nunca escutou nossa mãe como deveria.
- Você é tão sarcástico que às vezes acho que mesmo que você existisse te manteria escondido propositalmente.
Com certeza deve ser melhor do que ser esse derrotado e reclamão que decidiu ser. Acha que porque você decidiu honrar Yuki ou nossos pais, fez alguma coisa de útil? Não seja tolo! Tudo que fez até hoje foi pelos outros, sempre com medo de desagradar quem quer que fosse. Não admiro que nosso pai o tenha colocado aqui. Se o tivesse enfrentado quando teve a chance não precisaria estar descontando suas frustações em mim.
- Você acha que não tentei? Lis foi a primeira coisa pela qual decidi lutar e veja tudo o que aconteceu.
Acha mesmo que poderia impedir a morte de nossa mãe? Ela aconteceria de um jeito ou de outro, quem teve coragem de fazer isso só esperava a oportunidade, assim como estamos tentando fazer para sair daqui.
- Por vezes quase esqueço que você sou eu mesmo tentando me livrar da minha própria culpa.
Pense o que quiser. Se acha mesmo que só estou tentando te fazer bem, está enganado. Minha única intenção é que sobreviva para provar que estou certo. Pode choramingar por aí se for de sua vontade.
- Juro que venho repensando que talvez tivesse sido melhor eu ter ficado sozinho.
Escutaou uma risada dentro de si.
Temo que eu concorde com você.
Cavian
Naquela manhã se posicionou assim como em todas as outras, com os pés tentando tocar o céu. As vozes haviam se espaçado ao longo dos últimos dias enquanto se concentrava no canto daqueles pequenos pássaros que às vezes o levavam a voar entre as árvores e montanhas que nunca conhecera. Era como tentava manter sua mente estável.
Sentiu a corrente fluir entre seus dedos pela primeira vez, mas assim como nas outras vezes era puxada como um imã em direção às suas costas, ainda que a forçasse a se manter ali por mais difícil que fosse. Até conseguia por certo tempo antes que se cansasse e finalmente a liberasse para o destino que fora destinada. Criava outra e mais outra, na tentativa de moldá-las da mesma forma. Melhorara com o tempo, embora mais parecesse um passatempo do que algo que o pudesse realmente tirá-lo dali. No entanto, aquele dia reservaria algumas surpresas.
Inesperadamente, pareceu sentir um pulso ao longe. Tentou se concentrar ainda mais e pareceu estar vindo em direção à porta, caminhando como um grupo de pequenas abelhas ao vento, quando finalmente escutou o som das trincas, que abriram na mesma velocidade com que tombou ao chão.
- Está louco? O que está fazendo? Achei que não fosse mais tentar se matar. - repreendeu Dumás correndo em sua direção.
- Só estava tentando achar uma forma de passar o tempo – respondeu ele, ainda pensando no que acabara de acontecer.
- Sei... Não era o que pareceu. Não que me importe, mas as ordens são para que se mantenha vivo. Sua morte me trará problemas, se é que me entende... – resmungou Dumás, ajudando-o a se recompor.
- Não se preocupe, não farei isso.
- Assim espero, nada aqui terá qualquer utilidade para isso. Apenas se machucará e me dará ainda mais trabalho. Apenas se mantenha vivo e bem que não precisarei te trancar naquela cadeira, o.k.?
- Sem problemas – disse Cavian fixando a cabeça em direção a Dumás. Era como se pudesse vê-lo, ainda que bem turvamente. Não era o som de seus passos, era algo diferente. Parecia sentir os pulsos que vinham de seu corpo, assim como conseguira algumas vezes consigo próprio. Nunca tinha testado aquilo e não entendia muito bem como funcionava, mas talvez a capacidade de se concentrar naquela pequena corrente o ajudara com os pulsos menores. Os mestres diziam que os corpos vivos eram como bombas de eletricidade, com vários pulsos que se dispersavam inúmeras vezes a cada segundo, o que nos permitia mover ou pensar. Parecia tão abstrato à época, mas agora foi como se pudesse realmente senti-los, o que certamente o deixou ansioso para a próxima visita.
Novamente aconteceu, desta vez acompanhou Dumás até que chegasse à porta. Permaneceu sentado como sempre fez, com os braços entrelaçados às suas pernas, acompanhando o movimento do serviçal quando este entregava suas tigelas. Era como uma imagem dispersa, mas mais do que suficiente para o sentir o prazer de enxergar novamente. Pela primeira vez desde que chegara, pode sentir uma pequena fagulha de felicidade.
Podia enxergar aqueles pequenos pássaros agora ainda que ao longe parecessem mais dispersos do que a energia que sentira em Dumás. Era como se houvesse certo limite até onde seus novos olhos pudessem enxergar. Descobrira que a torre era muito mais alta do que imaginava, em torno de quarenta metros. Além disso, o mover dos pássaros indicava que não existia um teto, o que confirmou sua teoria inicial. Pousavam na borda da torre principalmente durante a manhã. Não sabia se aquelas paredes o atrapalhavam em sentir os pulsos ou se sua torre era afastada de alguma forma dos demais, mas lembrava que Graylock se referira a outros hóspedes no passado. Ainda que só conseguisse localizar as pequenas asas dançantes à sua cabeça e o ranzinza carcereiro, era como se as vozes que ecoaram em sua cabeça no passado talvez tivessem razão. O que mais poderia aprender? Estava ansioso por descobrir.
Cavian
Meses e mais meses se passaram, enquanto a esperança se tornara descrença. Havia, inclusive, diminuído seus treinos, apesar de ter se acostumado a fazê-los habitualmente. Até as inoportunas vozes o haviam abandonado enquanto o desejo de desistir aumentara. Não que achasse que fosse capaz de tirar a própria vida, mas se o tempo o permitira pensar na possibilidade, com certeza se encarregaria do resto.
Era uma noite silenciosa quando Cavian foi acordado pelo som oco de algo que caira ao chão. Com certeza havia vindo do alto, ainda que não soubesse do que se tratava. Tateou o chão gélido e cuidadosamente limpo por Dumás em busca de respostas e achou um objeto de formato parecido com um sino. Possuía a campânula quadrada e paredes achatadas que cobriam um badalo fixo, com um cordão que saía do topo da coroa e parecia escalar a lisa parede.
Imaginou que alguém tentasse resgatá-lo e puxou levemente o cordão quando escutou uma voz vinda do utensílio.
- Ei, não puxe, isso não é uma corda, é somente algo para nos comunicar – disse a voz abafada que saia pelo objeto.
- Quem é você? – questionou Cavian friamente, ainda que não parecesse mais um de seus pesadelos. Era diferente, apesar de estranho o bastante para que se permitisse questionar.
- Escute, sei que está há anos aqui, mas preciso que confie em mim. Posso até imaginar pelo que passou, mas não tenho muito tempo. Em alguns dias te darei o sinal para que não se alimente da refeição que trouxerem a você. Ela não será o que pensa. Te explicarei amanhã nesse mesmo horário. É quando trocam o turno por aqui.
- Você é um prisioneiro aqui também? – disse Cavian incrédulo. Provavelmente um louco que surtara cedo demais, ainda que não explicasse o fato de possuir tal artefato.
- Sim, mas diferente de você, vim por vontade própria – disse o homem enquanto ele constatava sua teoria. – Meu nome é Persus e sou um explorador atuando em nome dos libertos.
- Caro amigo, sugiro que descanse, se foi preso recentemente neste lugar esse tipo de passatempo não costuma durar muito. Acredite em mim... – pausou e repesou suas palavras, o homem não merecia qualquer descortesia por mais que achasse que assim como ele, nunca tivesse a chance de sair dali. – Apenas tente não fazer esse lugar pior do que já é.
Escutou a risada contida do outro lado.
- Entendo perfeitamente se me acha um lunático, mas sei quem é você, príncipe Cavian de Aquia, sei que foi preso por seu pai e que passou seus dias aqui desde então.
Cavian não respondeu, não havia como alguém aleatório que tenha simplesmente perdido sua sanidade saber daquelas informações, mas um estalo viera instantaneamente em sua mente. Um novo teste depois de todos esses anos, pensou ele rapidamente. Não poderia falhar dessa vez, ainda mais sem o líquido estranho que Ravel o dera na última ocasião.
- Se de fato faz parte dos libertos, não há o que conversar com vocês, vocês fizeram mal ao reino assim como eu mesmo fiz – disse ele firmemente.
- Não sabe quem somos, príncipe, e entendo quais informações chegaram aos seus ouvidos. Infelizmente seu pai controla a informação faz algum tempo, mas te mostrarei que não somos seus inimigos. Infelizmente chegou a minha hora. Amanhã voltarei no mesmo horário. Esteja atento! – disse Persus quando o objeto se soltou das mãos de Cavian e subiu rapidamente pelas paredes.
Precisava pensar. Que tipo de teste era aquele afinal, queriam saber se trairia o reino novamente? Era bastante incomum que tivesse terminado daquela forma. De algum jeito aquele homem parecia transmitir verdade em suas palavras. Não tentou insistir para que se juntasse a ele e seria muito mais fácil criar uma oportunidade real de fuga para ele do que um plano que pelo menos inicialmente carecia de vários detalhes.
Dormiu pouco aquela noite, ficou pensando nas palavras do homem que acabara de conhecer. Pensou em algumas perguntas, mas o deixaria falar de qualquer forma, já que assim talvez pudesse ter mais êxito em coletar as informações que buscava.
Cavian
O combinado não falhou e ao novo anoitecer o objeto caiu novamente em sua cela, ainda que Cavian se recusasse a iniciar a conversa.
- Ei, príncipe, está por aí? – questionou Persus, com o chiado peculiar vindo do instrumento.
- Sim.
- Ótimo, como disse ontem, te passarei brevemente o que aconteceu nos últimos anos para que entenda a situação. Como disse ontem, faço parte dos libertos e sou um dos poucos Lumerianos ainda vivos – Lumeran?, pensou Cavian estarrecido, Lumeran havia sido dizimada pelos próprios libertos, que história mais maluca era aquela? – Sei que é difícil acreditar com tudo que espalharam sobre nós, mas a única relação que tivemos com a dizimação de meu reino, foi a de lutarmos ao lado deles contra os reinos aliados. Quando finalmente voltar a respirar os ares da liberdade tenho certeza que minhas palavras farão sentido para você.
- E como faço parte disso? Por que demoraram todo esse tempo para vir atrás de mim e por que acha que eu ajudaria vocês?
- Bom, vamos lá, só te encontramos realmente agora, porque nem sabíamos que esse lugar existia até pouco tempo atrás. Você foi declarado morto, Cavian, ninguém o achou depois de sua tentativa de fuga. Ninguém imaginaria que seu pai o manteria vivo depois de todo esse tempo. Em relação a você fazer parte de algo eu realmente não me importo. Quando te tirar daqui você poderá fazer o que bem entender.
Mais um ponto a favor da história daquele homem. Isso explicaria porque ninguém tentaria resgatá-lo. A última pessoa que o viu foi Cusgar. Poderiam ter inventado qualquer história a seu respeito.
- Vamos supor que eu acreditasse em você, como pensa em me tirar daqui?
- Como disse antes, a comida que te servirão em alguns dias parecerá como antes, mas será um composto capaz de tirá-lo dessas correntes. Poderá acioná-la com uma pequena faísca para que entre em combustão. São correntes de Trilium, como acredito que já imaginava, porém, a liga que utilizam aqui é composta metais modificados, que além conferir uma resistência incomum até mesmo para ela, limitam em certo grau o uso da magia. Inclusive as que estou agora, parecem ter sido melhoradas desde a última vez.
Cavian não imaginava que fosse isso. Sentia-se fraco realmente, mas sempre achou que fosse por conta do elmo e das condições nas quais se encontrava. De qualquer forma, independente quais fossem as intenções de seu interlocutor, só de pensar em estar fora daquelas correntes já o animava, mesmo que sua cabeça ainda estivesse imersa em dúvidas.
- Entendo, tudo faz sentido, menos o fato de terem interesse em me libertar – disse ele secamente.
- Veja, Cavian, o que posso dizer é que tenho uma dívida a pagar. Arriscamos nossas vidas para salvar todos aqueles que estão sob a falsa justiça dos reinos aliados. Você é apenas mais um deles.
- Onde estamos?
- Nas florestas a nordeste, entre as montanhas vermelhas próximas a Opanum. Imperceptíveis visualmente e perigosas demais para curiosos.
- Realmente, parece um lugar inóspito nos mapas.
- Nosso desafio inclusive é fora dessa prisão e não dentro dela. Amanhã um dos serventes que prepara a comida passará mal e nosso infiltrado assumirá seu lugar. É quando nosso plano entrará em ação.
- E caso a gente de fato consiga se libertar?
- Correr o quanto conseguirmos até chegarmos às florestas para oeste. Não são muito distantes daqui e chegando lá estaremos seguros. Nunca ninguém saiu daqui vivo por vontade própria até hoje, então acredito que não tenham se preparado para isso. As rondas são constantes e feitas por mais de um guarda. Estes precisam acionar um dispositivo que ficam em um circuito bastante extenso. São inúmeros corredores como em um formigueiro, então ao chegarmos ao portão de saída, só corra o mais rápido que puder.
- Há quantos guardas lá fora? – questionou Cavian.
- Nenhum.
- Como nenhum? – respondeu ele incrédulo.
- A parte externa é habitada por criaturas que fazem aquele lugar ser um mar de pedra. A região acima de nossas cabeças é onde se concentram os ninhos dos estridentes pássaros de pedra de ouvidos sensíveis aos sons errados. Se entrar em contato, por menor que seja, com a ponta afiada dos seus bicos, puff... Enfeitará seu campo enfeitado de estátuas. Já o portão frontal é guardado por um imenso lagarto de mesmo dom, o rei desse lugar, ainda que pra ele só baste um cruzar de olhares. Esse lugar não foi feito para que alguém saia Cavian, ninguém o fez até hoje, então tente apenas manter os olhos fechados e os ouvidos atentos lá fora.
- Acho que não terei dificuldades com isso – Pausou Cavian com um sorriso no rosto. Ao menos para isso estava preparado.
- Ótimo, se mantenha perto de mim que tudo dará certo! – exclamou Persus confiante.
- Mais alguma orientação?
- Tenha esperança, meu amigo. O mundo está bem diferente do que era antes de vir pra cá. Teremos longas conversas ao sair daqui e espero que consiga mostrar a você a importância de nossa luta.
- Outros já duvidaram dos reinos aliados, Persus, eu também já duvidei tempos atrás, só que não havia nada que provasse qualquer desconfiança.
- A realidade mostrará que tudo não passou de uma fachada, há muito mais, mais do que qualquer um conseguiria imaginar na época que fora preso. Nem nós sabemos onde planejam chegar, mas Lumeran havia se negado a assinar o acordo e por essa razão foi retaliada. Se aceitaram o risco de dizimar um reino inteiro somente por conta de uma desconfiança, imagine o que pretendem fazer daqui pra frente.
- E como sabem que foram realmente eles?
- Os libertos estavam lá, Cavian, nisso seu pai não mentiu. Havíamos encontrado finalmente um abrigo seguro. Éramos refugiados e renegados, inclusive eu mesmo havia me exilado de Lumeran anos antes de tudo acontecer. Mesmo assim a rainha nos escutou e nos acolheu, porque ela e Jamiel sabiam, assim como nós, que havia algo errado naquele acordo e em toda aquela encenação. Infelizmente eu não estava lá. Os Aquamarinus já haviam se disposto a nos ajudar e eu havia partido para tentar convencer os reinos élficos a fazerem o mesmo. Na época, tanto os libertos como os povos do mar, lutaram ao lado deles com tudo tinham e os que conseguiriam sobreviver voltaram somente com o que restara de cada um deles. Ninguém conseguiria prever um ataque tão poderoso e tão repentino como aquele.
- Partindo do princípio que eu acredite em suas palavras, por que não se ouviu falar nesses exércitos? Como uma frota marítima nunca antes vista pode passar despercebida aos olhos de todos?
- Não foram plebeus, Cavian, foi seu pai que fez com que as luzes do reino se apagassem sob as cinzas. Todos esses que estão do lado dele agora o ajudaram nisso. Lumeran não cairia facilmente, sabe disso. Agora pense, com o ataque que atribuiu aos libertos, e com Noch e Quazar entre eles, arrumariam a desculpa perfeita para que banissem o uso das artes místicas e das engenhosidades que davam vida ao metal, fazendo com que o poder se concentrasse na mão dos originários novamente. Depois disso fizeram com que todas as informações chegassem ao povo por meio do eco de suas próprias vozes, criaram um inimigo comum para que todos buscassem um abrigo junto aos próprios reinos aliados e de sobra ainda arrumaram a justificativa que precisavam para retaliar qualquer um que se opusesse a eles, fazendo com que todos eles se tornassem arautos do caos e da guerra entre os povos.
- E querem fazer tudo isso a troco do quê?
- É exatamente o que estamos tentando descobrir. Não somos muitos, mas somos cada vez maiores. Ainda que não seja confortável viver escondido entre as brumas, ainda é melhor do que o destino daqueles que não se curvaram. Verá o que aconteceu com os povos com seus próprios olhos, príncipe dragão, a doença que se espalhou como uma praga, consumindo a carne e a alma de todos aqueles que caminham por estas terras.
- Ainda tenho mais outras perguntas, mas aguardarei como combinado. Acredito que não tenhamos mais tempo.
- Iria alertá-lo, mas você é familiarmente perspicaz. Não se preocupe, vossa alteza, garanto a você que os deuses guiarão nossos passos, assim como guiaram os meus para que eu pudesse chegar até aqui – finalizou Persus puxando novamente o pequeno instrumento que deslizava rapidamente sobre as paredes.
Noch era o único representante de Dypsia fora do reino da magia, um talentoso e jovial mago, conhecedor das magias antigas e dos velhos deuses, que se recusara a se enclausurar junto aos seus irmãos quando o mundo se tornara instável novamente. Dele, Cavian só conhecia as histórias, explosivo e temperamental, sabia que era um dos soldados da guerra antiga, ainda que sua face lembrasse os garotos humanos que conhecera. Já Quazar, conhecido como o mais habilidoso cientista de Aldoin, era outro notável de Tessan, especialista em metais e desenvolvedor da engenharia que dominaria o mundo pelas próximas décadas. Ambos componentes dos libertos, hábeis e procurados pelos seus supostos crimes que agora tinham sido postos à prova. Cavian inclusive conhecera Quazar, o único humano a ter pisado em solo Aquiriano além de sua própria mãe. Era jovem, mas lembrava como se fosse hoje do rosto castigado pelo sol, dos óculos arredondados criados pelos pedaços de metais que se dobravam sobre seu rosto e seu excêntrico chapéu maltrapilho de remendos amassados que de tão antigos talvez tivessem sido feitos pelas primeiras mãos daquele mundo. Se os libertos eram poucos, pareciam ter escolhido a dedo seus pares.
Cavian
O dia finalmente chegara. Os pássaros que apareciam pela manhã não vieram como de costume. Talvez soubessem de algo, talvez soubessem que não precisariam mais lhe fazer companhia. Um dia ensolarado e silencioso que aguardava ansiosamente seu desfecho. Cavian meditara durante a manhã toda, guardando suas energias para o momento que lhe aguardava. Finalmente Dumás chegou, pontual como sempre, deixando as costumeiras tigelas em seus respectivos lugares. Ele observava seus movimentos sem que o carcereiro soubesse e se mantinha atento a qualquer detalhe que pudesse traí-lo.
- Ei, príncipe, aqui está sua refeição – disse Dumás enquanto Cavian permanecia imóvel como uma estátua. – Bom, tanto faz, quero esta tigela limpa até a noite. Não esqueça de sua promessa e satisfaça o desejo de seu pai... Ele poderia ter te matado, sabia? Você está vivo graças a ele. Seja ao menos grato por isso – completou ao se retirar.
Cavian aguardou que estivesse longe o suficiente para que parasse de senti-lo. Estendeu a mão para pegar a tigela a sua frente, com uma ansiedade que transbordava de si. Virou a tigela com cuidado sobre as travas das algemas. Se fosse capaz de atravessar aquele metal, era bastante provável que fosse perigoso para si mesmo. Não tivera tempo de perguntar mais detalhes de qualquer forma. Ainda assim, mesmo que perdesse as mãos, estava disposto a sair dali. Uma fagulha, pensou ele lembrando das palavras de Persus. Cavian se concentrou e levou as pequenas correntes de energia em direção às travas de metal, sentindo seu dispersar. Pelos deuses, pensou ele surpreso ao ver o metal sendo corroído vagarosamente de forma cada vez mais profunda junto aos estalidos de bolhas de ar que se rompiam no processo. Só podia estar sonhando, depois de tantos anos finalmente sairia de lá. Não sabia o que o aguardava, mas estava preparado, como um leão faminto aguardando ansiosamente para correr atrás de sua presa, de sua tão almejada liberdade. Quando viu que a linha que unia as algumas estava prestes a se partir, ele as puxou de uma única vez, abrindo-as com um estalo. Esfregou as mãos ásperas sobre seus castigados pulsos se certificando do que acabara de fazer. Estava finalmente livre e sua alegria transbordou de seus pulmões ofegantes e das lágrimas que escorriam pela superfície de metal colada em seu rosto quando passou a ver um corpo indo rapidamente em direção à sua cela. Provavelmente o haviam descoberto. Quando os trincos finalmente se abriram, partiu pra cima do guarda dando um soco potente que foi contido por ambas as mãos do oponente, que ainda assim foi jogado contra parede. Ainda não estava abatido e ele se preparava novamente, quando foi interrompido.
- Ei, príncipe, sou eu, Persus – disse o homem estendendo a palma mão à frente enquanto ele descia a guarda. – Foi um golpe vigoroso, fico feliz que esteja em forma – continuou Persus se levantando diante dele, alongando seus braços como em um treinamento. - Vamos precisar dar o nosso melhor para sair daqui.
Parecia ser poderoso, não pareceu nem mesmo sentir o soco que levara, mesmo que soubesse que não se tratava de um golpe comum. Cavian sequer dosara sua força, não poderia se arriscar. Era um homem de seu tamanho, esguio e que cumprira sua palavra como prometeu.
- Pelos deuses, o que fizeram com você, meu rapaz? Como conseguiu me acertar nesse estado? – completou Persus ao se aproximar, segurando seu elmo com as mãos, percebendo que o objeto que haviam colocado em sua cabeça havia coberto completamente seus olhos.
- É um pouco complicado, só posso dizer que posso enxergá-lo de alguma forma – explicou ele ainda encabulado por ter quase nocauteado sua rota de fuga. – O que quero dizer é que posso segui-lo, desde que me mostre o caminho.
- Ah, sim, me desculpe... – disse ele soltando o elmo, parecendo estar o avaliando em busca de uma solução. - Deixemos isso pra depois, Rin deve nos aguardar no portão.
Persus saiu correndo e ele o acompanhou sem que se distanciassem. Pareciam de fato correr em um trajeto sinuoso, não sabendo dizer por quantos corredores passaram desde então. Para seus novos olhos, aqueles corredores de pedras mortas não passavam de um túnel escuro, apesar da ajuda dos sons que ainda o guiavam.
Cavian finalmente viu um guarda a metros dele, mas antes que pudesse alertar seu guia, Persus pulou contra a parede, deu três passos como se pudesse caminhar sobre sua superfície e girou o corpo contra o guarda, acertando um chute à direita da cabeça do homem, fazendo com o que este caísse antes mesmo de reagir. Era de fato um guerreiro habilidoso e de muitos segredos, um que não deveria ser subestimado.
- Vamos, não temos muito tempo até que as sirenes sejam acionadas – disse Persus retomando o caminho.
Percorreram mais alguns metros até que chegassem ao portão. Rin, o homem que deveria aguardá-los, parecia não estar lá como esperado. Apenas dois guardas, um mais próximo e outro ao lado do enorme portão que havia à sua frente. Era de ferro maciço assim como aquele que guardara sua cela, mas de uma altura confortável até para os gigantes ou provavelmente construída para alguns deles. Os vigilantes pararam quando a sirene tocou, indicando que provavelmente tentariam barrar o portão.
Sem que precisassem se comunicar, Cavian partiu contra o primeiro deles, uma joelhada rápida em seu estômago, que o lançou por metros. Já Persus se direcionou ao portão de saída, rápido, mas não o suficiente para que impedisse o guarda mais ao fundo de partir com seu machado o mecanismo que girava as grossas correntes que abririam o portão. Persus ainda o desacordou aplicando um golpe com a mão estendida sobre seu pescoço, mas sem que pudesse mudar a situação em que se encontravam. Estavam presos, como ratos encurralados, foi o que pensara naquele momento.
- Cavian, se afaste - disse Persus se posicionando à frente do portão enquanto ele obedecia às ordens. Persus posicionou uma das mãos estendidas para frente como uma lança, enquanto flexionava o outro braço para trás com o punho cerrado em direção ao portão. Flexionou também as pernas levemente e parou por um momento, ao mesmo tempo que Cavian o observava como um farol. Os estímulos do seu corpo aceleraram repentinamente como uma tempestade de relâmpagos e levou seu punho direito até o portão tão rapidamente que Cavian mal conseguiu acompanhar. Sentiu o golpe de ar, um sopro potente enquanto via o portão sendo atirado com violência em direção à área externa, o que arrancou inclusive as pedras que o fixavam nas densas paredes.
Ele finalmente pôde sentir, depois de tantos anos, o vento que corria por seu corpo. Estava finalmente livre em uma sensação de alívio que não teve tempo para deleitar. Escutou o rasgar do tecido em sua frente no momento que Persus provavelmente o amarrou em volta dos olhos. Persus disparou novamente à sua frente enquanto ele o acompanhou. O homem à sua frente atirou algo para o alto e Cavian escutou uma explosão. Um sinal provavelmente, que se confundia com as barulhentas Cocatrizes que vinham em suas direções. Tantas que Cavian mal conseguiu distinguir. Ainda assim pareciam suficientemente rápidos para que nem mesmo o monstro que Persus relatara no passado os alcançasse naquele momento, uma vantagem iminente, que se cessou quando escutaram os gritos.
- Me solte, droga! - gritou a voz ao fundo que saiu do mesmo portão que haviam acabado de fugir.
Cavian viu o corpulento corpo da criatura que se arrastava como um lagarto sobre o chão. Era tão alto quanto ele próprio, mas seu corpo se estendia por metros até o fim de sua cauda. Persus parou imediatamente, certamente era Rin, aquele que os ajudara a fugir. Estava sendo arrastado pelo braço, que estava entranhado entre os abundantes dentes agulhados da criatura.
- Cavian, preciso que vá – ordenou Persus repentinamente. - Siga o plano como combinado. Alguns amigos estarão nos aguardando.
- Não vou deixá-los aqui, Persus.
- Não há tempo para tolices. É um adversário perigoso, vossa alteza, nem mesmo eu sei se posso contê-lo.
- Sei disso, mas ainda estaria preso se não fosse por vocês.
- Acredito que tenha puxado a teimosia de sua família, então nada que eu diga fará efeito, não é? Se quer ajudar apenas tente não bancar o herói. Se algo acontecer comigo, não há nada que poderá fazer sozinho, apenas fuja – completou ele enquanto se dirigia rapidamente em direção a Rin.
Cavian o acompanhou e conseguiu ver algumas aves de pedra mais próximas. Elas atacavam com ferocidade, com suas garras abertas tentando alcançá-los, ainda que não fossem rápidas o suficiente. Tanto que Persus as enfrentou sem dificuldades mesmo sem enxergar. Apesar disso, seu número preocupava, ainda mais pelas orientações que recebera no passado. Não havia espaço para qualquer erro.
Quase foi acertado por uma segunda Cocatriz, enquanto abatia a que chegara até ele. Cavian pôde sentir o vento deslocado por sua fina garra perto de sua perna, que tirara instantes antes do local. Em momento anterior em que Persus, girou para trás e acertou a lateral de sua mão direita no pescoço da ave.
- Não voltem por mim, por favor, eu imploro – gritou chorosamente Rin ao escutar a aproximação deles.
A criatura certamente sabia o efeito que pretendia produzir. Não poupava suas vítimas, fizera isso justamente para atrair a atenção deles.
Persus pulou contra a cabeça da criatura, acertando-a em cheio em sua fronte, fazendo-o soltar o braço já despedaçado de Rin, que caiu ao chão, quando uma das corpulentas patas pisara sobre sua perna, fazendo-o urrar de dor novamente.
- Ataque as laterais, Cavian, o dorso é duro demais – orientou Persus enquanto se deslocava para a lateral esquerda do animal, posição oposta à que Cavian se destinava. Passou rapidamente pelo corpo de Rin, desviando de uma abocanhada da criatura, desferindo um chute certeiro na extensa lateral da criatura. Seus pés encontraram uma superfície de pedras pontiagudas que o cobriam como escamas. Se não fosse a resistência natural de sua pele, certamente teria tido problemas.
Continuaram os ataques coordenados, mas novas Cocatrizes se aproximaram do campo de batalha, mais coléricas que as anteriores. Cavian desviou das primeiras, mas a gigante criatura começara a se mover, Cavian distinguiu cerca de oito pernas quando ele girou com a cabeça em sua direção. Pulou para trás enquanto desviava de mais uma das pequenas criaturas voadoras que passara sob suas costas e que acertara a mesma superfície cinza esverdeada que tentara momentos antes perfurar, enquanto Persus pulou sobre a cauda da criatura. Era bastante ágil para um corpo grande daquele, mas duro demais para se enfrentar. Cavian precisava ampliar seu espectro de visão. Quase fora acertado por duas vezes. Assim o fez. Podia se anteceder melhor agora, mas a armadilha que criaram pra ele cobrava seu preço. Seu elmo começou a aquecer como antes, ainda que não tivesse alternativa. Era isso ou a morte o aguardaria nos próximos momentos. O ar começou a ficar escasso e sabia que não poderia se manter assim por muito tempo.
- Persus, o distraia pra mim, tirarei Rin sob seu controle – gritou ele ao companheiro.
Cavian sabia que Persus se segurara, qualquer movimento em falso acabaria com a vida de Rin em instantes. O impetuoso Basilisco só não havia matado sua presa porque sabia que era o que os mantinham ali. Cavian correu e deslizou sob o corpo da criatura. Tentou controlar a eletricidade em sua mão esquerda, como treinara anteriormente, e alcançou a pata que segurava Rin. Cavian se certificou de que a descarga que aplicara produzisse o efeito desejado. Os músculos se contraíram e Cavian rapidamente puxou Rin, rolando com ele para o lado. Ficou exposto como previra, mas antes que a criatura pudesse atacá-los, Persus aplicou o soco em seu imenso corpo, agora forte e eficaz como dado a outrora. O corpo do animal finalmente cedeu e se arrastou sobre o chão de pedras.
Cavian sentiu o sangue que escorreu pelo corpo de Rin e tentou se levantar com as forças que lhe restavam. A descarga havia sido alta demais. Parte dela direcionada para seu próprio elmo que agora ardia em brasas. Se antes a respiração era difícil, agora era como se tivesse enterrado sua cabeça em solo escaldante.
Cavian jogou o corpo de Rin sobre suas costas enquanto este grunhiu de dor, antes que viesse a perder a consciência apesar de vivo. Precisava aguentar um pouco mais. Seu principal problema estava caído a alguns metros à frente ainda que Cavian pudesse sentir que não seria por muito mais tempo. Seu campo de visão agora era menor do que quando saira da cela. Poucos metros lhe restaram, o que dificultava sua proteção. Partiu na direção do plano original, agora não havia mais nada que os impedissem.
Moveu suas pernas o mais rápido que pôde enquanto seus músculos imploravam para respirar. Percebeu que Persus o acompanhara ainda que estivesse quase se dispersando. Mal percebeu quando mais uma das Cocatrizes os atacou, fazendo com que se abaixasse rapidamente para desviar do ataque. Precisavam chegar logo ao seu destino. Não via ninguém, não escutava ninguém, só seguia em frente. Não sabia se o Basilisco voltara à caça, mas agora não estava rápido como antes e passou ser bastante provável que a criatura os alcançasse. Mesmo assim mantinha o ritmo, até que três dos pássaros de pedra os atacaram de uma única vez. Cavian desviou da primeira jogando seu elmo contra suas garras e girando para desviar da que viera logo em seguida, mas as últimas garras se aproximaram de seu dorso coberto pela fina malha que vestia. Por um breve instante percebeu que não haveria tempo para desviar, e nos poucos segundos que o separavam do fim de sua jornada, Persus apareceu em sua frente. Cavian sabia que não estava perto o suficiente para fazer o que fez. Um ataque que mais pareceu um reflexo abateu o último oponente.
- Se mantenha assim, Cavian, estamos perto.
Pouco depois, Cavian então viu o braço de Persus lentamente desaparecer em sua visão. Sabia o que significava. Havia sido atingido no lugar dele.
No mesmo instante escutou passos ao redor. Ao fundo, sabia que o Basilisco não os teria deixado escapar tão facilmente, mas os passos à frente Cavian não conseguiu distinguir. Era como uma manada vindo em sua direção.
Cavian se virou para Persus para perguntar o que já sabia, mas antes que o fizesse ele o respondeu.
- Está tudo bem, meu garoto, chegou a minha hora... Uma que deveria ter chegado tempos atrás. Só prometa para mim que viverá sem arrependimentos como eu fiz e diga a Rin que não poderei acompanhá-lo na comemoração desta noite. Fico feliz por ter te conhecido, tenho certeza de que ela ficará feliz em te ver – terminou, quando o revolucionário apontou o braço que restava em sua direção.
Antes que pudesse entender o significado daquelas palavras, Persus abriu a palma e um golpe de ar acertou Cavian violentamente. Voou pelos ares com Rin enquanto via a luz de Persus se extinguir, mais brilhante do que qualquer outra, um farol que o guiara para a liberdade antes de finalmente se apagar.
ANJO CAÍDO
Persus
O mar estava agitado e Persus acabara de atracar seu barco à costa de pedras disformes e acinzentadas, bem diferente das praias de areias brancas de Lumeran. O amarrou firmemente com uma corda de cânhamo até a pedra mais próxima, que tinha desníveis suficientes para que o nó não cedesse às marés. Era sua rota de fuga, tinha que garantir que estivesse lá quando precisasse.
Era um barco pequeno onde mal cabiam três pessoas. A vela apresentava as marcas do tempo, ainda que fossem de uma lona especial e resistente, que o permitia navegar mais rápido que o habitual, enquanto sua quilha já havia sido parcialmente devorada pelo sal. Tralon, o rei dos gigantes, acabara de ser destituído do trono, por motivos que Lumeran ainda desconhecia. Não eram tempos de guerra, mas nenhum dos reinos abaixara a guarda e provavelmente Persus não seria o único que estaria por lá. Seu objetivo era coletar as informações que precisava e voltar a Lumeran o mais breve possível, de preferência sem que ninguém notasse sua presença.
Vestia um sobretudo marrom, longo o suficiente para que escondesse suas álbidas asas, ainda que seus cabelos de mesmo tom e seu nariz adunco dificilmente escondesse suas origens.
Caminhou por alguns quilômetros até que as pedras fossem tomadas pela pastagem verde que cobria o horizonte. Aproveitou para misturar a terra fina e avermelhada daquele solo com um pouco de óleo já tingido de carvão de um dos frascos que carregara em sua cintura, tingindo os cabelos com uma pasta amarronzada. A maioria de seus pertences haviam sido tomados pela tempestade que o atingira dias atrás, só restando os itens que carregava consigo, como alguns frascos de vidro, uma pequena bússola de bronze com a cruz de pontas fragmentadas do reino da luz, um pequeno cantil de couro, algumas pedras azuladas e uma bolsa recheada de ouro, que deveria mantê-lo confortavelmente até sua partida.
Avistou o porto de Taldramond, conhecido principalmente pela exportação de minérios e de grandes blocos utilizados em construções. Todas aquelas terras em meio às montanhas eram fronteiras do denominado reino cinza.
Taldramond não possuía muitos forasteiros, apenas negociadores e comerciantes, que não ousavam adentrar na vastidão de árvores e rochas que se perdiam no horizonte, ainda mais perigosa do que as próprias águas tempestuosas que chegavam à ilha. Eram caminhos traiçoeiros para amadores, onde a morte ocorria em meio ao silêncio das montanhas rochosas.
O porto era imenso e ligeiramente rústico. Seu cais, apesar de cobrir toda orla semicircular, era construído por formas irregulares de pedra e madeira que pareciam ter sido encaixadas à força. Parecia funcional e robusto apesar de tudo, afinal, tinham outras preocupações e a estética, serviços para os seres de mãos miúdas, era a última delas.
Persus observou ao longe o carregar das imensas pedras aos vários navios que atracavam ao porto. Os gigantes provavelmente eram cerca de três vezes mais altos do que ele e tinham uma estrutura corporal densa. Apesar da semelhança, ainda era possível perceber algumas diferenças de coloração em seus tons de pele, cabelos e adornos. Inclusive um deles ostentava cabelos e barbas verdes que destoavam dos demais. Era visivelmente maior do que os outros, ainda que sua aparência não parecesse gerar qualquer condição hierárquica.
Apesar de não querer chamar a atenção, fazia muito mais sentido se passar como um mercador. Esgueirar-se e ser descoberto poderia revelar suas reais intenções, o que poderia trazer problemas ainda piores. A única informação que tinha era que o castelo estava localizado em meio às montanhas que se escondiam ao fundo do horizonte, em uma montanha que transpassava as copas das alongadas árvores daquelas terras, que a rodeavam em uma floresta densa, ainda que não tivesse visto qualquer árvore em seu percurso até ali.
Direcionou-se ao cais e andou até a área de descarga sob os olhares desconfiados dos gigantes que ali estavam. Normal para os comerciantes mais novos, que geralmente não eram muitos por ali. Poucos tinham a coragem de negociar junto àqueles seres que se destacavam pelo comportamento temperamental e de poucas palavras. Por vezes nem mesmo o alto retorno compensava o risco.
Persus fingiu avaliar algumas pedras que estavam sendo carregadas até um comprido barco cargueiro. Tinham certa aversão à água. Seus corpos pesados dificultavam qualquer ação dentro dela e sua locomoção pelos barcos era dificultosa. O esmero que faltava em suas construções não poderia faltar nas embarcações. O mar não tolerava erros e eles sabiam disso.
- Me diga, meu bom rapaz, qual o preço dessa daqui? – disse ele apontando para o cubo acinzentado à sua frente, que não apresentava qualquer refinamento.
- Vinte moedas de prata – murmurou o gigante que parara por um instante para atendê-lo. Esbanjava uma lustrosa careca acompanhada de uma expressão ranzinza. O valor era correspondente a um quinto do ouro.
- Caso eu a compre, posso deixar por aqui até que eu avalie as demais?
- Ou pode avaliar as demais e depois voltar aqui – retrucou o gigante impacientemente.
- Temo que corra o risco de ficar sem elas.
- Será menor do que deixar aqui sem ninguém pra cuidar – disse novamente o gigante secamente enquanto desviava o olhar.
- Obrigado, meu caro – agradeceu ele com um sorriso educado em seu rosto. – Por isso dependem tanto dos mercadores – Pensou ele enquanto caminhava.
O sol ardente era compensado pela brisa que vinha do mar. Adentrou um mercado central, de chão rochoso e não uniforme, onde eram negociadas as entregas e as compras. Seria mais fácil de se misturar por ali. Humanos em sua maioria. Bons mercadores e não viviam muito de qualquer forma, o que os tornava exemplares perfeitos para o trabalho. Três homens discutiam mais ao longe em uma barraca repleta de gaiolas. Pássaros exóticos de penugens alaranjadas, um pequeno exemplar de urso rochoso, geralmente uma das especiarias que os gigantes apreciavam consumir, e um pequeno ser que chamava a atenção. Braços finos e quatro pequenos chifres contorcidos, dois em cada lado da miúda cabeça. Cabelos caramelo que se enrolavam em finas madeixas e asas translúcidas que batiam rápido o suficiente para que quase desaparecessem. Sua feição era triste, mas sem dúvidas se tratava de uma fada Dypsiriana, ainda que não soubesse distinguir a espécie. Era estranho que estivesse ali de qualquer forma. Eram seres reclusos que quase nunca eram vistos, ainda mais naquele lugar. Aquela parecia ter se perdido, seus pequeninos olhos marejados exalavam uma dor profunda e uma esperança afugentada, provavelmente fruto dos castigos aplicados por seus captores.
- Eu havia visto primeiro – disse o menor com vestes fofas nas mangas, um humano tão baixo que se não fosse o curto tronco poderia ter sido facilmente confundido com os cuidadores das pedras sob as pedras.
- Não me interessa, Balones, prometeu ela a mim antes de qualquer outro. Não haja como se não tivéssemos um acordo, Balones – resmungou o segundo mais alto dos três, dirigindo-se ao último deles. Persus não conseguiu ver seu rosto encapuzado, mas pelo corpo esguio e a fina capa que o escondia do sol deduziu que se tratasse de um elfo da noite.
- Balones prometeu que venderia pelo melhor preço, mercadoria rara, Balones sabe das coisas – disse o terceiro que parecia ser um mercador de peles, pelo menos era o que indicava suas vestes de retalhos de couro de animais. Seu opaco olho esquerdo e as cicatrizes que cobriam suas mãos também induziam de que era ele mesmo que executava as caçadas. Um Golias, com as marcas negras marcadas em sua testa em um rosto acinzentado de pouca expressão.
- Eu cubro a oferta, senhor Balones! – disse ele animado. – Quanto quer pela criatura?
- Saia daqui, forasteiro, os negócios já estão fechados – retrucou o menor.
- Achei que se interessaria pelas duzentas moedas de ouro que tenho comigo – retomou ele arrancando do sobretudo e balançando em sua mão erguida rapidamente a bolsa de couro carregada de moedas.
- Duzentos? – espantou-se o humano. – Está louco! Com esse valor compro um barco novo – completou o homem visivelmente irritado.
- Balones, diga a esses senhores que já há um acordo comigo, assim evitaremos problemas – ameaçou o ser encapuzado em tom firme.
- Balones aceita a oferta senhor marrom – disse Balones se dirigindo a ele, tirando uma faca de cerca de dois palmos da cintura, com a bainha feita de alguma ossada que encontrara em suas viagens e apontando para Persus.
- Ei, seu mercador de merda, você a prometeu a mim! – esbravejou o senhor de capuz, aproximando-se de Balones. – Acha que eu tenho medo dessa lâmina que empunha? Aponte ela para mim outra vez e farei com que ela descanse em seu pescoço.
- Tenha calma, meu jovem – disse ele. – Aqui é uma área de comércio e Balones parece ser um mercador respeitado, estou certo? O que acha que aconteceria se o ferisse? Aqueles gigantes ali certamente iriam fazer com que dormisse no estômago daqueles ursos – completou o Lumeriano, apontando para dois deles que pareciam servir de guardas por ali.
O menor mercador se afastou percebendo o tom hostil, espalhando-se em meio à multidão.
O drow o encarou com desprezo se aproximando perto demais.
- Quem acha que é para fazer o que está fazendo? – questionou o homem encapuzado.
- Ninguém, meu senhor... Sou só um mero colecionador e estava explicando ao senhor as ordens da casa, já que sempre foram bem claras pra mim – disse Persus sorrindo pacificamente.
- Sem problemas, Balones, deixarei sua casa em paz – disse o homem a Balones enquanto ainda encarava Persus. – Tome cuidado, forasteiro, pode ser que as regras daqui não sejam tão claras quanto pensa – ameaçou o homem tomando seu caminho enquanto Persus mantinha o sorriso e o corpo estáticos.
- Balones fica à disposição – respondeu o mercador enquanto o drow finalmente se retirou.
Balones foi até a banca, retirou a gaiola de hastes grossas do pendente em que se encontrava e a cobriu com uma espécie de capa de tecido fino ainda que cortado grosseiramente – Tome sua parte do acordo, Balones tem pressa – disse o mercador lhe entregando o objeto
- Aqui está - disse ele tirando a bolsa de couro do sobretudo. O homem que agora sorria com os dentes que ainda lhe restavam a arrancou tão rápido de suas mãos e se retirou tão depressa que ele nem tivera a oportunidade de coletar mais algumas informações que talvez lhe fossem úteis
Foi novamente até a borda do mercado de tendas elevadas, passando pelos diversos barcos ancorados, e caminhou até um corredor entre dois grandes galpões sem muita movimentação, que pareciam ser de propriedade de alguns mercadores. Era o que indicavam as paredes com distanciamento regular. Nenhum gigante teria se dado ao trabalho de construir algo minimamente alinhado como aquilo. O que mais importava é que estaria longe dos olhares curiosos. Um corredor longo, uma entrada e uma saída, ideal caso precisasse lutar contra muitos. O céu era aberto, o que facilitaria uma eventual fuga caso precisasse, e em direção ao caminho do qual partira inicialmente. Parecia um bom local para dormir dentre as opções disponíveis. Agora não havia mais moedas para alugar qualquer quarto minimamente confortável. Ficaria ali por ora. Tirou a capa e encarou a pequenina fada de olhos chorosos.
- Está bem, minha pequena? – questionou ele, espantando-a.
Não respondeu. Provavelmente pensara que qualquer resposta que ela lhe desse estaria errada.
- Não tem problemas se não se sentir confortável em responder, mas posso garantir que está segura ao meu lado. Veja, pode sair se quiser – disse ele abrindo a tranca da portinhola sob os olhares desconfiados da fada. – Só não recomendo que saia por aí sozinha. Estamos em um lugar hostil e gastei todo meu ouro para resgatá-la. Caso seja pega novamente, teríamos sérios problemas.
- Não sei seu nome, meu senhor - disse ela saindo vagarosamente da gaiola acompanhando atentamente seus movimentos.
- Desculpe-me, meu nome é Persus, pequenina. Não posso dizer de onde venho e nem por qual razão estou aqui. Não seria seguro pra você, mas garanto que não tenho nada a ver com o rapto de menores.
- Devolverei seu ouro, meu senhor, juro que devolverei – disse a fada orgulhosa, ainda que para um habitante das florestas a quantia fosse provavelmente muito superior a qualquer uma que tivesse visto na vida.
- Não há por que devolver. Eu precisava gastá-lo de qualquer forma, talvez não nessa velocidade, mas está tudo bem, não há qualquer dívida comigo – completou ele rindo.
- Obrigado, meu senhor, mas faço questão. Só preciso de mais um único favor. Caso o senhor possa me tirar dessa ilha, ficaria muito grata. Não gastarei seus recursos, meu senhor, eu prometo. É que nunca me adentrei o mar, não sei como poderia sair daqui e meus irmãos devem estar preocupados comigo, espero que o senhor não me julgue mal, não gostaria de me aproveitar do senhor, o senhor já fez muito por mim – Continuou ela se justificando rapidamente com o nervosismo acompanhando cada nota de sua voz.
- Se ficar em minha companhia te levarei para casa quando voltar – disse ele abrindo o sorriso da pequena, espantando-se com a quantidade de palavras que saia de sua boca. - Preciso ainda encontrar uma floresta em algum lugar daqui. Acho que seria bom você vir comigo, caso queira. Ficar por aqui sozinha poderia ser perigoso, ainda mais pra uma criança especial como você.
- Posso ajudá-lo nisso, meu senhor. Sinto o cheiro das plantas à distância, vivi em meio delas minha vida inteira. Se é uma floresta que procura, eu a acharei para o senhor. À propósito, meu nome é Rixi, fui capturada por aquele senhor quando me escondi de meus amigos perto da fronteira de Faldram, não havia percebido que aquela caixa ao meio da mata se tratava de uma armadilha. Ele não é o que pensa, senhor Persus, ele é um homem mau.
- Sei disso, senhorita, não se preocupe, ele não te incomodará mais. Seus amigos foram pegos também? – questionou ele.
- Acredito que não, meu senhor. Pelas frestas, vi que se tratava de um barco só. Ninguém se arrisca a entrar muito ao fundo da mata e nem naquela região. Fui descuidada, meu senhor, os anciões sempre nos alertaram para que não fossemos até lá, muitas vezes repetiram, mas infelizmente não dei a atenção que deveria aos seus conselhos.
- Entendo... Menos mal, mas não fique tão preocupada, logo estará de volta ao seu lar. Eu mesmo já errei muito até que chegasse aqui. Inclusive já visitei Faldram muito tempo atrás, é uma cidade belíssima.
- Sem dúvidas, meu senhor, sinto saudades do cheiro dos campos floridos.
Persus sorriu.
- Quanto à ajuda, não vou negá-la, assim poderá me fazer companhia.
- Sei que é muita ousadia, meu senhor, mas seria possível que eu não voltasse àquela gaiola?... É que bem... Ela me dá calafrios. Ele fazia a barra de ferro correr pelas grades por horas se eu o desagradasse. Era ensurdecedor, meu senhor – implorou Rixi vergonhosamente enquanto abaixava seus olhos em fuga evitando encará-lo, como se de alguma forma tivesse cometido algum tipo de delito.
- Com o seu tamanho poderia se esconder sob minhas roupas, o que acha? Só peço que independente do que aconteça, permaneça escondida e em silêncio. Seria bem complicado que eu explicasse a sua situação. Devo manter as aparências por pior que pareçam ser.
- Como o senhor desejar – completou ela animada.
- Veja, também tenho asas como você – disse ele abrindo o sobretudo. Não era o protocolo dar tantas informações como aquelas a estranhos, mas era somente uma criança. Uma Dypsiriana, é verdade, com provavelmente mais anos do que ele pudesse imaginar, mas ainda assim uma criança. De alguma forma sentiu o medo dela diminuir. Ainda tinha dúvidas se ao seu lado estaria mais segura, mas era muito mais arriscado deixá-la em qualquer lugar que fosse. Inclusive percebeu no olhar sob o capuz mais cedo que era provável que viessem atrás dela, ainda que precisasse evitar ao máximo qualquer conflito por ali. Deveria ser invisível e silencioso como o ar que soprava sua face, mas nem sempre conseguia. Sempre os deuses pareciam arranjar uma forma de prová-lo, ainda que fosse grato por cada teste.
- O senhor é um anjo, meu senhor. Nunca pensei que conheceria algum. Poderíamos voar juntos para procurar a floresta. Eu posso voar bem rápido, não seria problema acompanhá-lo.
- Não podemos fazer isso, Rixi. Fica somente entre nós esse segredo, o.k.? – disse ele passando a mão na cabeça da pequenina.
- Sem problemas, senhor Persus, peço desculpas pela intromissão. Seguirei suas orientações sem questionar – disse Rixi novamente com feição que delineava sua decepção.
- Não que seja um problema, mas quanto menos souber melhor. Consegue sentir alguma coisa daqui? – questionou ele, tentando animá-la.
- Naquela direção, meu senhor, acredito que possa ser uma floresta – disse a pequenina apontando a pequena mão em direção ao sul. Persus já desconfiara que era a direção correta, mas a ajuda inesperada provavelmente aceleraria seus passos.
- É ela mesma que estou procurando. A bordo, senhorita! – disse ele abrindo o sobretudo e deixando que Rixi se acomodasse em um de seus bolsos.
Persus
Caminhando em direção ao centro da ilha, o mercado terminava e dava lugar a um conjunto recheado de armazéns que mais pareciam tendas gigantes. Não havia qualquer porta, somente grandes estacas e uma cobertura de peles entrelaçadas por linhas grossas. Persus viu algumas carcaças de ursos rochosos por ali. Imensos, quase tão grandes quanto os próprios gigantes e os maiores que seus olhos puderam conhecer até aqueles dias. Provavelmente teria problemas em enfrentá-los em seu habitat e torceu para que não encontrasse nenhum pelo caminho. Escondia-se entre as grandes pilhas e conferiu cada passo do caminho antes de se deslocar rapidamente até o próximo ponto seguro.
Viu que ao fundo começava um caminho íngreme sobre as rochas cinzentas, o começo do continente de fato, que possuía algumas fissuras não muito largas, mas que poderiam servir de esconderijo. Chegou até elas sem muitas dificuldades. Seus passos já seriam silenciosos normalmente, mas ali tinha a impressão que nem se ostentasse um sino em sua cabeça atrairia atenção de quem quer que fosse, tamanho o barulho gerado por aqueles seres de pés largos.
Continuou seu caminho por horas, sempre consultando sua pequena bússola acobreada que mal tomava metade de sua mão, subindo à superfície quando os caminhos entre as rochas se estreitavam demais. Avistou alguns ursos gigantes ao longe. Quatro deles. Provavelmente o encarariam como um belo e grande pedaço de carne, um que não deixariam fugir facilmente. Finalmente, quando escalou a última pedra, parecia ter encontrado seu destino. O gramado verde voltara a se mostrar com um início de uma mata densa ao fundo. Árvores extremamente altas, dotadas de copas pequenas e arredondadas e de troncos grossos e longos. Eram tantas que era impossível ver qualquer coisa metros à frente, uma cortina de fumaça perfeita para seus propósitos, ainda que também servisse para impedir que exércitos se posicionassem em um eventual ataque. Por sorte era um exército de um homem só.
- Chegamos, meu senhor, essa é a floresta a qual me referi – sussurrou Rixi de dentro do sobretudo.
- Bom trabalho, pequena – agradeceu ele em mesmo tom.
Persus conferiu ao redor, de modo que tivesse certeza que ninguém os avistasse quando saíssem daqueles morros. Conseguiria enxergar uma estrada à direita que adentrava a mata. Enquanto o caminho rochoso impedia qualquer rastreamento, as pegadas na terra calcária seriam como avisos luminosos. Os passos eram cuidadosos e leves o suficiente para que o vento fosse capaz de cobri-los.
O que mais o preocupava nem era o fato de ter que se localizar em meio à selva e sim a necessidade de se alimentar. Uma mata daquela dificilmente abrigaria outras formas de vida e ao voltar a cidade não conseguiria nada de bolsos vazios. Havia sido descuidado, deveria ter guardado alguma reserva de suas posses. Pensaria nisso depois. Restavam apenas algumas horas até que o sol sumisse ao horizonte e qualquer luz em meio às brumas seria como um alvo em sua testa.
Caminhou entre os troncos quando parou por um momento.
- Ouviu algo, meu senhor? – disse Rixi ainda sem enxergar nada dentro do quente e aconchegante bolso.
- Apenas se segure – ordenou Persus enquanto depositava a gaiola sobre o chão. Afastou-se um pouco e posicionou as palmas para baixo, lançando-se contra as copas. Alto o suficiente para que se pendurasse e girasse contra um dos galhos grossos que se estendiam. Apoiou ambos os pés sobre um deles enquanto segurava o tronco com sua mão esquerda de modo a manter seu equilíbrio. Seus cabelos eram levados pelo vento que não conseguia correr entre as árvores. De cima conseguia ver ao longe o rochedo que subia aos céus por mais alguns metros e algumas estruturas de pedra que se aproximavam do penhasco. Era onde os gigantes estariam. Se quisesse chegar antes do anoitecer precisaria ter saído cedo do porto. Já não avistava mais de onde viera. A imensidão das árvores tomara sua visão, ainda que tivesse contado o tempo que gastara até ali.
- Magia de ar, meu senhor, o senhor é bastante habilidoso – disse Rixi sob o tecido.
- Pequenos truques, Rixi, mais úteis em batalha do que imagina. Mas creio que será capaz de muito mais coisas do que eu. Já vi sua gente algumas vezes. Usam a magia como respiram.
- Somos bons nisso, senhor Persus, mas para jovens como eu a magia ainda é uma diversão sem obrigações. O verdadeiro conhecimento só é passado depois com mais idade, uma que ainda espero chegar.
- Assim que alcançá-la ficará responsável por me ensinar a aprimorar minhas técnicas, tudo bem? Este será o pagamento por sua dívida.
Rixi sorriu ainda que ninguém pudesse vê-la. Os sábios sempre disseram a ela para confiar somente nos seres da floresta, mas Persus aos olhos da fada parecia ser um bom homem. Não que conhecesse muitos, mas de alguma forma sabia que poderia confiar nele. Os anciões nunca falaram sobre a venda de serviços, mas Persus parecia sério o suficiente para que ela não ousasse em discordar. Além disso, talvez fosse a única coisa que realmente pudesse fazer para ajudá-lo.
- Sim, senhor Persus, aceito essa como minha dívida junto ao senhor e aos velhos deuses.
- Então temos um trato – disse ele abrindo o sobretudo e levando seu dedo mindinho em direção à fada que permenecia imóvel tentando entender seu significado. – Aprendi com uma amiga que se cruzarmos os nossos dedos mindinhos será um trato de vida – completou ele sorrindo, fazendo com que Rixi apoiasse seu curto e fino dedo contra o dele, pensando que talvez fosse um selamento mágico poderoso do qual nunca escutara falar.
Persus contou os dedos que cabiam entre a base do sol e o horizonte de modo que pudesse saber quantas horas ainda lhe restaram e pulou novamente em meio a selva, tomando o caminho de volta.
Escutou a barriga de Rixi roncar, mas não poderia fazer nada nem que pudesse. Ela deveria aguardar um pouco mais. Já era entardecer quando se aproximara do limite da floresta novamente. Mal viu quando atravessou um fio invisível com um de seus pés. Foi rápido o suficiente para entender a palma de sua mão e lançar um sopro de ar contra o dardo que o alvejara, desviando seu trajeto e fazendo com que atingisse o tronco de outra árvore no caminho. Uma armadilha, pensou ele. Uma que não estava ali antes. Não achava que fora seguido durante todo tempo, tinha se certificado disso por inúmeras vezes no trajeto. Era bem mais provável que alguém não tivesse acreditado em sua história e previsto seu destino. Somente um ser da floresta poderia tê-lo rastreado em meio às folhas mortas caídas ao chão e só cruzou com um deles desde que chegara.
Atrás de uma das árvores o elfo da noite se revelou, levando uma das adagas contra seu pescoço, fazendo com que ele se inclinasse rapidamente para trás para se desviar. Deu alguns passos para trás e adotou uma posição de ataque com as mãos nuas, mantendo os olhos em seu adversário que mostrara suas lâminas azuladas e visivelmente afiadas, girando-as em cada uma de suas mãos.
Ele teria que tirar seu sobretudo, não poderia arriscar que Rixi fosse acertada, mas dessa forma também revelaria sua identidade. Suas asas não gerariam muita vantagem naquela situação. O espaço era quase tão limitado quanto o da gaiola que carregava. Não tinha escolha, teria que acabar a luta ali de qualquer forma. Podia sentir o coração medroso da pequenina, que mantinha a parte do acordo, ainda que provavelmente assustada. Em um movimento rápido tirou o sobretudo de seu corpo, jogando-o para trás e mostrando as asas que se mantinham fechadas.
- Sabia que havia algo de errado com você desde o começo, forasteiro. Seu corpo me trará muito mais ouro do que gastou com aquele ser desprezível – disse ele lambendo a lateral de uma das lâminas enquanto encarava Persus. Estranhamente, seu adversário se mantinha sob uma perna só, imóvel, esperando o momento ideal para atacá-lo. Durante a guerra lembrara de ter estudado as práticas do povo da noite. Rápidos como os sussurros aos ouvidos e mortais como a própria noite.
- Perdoe-me não atender suas expectativas. Essa era a última coisa que eu planejava fazer, mas já quebrei tantas regras hoje que uma a mais não fará diferença. – terminou ele quando o drow partira velozmente em sua direção empunhando as adagas. O homem desferiu três ataques, no primeiro Persus se abaixou fazendo com a lâmina passasse sobre sua cabeça, no segundo desviou o punho armado com a palma de sua mão e no terceiro, com a lâmina reta contra sua face, pulou para trás, girou sobre seu corpo, e com as mãos sobre o chão acertou um chute no queixo do drow fazendo com que este cambaleasse para para trás até que atingisse uma das árvores. Um golpe preciso e elástico que arrancara o sangue azulado dos lábios de seu inimigo.
O drow assumiu a mesma posição novamente, movimentando-se lateralmente, fazendo com que Persus se movimentasse também, as árvores passavam entre eles, como se pudessem andar. Sabia que provavelmente tentaria atraí-lo para alguma armadilha, o que fazia com que Persus fosse forçado a atacar. Não poderia se distanciar mais de Rixi. Aplicou um chute em uma das árvores à sua frente, partindo o tronco com seus pés. O ataque que seu adversário aguardara. Deslocou-se para onde seus olhos não conseguissem alcançar. Aquelas lâminas provavelmente fatiariam suas costas tão facilmente quanto as folhas sob seus pés, mas antes que elas pudessem alcançá-lo, abaixou-se levemente para esquerda e abriu sua asa direita, em uma reação tão rápida quanto inesperada, atingindo o corpo do Drow e lançando-o contra as árvores novamente, ainda que não fosse suficiente para derrotá-lo. O filho da noite novamente se ergueu e se deslocou rapidamente para trás de uma delas, quando Persus o perdeu de vista. Seus olhos tinham seus palpites, ainda que sua experiência o dissesse que quaisquer que fossem, era provável que não passassem de distrações. Eram filhos da floresta e a falta de luz ali começou a ser uma inimiga perigosa. Agora era ele que teria que aguardar de modo reativo. Contava que seu oponente não demorasse em sua decisão. As árvores o rodeavam como soldados fiéis do filho da noite. Sabia que não poderia se estender muito. Teria que conseguir tempo suficiente para acertá-lo de uma vez.
Como previra, o ataque não veio da árvore que pensara e sim de outra ao lado. Estendeu seu antebraço defendendo a lâmina que estava prestes a atingir seu rosto. A lâmina perfurou seu braço, mas fez com que o ataque não atingisse seu destino. Persus cruzou os dedos contra a mão que o atacara puxando seu braço para o lado e abrindo sua guarda e a de seu oponente. Sua mão foi mais rápida que a lâmina que o homem segurara na outra mão. Sua palma atingiu o peito do Drow e a onda de ar criada expulsou seu corpo com ferocidade, tanto que a primeira árvore que atingiu partiu ao meio quando somente a segunda foi capaz de pará-lo. Persus finalmente se aproximou, enquanto o Drow se sentou. O confiante caçador não conseguia se levantar, já que parte de sua bacia parecia ter sido quebrada. Jogou uma das adagas em direção a Persus, que a desviou apenas com dois de seus dedos.
- Infelizmente, você foi julgado pelos deuses, meu caro amigo – disse ele apoiando um dos joelhos sobre o chão diante dele, enquanto o drow empunhava a adaga que sobrara. – Um homem deve aceitar seu destino. Esse é o caminho ensinado por eles.
- Cale a boca, seu animal, não quero sua piedade – esbravejou o drow.
- Não se trata de piedade, meu senhor, só não há nada mais que eu possa fazer. Seu corpo não sairá dessa floresta.
O drow tentou, sem qualquer efeito, estender sua última lâmina contra ele, que nem ao menos precisou se mexer. Sabia que a vida do homem se esvaía ainda que tentasse disfarçar a dor sobre o rosto contorcido.
Persus segurou a mão já trêmula do homem que tentava reagir e forçou a adaga contra seu próprio peito sem qualquer defesa. Era o melhor a ser feito. Era um produto daquele mundo, composto de histórias e pensamentos que desconhecera, assim não havia qualquer justificativa para o mantê-lo em sofrimento. Se houvesse alguma justiça a ser feita, essa seria feita pelos deuses que se encarregariam de seu julgamento.
Fez um sinal sobre a face desfalecida, um círculo cortado em seu meio, o símbolo da benção dos seres da floresta, fechando os olhos do homem à sua frente e deitando seu corpo sobre as folhas secas. Uniu-se à natureza novamente, como seus ancestrais um dia também o fizeram.
Caminhou de volta até suas roupas. Abriu um pouco do sobretudo que jogara ao chão e lá estava ela com o olhar estremecido. Quando o viu, pulou do bolso em que estava, abraçando seu pescoço com as pequenas mãos enquanto lágrimas de alívio corriam sobre seu rosto.
Ele riu.
- Não se preocupe, minha pequena, disse que cumpriria minha promessa – disse ele retribuindo o abraço de Rixi com um de seus braços enquanto o outro pegara sua roupa que pretendia vestir novamente assim que Rixi se acalmasse.
- Seu braço, senhor Persus – disse Rixi reparando o braço encharcado de sangue que ostentava o Lumeriano.
- Não é nada, logo estará bom novamente – respondeu ele, acomodando-a sobre o ombro e seguindo em direção das pedras por onde vieram. Certificou-se que andar com a fada no colo até que ficasse longe o suficiente do corpo do drow, o que não levou muitos metros. Talvez a cena fosse forte demais para ela, mesmo sabendo de quem se tratava. Persus tentou localizar alguma bolsa que provavelmente o drow deixara pelo caminho. Se tinha planos de aguardá-lo, provavelmente passaria a noite ali caso fosse preciso.
Coletou a gaiola que deixara para trás e andou por alguns minutos até que viu uma bolsa amarrada na copa de uma das árvores. Era quase da cor das folhas, o que dificultou que a encontrasse rapidamente, mas estava lá.
- Achei nossa comida, Rixi - disse ele empurrando a base da árvore o suficiente para que a copa descartasse a bolsa do alto. Soltou o sobretudo e pegou a bolsa na outra mão antes que caísse ao chão.
Persus abriu a bolsa e encontrou um cantil, seis pedaços de carne ressecados no sal, que geralmente eram usados por viajantes, uma corda fina, um pedaço de um cipó torcido, provavelmente comestível apesar da aparência pouco apetitosa, uma pederneira e oito moedas de ouro. Mais do que precisavam e menos do que o necessário para que alguém sentisse qualquer falta.
A fada encarava a refeição com olhos famintos, mas com a boca fechada. Provavelmente achasse que já havia pedido coisas demais. Ainda assim o ronco de seu pequeno estômago parecia estar lutando em desespero.
- Vamos, coma, Rixi, tem que se alimentar, não há como eu levá-la de volta se você morrer de fome antes.
- Não se preocupe, senhor Persus, não estou com fome, posso ficar com os restos.
Persus riu.
- Coma logo, pegue – estendeu o cipó que ela encarava com avidez.
- Tem certeza, senhor Persus? – questionou parecendo esperar que o sim saísse imediatamente de sua boca.
- Claro que sim, fique à vontade e pegue isso também e guarde com você para se alimentar sempre que tiver fome – deu a ela uma das tiras de carne, que provavelmente a sustentaria por dias. – Sei que não é o tipo de comida que deve gostar, mas não nos restam muitas opções nesse lugar.
- Muito obrigado, meu senhor, o senhor é um homem muito generoso.
- E a senhorita muito teimosa – acrescentou ele enquanto se sentava e mordia uma das tiras. - Veja, sempre aceite as coisas boas que as pessoas oferecerem a você. Não há nenhum demérito nisso. Se devolver a gentileza para o mundo ao seu redor, o ciclo sempre se perpetuará.
Rixi assentiu com a cabeça rapidamente enquanto a pequenina boca cheia se deliciava com o longo cipó em suas mãos.
Ele via em Rixi a ingenuidade que uma vez habitara seu corpo. Quase se esquecera de como era ver o mundo sem tantas preocupações. Passara tanto tempo em tantas guerras e missões de razões vagas e obscuras que sua mente só tinha espaço para as táticas de batalha e seus próprios traumas, bem diferente daquela criança a sua frente. Era seu papel que o futuro dela não repetisse o seu passado, como gostaria que alguém o tivesse feito por ele um dia. Ele decidiu ficar na mata aquela noite. A copa das árvores altas era abrigo mais do que seguro e poderia chegar rapidamente ao seu destino no outro dia pela manhã.
Persus
O sol estava quase em seu ápice quando terminara de escalar o penhasco. Tomou o cuidado para que subisse pela parede rochosa à esquerda, longe da visão daqueles que vinham da cidade como ele. Um caminho mais difícil, mas com certeza mais seguro.
Seria tão mais fácil caso pudesse usar suas asas. Para um trabalho como o dele nem sempre eram tão funcionais, mas a paixão pelo ar era algo difícil de explicar com palavras. Em Lumeran voava por horas em meio à imensidão do mar, como se o mundo fosse tão calmo como as marés que o faziam companhia. Depois daquela missão, com certeza precisaria de algo como aquilo, ainda que antes precisasse cumprir sua promessa à Rixi. Foram alguns dias a mais velejando até que chegasse ao seu pacato destino.
Finalmente completou a subida, tão difícil quanto certeira. Erguendo levemente os olhos, pôde ver as tendas que se espalhavam pelo chão. Algumas delas com fogueiras já apagadas da noite anterior. Abaixou rapidamente quando dois gigantes se aproximaram, esperando que os passos voltassem a se distanciar. Precisava achar algo para se esconder. Algumas árvores esparsas compunham o que poderia chamar de aldeia. Não era organizada de qualquer forma e mais pareciam nômades do que uma cidade politicamente constituída. Persus se deslocou agachado até um conjunto de caixas que se amontoavam perto de uma das tendas. Viu perto do penhasco alguns portais de pedra com cerca de seis metros que rodeavam uma larga mesa ao fim de algumas escadas que subiam em direção ao precipício. Em algumas culturas era comum o sacrifício de animais aos deuses, ainda que aquela parecesse limpa o suficiente para desconfiar que não a usavam com muita frequência.
Havia deixado Rixi na base da montanha com uma das pedras ressoantes que carregava consigo, prevendo uma eventual emergência. Em seu bolso esquerdo havia sete delas. Funcionavam como propagadores de som. Eram encontradas em diversas tonalidades, aquelas azuis tinham como a principal a mais escura entre elas, que recebia os sinais das demais. Quanto maior a quantidade de pedras, maior a dificuldade de separar seus sons, ainda que aquela quantidade não fosse problema para os ouvidos treinados do Lumeriano. Já fizera aquilo tantas vezes que havia perdido a conta.
Aquela ocasião particularmente não se apresentava como um grande desafio. Bastava que as enterrassem naquele solo. Situação bem diferente de outras ocasiões nas quais seu formato não ajudara muito na missão de escondê-las. Ao final, bastava que destruísse a pedra principal para que as outras se tornassem apenas pedras comuns.
Caminhou mais adentro se distanciando da ponta do penhasco que vira inicialmente, no que parecia ser o acampamento principal, ainda que não visse muito movimento por ali. Espalhou os objetos entre as tendas que encontrou de forma mais dispersa possível. Quase fora visto quando um dos gigantes voltou para pegar o que parecia ser uma sacola de ferramentas tão rústicas quanto seus donos. Persus pulou rapidamente contra algumas peles depositadas a sua frente. O cheiro ainda pútrido que atordoava suas narinas e as moscas que o rodeavam indicavam que se tratava de couro não curtido, de algum animal grande que não soube identificar.
Continuou se esgueirando cada vez mais ao interior do território e mais ao fundo viu o que parecia ser uma construção principal. A murada era mais bem-acabada, e a torre em seu centro era composta por várias pedras de tamanho ainda maiores do que aquelas do cais, coladas por algum tipo de resina. Possuía no mínimo quatro andares e tinha uma frente bastante larga, ainda que não fosse possível avaliar sua profundidade de onde estava. Até então a única coisa que fugiu do esperado era que não havia quaisquer portões ou qualquer coisa que impedisse seu acesso. Eram totalmente abertas, diferente de tudo do que já havia visto até então.
Com certeza os assuntos do reino também seriam alvo de discussões fora do círculo da nobreza, ainda que soubesse que talvez as mais preciosas estivessem ali dentro daquelas paredes. Era um terreno totalmente desconhecido e estava sozinho. Os gigantes dali provavelmente fossem mais bem treinados, o que dificultaria sua missão de permanecer no anonimato. Era adequado esperar o luar. A visão deles era tão ruim quanto a dele e as brumas provavelmente seriam uma vantagem com seu tamanho. Aproveitou o tempo para analisar o padrão com que rondavam o entorno do castelo para que pudesse saber o tempo perfeito para pular os muros. Depois que entrasse, teria cerca de noventa minutos até a próxima abertura.
Aguardou a hora marcada em seu relógio de bolso e correu contra o muro de pedras, pulando-o e o transpassando sem maiores dificuldades. Eram bem mais baixos do que as árvores que escalara anteriormente e um pouco maior do que os próprios gigantes. Saltou agora contra uma das paredes do que parecia se tratar de um castelo, alcançando uma janela tosca sem grades. Subiu rapidamente e se esgueirou até o canto mais mal iluminado pelas grandes lamparinas, que exalavam o cheiro de óleo queimado no ar. Alcançou um grande corredor, pelo qual caminhou cuidadosamente até o final. Cabeças de animais espalhadas decoravam o trajeto. Animais de tamanho considerável, em sua maioria ursos de pedra. Parecia um troféu para eles. O maior, no entanto, com certeza não estava ali, Ryoros, uma das calamidades, fora derrotado por Iadrin antes do fim da grande guerra, o que conferira ao mago grande fama desde então. Era colossal, tão grande que até mesmo os gigantes não passariam de pequenos soldados.
O final do corredor dava acesso a quatro salões laterais, uma escada que subia e outra que descia em um subsolo que não havia previsto até então. Provavelmente o dormitório dos guardas e dos serventes. Eram adequadamente iluminadas e sem quaisquer outros acessos aparentes. Qualquer um que as usasse no mesmo momento que ele, conseguiria vê-lo sem dificuldades. A adrenalina começou a tomar seu corpo. Ele sempre a controlara, apesar de apreciar a sensação. Parecia finalmente se sentir vivo, ainda que provavelmente fossem apenas vestígios reativos de todas as batalhas que enfrentara. Passou pouco mais de uma hora sem que ninguém passasse por ali. Não tinha muito mais tempo para perder. Um castelo estranhamente deserto que provavelmente só havia sido construído para que se igualassem aos demais povos. Gigantes eram seres livres que viviam nas cavernas entre as montanhas. A cultura que chegara ali provavelmente seria difícil de assimilar, ainda que a imponência que traziam consigo trouxesse seus louros.
Decidiu arriscar. Correu rapidamente às escadas e escorregou sobre o corrimão de pedras. Diferente do andar de cima, era mal iluminado e igualmente deserto. Grades de ferro cobriam suas laterais até o fundo da masmorra. Provavelmente haviam reservado todo aquele espaço para ele, já que nenhum outro louco aceitaria o risco que correu ou talvez os presos ali não durassem tanto quanto em Lumeran. Precisava averiguar os demais locais, a falta de vigilância avivava sua curiosidade. Talvez fosse muito mais fácil do que imaginara.
- Não sei quem é, mas deveria sair daqui – alertou a voz que vinha do fundo, assustando Persus que até então não havia visto ninguém por ali.
Entendeu a razão quando olhou atentamente. A voz vinha de um jovem da cor das pedras, calvo e agachado na quina ao fundo. Um prisioneiro dos gigantes que despertara seu interesse, afinal, qualquer inimigo de seu inimigo poderia lhe fornecer informações relevantes, ainda que o alerta preocupado não fosse habitual em qualquer lugar como aquele. Claramente era um infiltrado e qualquer um que estivesse naquela situação negociaria sua própria liberdade em troca do valor de seu silêncio.
- Sei dos perigos, meu jovem, aparentemente tanto quanto você, mas não se preocupe, já sairei daqui – disse ele se aproximando com passos lentos.
- Espero que sim. Os donos desse lugar não costumam ter piedade com aqueles que o desafiam.
- Nada além do esperado – disse ele se aproximando das grades lentamente com as mãos em seus bolsos. - E você, meu jovem rapaz, por que motivo o trancafiaram aqui? Abateu algum deles?
- Não parece muito, mas sou um deles também, meu senhor.
Persus estranhou, não tinha o tamanho de um gigante. Talvez tivesse nascido com alguma deficiência, apesar de aparentar um vigor físico de padrões normais. Ainda que fosse pouco menor que Persus, seu tronco era largo, mais do que suas pernas pareciam suportar. O tom cinza de sua pele fosse de fato um traço característico de alguns gigantes, mas haviam marcações distintas, tatuagens enegrecidas e retas ao longo do corpo mal coberto. Um híbrido provavelmente. Dificilmente aceitos, o que talvez fosse a razão pela qual estivesse ali.
- Me perguntou porque estou aqui, meu senhor. Perguntou se eu abati um deles. Meu crime foi justamente não ter feito isso. Me obrigaram a lutar, meu senhor, mas não desejo o sangue. Tenho apenas dez anos, não é justo que me forcem a abater um irmão – explicou o homem que alegava ser um menino com a voz dolorosa dos injustiçados.
Dez anos? Pelos deuses... Pensou Persus, espantado. Uma criança raptada, a outra presa, isso em somente dois dias. Algo muito errado acontecia por ali. Uma criança gigante, apesar de ainda ser aparentemente menor e com traços no rosto não tão acentuados como os demais. Sua mandíbula sem o saltado característico também chamava a atenção. A situação se complicava ainda mais, ainda que provavelmente fosse só um exótico castigo. O problema era que o garoto o vira. Contaria para seus pais ou algo do tipo, embora a palavra de uma criança não valesse mais do que um tostão de cobre.
- Garoto, sabe onde estão todos?
- É dia de caça, meu senhor, não deve demorar muito até que voltem para abastecer os armazéns.
- Fazem isso regularmente?
- Toda vez que brindam, senhor.
- E brindariam a que exatamente?
- À posse do novo rei, senhor.
Enfim algo interessante, amanhã era o dia da posse do novo rei.
- O que aconteceu com Tralon?
- Fui fraco, meu senhor, os gigantes não toleram a fraqueza. Tralon prometeu a glória e não a trouxe, o que o colocou em uma situação delicada. Foi então que Vortmor o desafiou e o venceu. Ele é nosso rei agora – revelou o jovem rapaz.
Simples assim? Talvez não tivesse nada demais, mas ainda que estivesse inclinado a descobrir outras informações, não havia mais tempo para que voltasse de modo seguro, ainda mais agora sabendo que os gigantes poderiam estar prestes a voltar. Agora sabendo o que esperar, poderia tentar voltar no próximo dia para conversar com o garoto, caso as pedras não dissessem o que gostaria de saber. A língua solta dos jovens com certeza lhe trouxera um triunfo inesperado. Ao menos sabia que Vortmor era o sucessor. Uma informação que provavelmente chegaria de qualquer modo aos ouvidos dos outros reis, mas que chegaria primeiro aos ouvidos de seu reino.
- Entendo, não se preocupe, meu garoto, o futuro sempre é brilhante para quem faz o bem. Tenha a certeza que os deuses o abençoarão – disse ele calmamente, enquanto processava aquelas informações.
- Muito obrigado, meu senhor, acredito nisso também, estou ansioso para conhecê-los - respondeu ele revelando um tímido sorriso. Vestira somente um saiote sujo, empoeirado com o calcário esbranquiçado que tomara o chão da cela.
Quase disse a ele para que parasse de falar asneiras, mas era somente uma criança, não merecia tamanha dureza. Uma prisão naquela idade já era provação suficiente. Ele só conhecera uma depois de adulto, da qual tinha as piores recordações.
- Preciso ir, meu jovem. Tome aqui, não é muito, mas provavelmente o manterá até que saia daí – disse ele retirando três tiras de carne que sobraram e as jogando em sua direção. Aguentaria ficar sem comer pelos próximos dias se fosse preciso, a noite anterior havia sido farta, e Rixi já tinha o bastante também. De qualquer forma os deuses o agraciaram com aquela refeição, seria bastante justo que partilhasse a dádiva com aquele garoto. Ao menos diminuiria sua angústia.
– Peço somente que não diga que passei por aqui. Não vim fazer nada de mal, sou apenas um curioso – completou ele partindo em direção das escadas.
- Sem problemas, meu senhor, de qualquer forma obrigado pela comida e pela visita – disse o garoto em tom quase inaudível quando ele chegou na base das escadas.
Parecia ser um bom garoto, mas infelizmente não poderia chamar atenção mais do que havia chamado até aquele momento. Pensou se haveria alguma possibilidade dos gigantes terem o mínimo da gentileza daquele garoto algum dia. Matar seus irmãos em duelos não parecia ser um bom modo de construir caráter de quem quer que fosse, ainda mais para seres tão poderosos como aqueles. Até mesmo as duras cabeças Orchidianas haviam entendido a lição.
Voltou pelo caminho deserto até a mesma janela que adentrara o castelo, ainda com alguns poucos minutos para o próximo intervalo seguro. Ouviu os passos atabalhoados, as vozes graves e os ruídos do tintilar dos metais que se misturavam e se aproximavam. Pulou para o lado de fora cuidadosamente, entre o castelo e o muro, e aguardou abaixado sob o peitoril da janela. Eram pelo menos vinte deles que mais pareciam uma manada de elefantes em fuga. Havia dado sorte de qualquer forma. Seria importante que tivesse aproveitado para olhar os andares de cima, mas já havia se arriscado demais. Certamente encontraria mais dificuldades agora. Observou rapidamente enquanto traziam os corpos abatidos que provavelmente estariam presentes no banquete de amanhã.
- Ei, Giliath, acompanhe o novato da cabeça rachada. Ele ficará responsável pela cozinha amanhã – disse o que estava à frente.
- Sem problemas - respondeu o segundo. – Ei, Daburn – gritou ele a um dos gigantes ao final do comboio. - Leve as carcaças até a cozinha, arranque o couro e leve ao curtume, a carne ao sal. Já sabe o que fazer.
- Sim, senhor, seguirei como orientado – respondeu o último gigante preguiçosamente, que carregara ao menos três grandes animais sobre as costas, o de cima com certeza um dos ursos de pedra de outrora.
De alguma forma aqueles gigantes acenderam algumas dúvidas. Não pareciam que todos tivessem a inteligência tão limitada como muitos pensavam. Eram capazes de se organizar pelo menos com tarefas simples.
Persus não tentou escutar mais. Tinha alguns segundos para transição. Pulou rapidamente o muro e antes que pudesse ver a silhueta de um dos guardas que aparecia ao horizonte, saltou novamente contra alguns arbustos mais à frente. As sinapses que borbulhavam em seu cérebro eram um pagamento tão satisfatório quanto arriscado. Pensou em prometer que não faria mais isso, ainda que soubesse que só estaria mentindo a si mesmo.
Andou silenciosamente pelas escassas árvores até o limite da montanha. A lua era cheia e brilhava quase como o próprio sol. Tirou o sobretudo, segurando-o em uma das mãos, e pulou estendendo as longas asas. Depois de alguns segundos aterrisou delicadamente sobre as copas da floresta. Era reconfortante voar novamente, ainda que fosse por tão pouco tempo.
Viu Rixi ao topo, exatamente como a deixara. Apesar de ser falante, era bastante obediente, o que facilitaria o trabalho de tirá-la dali.
- Senhor, senhor... – disse ela tentando chamar a atenção. - Estava preocupada.
- Não há motivos, Rixi, tive apenas alguns contratempos.
- Pensei em acionar a pedra por diversas vezes, mas pensei que talvez fosse atrapalhar, meu senhor.
- Fez bem, a situação está bastante delicada lá em cima e ainda tenho uma noite longa pela frente. Apenas durma. Dependendo do que acontecer amanhã partiremos a Faldram imediatamente.
- Sim, senhor – respondeu ela sem conter o entusiasmo, enquanto se encolhia em uma depressão no tronco feita por ela mesma durante o tempo que estivera sozinha. Era como uma pequena concha, ainda que fosse mais do que o suficiente para acomodá-la.
Persus recostou as costas no tronco da árvore, depositando sua vestimenta ao lado. Pegou a pedra para escutar suas pequenas espiãs, buscando qualquer coisa que pudesse ajudá-lo.
Estava quase em seus sonhos quando escutou o nome de Tralon.
- O filho de Tralon será sacrificado amanhã. Não pediram para que eu afiasse o machado, mas afiarei mesmo assim. O garoto parece ser resistente, não podemos correr o risco de acabar atrasando a posse – disse a voz que chegava à pedra.
- Deve cuidar é do pai, não acho impossível que ele tente salvar aquela coisa, aquele mestiço inútil – respondeu uma voz grave e feminina mais ao longe.
- Ele receberá sua recompensa, mulher, não se preocupe, não há qualquer coisa que possa fazer sozinho, todos estão ao lado de Vortmor, é o que sei. É melhor escolher o ouro do que perder a vida. Qualquer idiota deve saber disso.
- O que estou querendo dizer é para que seja cauteloso, Tralon não foi, caiu em ruína, não seja tolo fazendo o mesmo. Mantenha-o longe, mantenha os olhos nele, seja esperto.
- Que seja, alguns homens não farão falta.
Mestiço? A descrição batia com a do garoto. Não era totalmente gigante e garantiu que fosse um deles. Algo bastante incomum entre os membros da realeza, para não dizer impossível. Nunca havia visto qualquer caso assim, ainda que achasse que fosse o caminho para a verdadeira paz, afinal, se todos fossem iguais certamente não se ocupariam brigando por terras ou em nome de seus próprios deuses. Os gigantes não toleram a fraqueza, pensou ele na frase que ecoara em sua mente. O garoto era filho de Tralon, disso tinha quase certeza, porém, se isso de fato fosse verdade ele estaria condenado e provavelmente já soubesse disso. Disse que estaria ansioso para conhecer os deuses porque sabia que aquele seria seu último dia, apesar de não parecer nem um pouco preocupado com tal destino.
Viera somente para coletar informações e passara a ter agora dois grandes problemas. Rixi já era um dos grandes, o outro é que não poderia deixar com que aquilo acontecesse. Sabia das consequências. Interferir na soberania de outro reino seria uma declaração de guerra, ainda que fosse provável que Lumeran dissesse que ele agira por conta própria, tornando-se assim um foragido. Era o pagamento pela sorte que tivera a outrora. Os deuses controlavam a balança do mundo e agora cobrariam seu preço. Já havia feito muitas coisas na vida, tirara a vida de homens que nunca conhecera, espionara reis e castelos e abdicara de uma vida provavelmente mais longa em nome de seu rei, mas tirar a vida de uma criança, por quem quer que fosse, não traria justiça a ninguém. Provavelmente fosse a razão para que ele estivesse ali, naquele dia, naquele local. Acreditava na justiça dos deuses talvez mais do que em suas próprias palavras e já havia visto tantas vezes a balança voltar ao eixo que não poderia ter qualquer pensamento diferente do que o habitava no momento.
Persus
Não conseguiu dormir, pensara no plano diversas vezes, não era muito complexo, só arriscado demais. A única coisa que tinha certeza em meio às dúvidas que pairavam em sua mente, era que a vida daquele garoto estava em suas mãos.
- Rixi, desça aqui por favor – disse ele enquanto finalizava a amarração da bolsa enrolada com seu sobretudo e a corda que coletara anteriormente, montando um pequeno volume, enquanto a fada acordava. A gaiola havia deixado longe dali para poupar a fada de seus traumas.
Mal abriu os olhos quando atendeu o pedido do Lumeriano.
- Sim, senhor Persus, estou à disposição – disse fada em um bocejo.
- Preciso que chegue até o barco sem mim e me espere por lá. Seguirá reto nessa direção – mostrou a marcação a nordeste na bússola amarrada à bolsa. – É uma pequena balsa e está ancorada em uma pedra. Se não conseguir desamarrá-las, use sua magia para se desfazer delas.
- Não sei velejar, meu senhor.
- Terá que contar com a sorte, pequena. Se voltar àquele porto será presa novamente, um risco muito maior do que o mar. Assim que abrir a vela do barco, aponte-a ao norte. Provavelmente chegará a Faldram em alguns dias. Nas tempestades se mantenha agachada até que passe. Isso apenas caso eu não volte até o pôr do sol.
- Como não voltar, meu senhor? O senhor prometeu que me levaria de volta – murmurou a fada tristonhamente.
- O que farei será perigoso, Rixi, assim como você, há outra criança que precisará de minha ajuda. Ela morrerá hoje se eu não interferir. Entende isso? – disse ele carinhosamente esfregando a cabeça da fada.
- Entendo, meu senhor, como disse antes, o senhor é um homem de bom coração, seria muito egoísmo meu pedir que o senhor o deixasse nessa situação – respondeu cabisbaixa.
- Não se preocupe, não facilitarei para eles.
- Sei disso, meu senhor, rezarei para que Gaya abençoe seus passos – disse a fada sorrindo com os olhos marejados.
- Obrigado, pequena, ainda tenho um pagamento a receber, lembra? - retribuiu o sorriso a ela. – Leve isso com você, coloquei a bússola também aqui dentro. Ao meio-dia sairei daqui em direção ao barco. Voe o mais alto que puder, com seu tamanho, é mais provável que pensem que seja um pássaro.
- Sim, senhor, não se preocupe, também não cairei tão facilmente – disse a fada, replicando suas palavras com uma confiança que até o enganava com certo sucesso.
- Vamos então, lembre-se que está com uma das pedras, fique com ela em mãos, se tiver qualquer problema não hesite em me acionar.
- Vamos! – exclamou ela colocando a pequena trouxa sobre as costas enquanto puxava as cordas que contornavam seus pequenos e finos braços.
Rixi partiu, em meio às copas como Persus a orientara. Ficaria embaixo delas também até que chegasse o horário. O garoto era grande e com certeza seria um peso a ser considerado. Provavelmente estaria acorrentado, mas nada que fosse um problema para sua magia.
O segredo de manipular o ar não estava apenas em criar impulsos, mas também em produzir vácuo, de modo que seus movimentos se tornassem livres de qualquer atrito.
Persus
Naquela hora Rixi provavelmente já havia chegado ao seu destino, ao menos era o que indicava a pedra que não fora acionada até aquele momento. O sol estava quase em seu posto, quando ele terminara a escalada. Estava bem perto da borda e já escutava as vozes da multidão. Teria que ser rápido, qualquer deslize o colocaria na mesma bandeja do garoto que tentaria salvar.
- Irmãos, estamos aqui reunidos para celebrar Vortmor, o rei que guiará os nossos passos a partir de então. Requisitaremos a força de Trodor e em seu nome faremos o sacrifício do mestiço – discursou um dos gigantes que parecia ter uma dicção mais fluída que os demais. – O sangue manchado retornará aos céus e as bênçãos das montanhas recairão sobre nós. Em nome de Vortmor, rei de Taldramond, invoco o sacrifício – finalizou o homem acompanhado por tambores de som abafado que ecoavam em uníssono.
Havia chegado a hora. O carrasco se posicionou. Vestia um elmo que cobria seu rosto, erguendo um machado de lâmina afiada, que refletia a luz do sol como um espelho. Os sons dos tambores se aceleraram, o machado subiu enquanto os músculos de seus braços se comprimiam. O garoto tinha as duas mãos acorrentadas à mesa, como um animal esperando seu abate, ainda que não esboçasse qualquer reação.
A lâmina parou por alguns segundos no ar. Quando o sinal foi dado, um par de asas brancas emergiram contra o sol, tão claras que o carrasco teve dificuldade de identificar a luz que o cegara. Tentou tampar a luz com uma das mãos imediatamente, mas antes que pudesse completar a trajetória de sua lâmina, foi acertado por um pequeno pé em seu elmo que mais parecia a ponta de um martelo. O gigante se desequilibrou, dando alguns passos em direção à escada, mas ainda empunhando o machado em uma das mãos. Persus dobrou suas asas para trás ainda no ar, impulsionando-se rapidamente contra ele e aterrissando com uma das mãos ao chão. Girou uma de suas pernas rapidamente desenhando um arco ao chão e lançando o corpo do gigante contra os degraus irregulares que davam acesso à mesa de execuções. Todos aqueles grandes olhos furiosos o encaravam, como feras famintas. Fariam com que seu sangue fosse derramado junto com o do garoto, disso tinham certeza.
Os guardas avançaram sobre ele, subindo a escadaria. Acertou o primeiro golpe com o punho aberto na corrente de ferro maciço que unia os grilhões das pernas e braços do garoto e que se quebrou como vidro. Na sequência comprimiu suas asas junto ao corpo, girou sobre seu próprio eixo em frente à cabeça de olhos atônitos e desferiu o segundo golpe de impacto ainda maior, quebrando a grossa coleira de ferro que ainda o prendia a mesa e fazendo com que a própria mesa de pedra se rachasse. Suas asas o tornavam ainda mais rápido. Faziam com que rodopiasse com a leveza de uma folha.
Antes que os guardas chegassem até ele, estendeu as palmas de suas mãos contra a escada e criou uma potente corrente de vento, lançando os que estavam mais próximos contra os demais que se aproximavam. O grande número acabara facilitando sua vida, já que não haviam espaços vagos para que desviassem de seus companheiros.
- Vamos, garoto – disse Persus, puxando o braço dele sobre seu ombro.
Não esperaria seu aval e nem tinha tempo. Abriu novamente suas asas, flexionando-as contra a plataforma e os jogando para trás em direção ao penhasco, suas mãos segurando o garoto impediram com que usasse magia de modo adequado e os guardas finalmente chegaram até ele. Suas espadas eram curtas demais para alcançá-lo e não poderiam persegui-lo pelos céus. O plano parecia ter dado certo, ainda que improvisado, mas antes que descesse em direção às copas, alguns gigantes abriram o caminho. Um gigante com um sorriso psicótico tomara a frente, tinha uma coroa dentada de ferro negro do mesmo material do punho cerrado que ostentara em uma de suas mãos. Na outra uma lança tão grossa quanto um tronco de árvore velha. Tentaria desviar, mas seus movimentos estavam limitados pelo corpo do garoto que era mais pesado do que estimara. A ponta da lança saiu das mãos do gigante, mais rápida que um piscar de olhos. A força aplicada à lança fora tão intensa que era possível ouvi-la cortando o vento. Persus impediu que o garoto tomasse sua frente em um momento de coragem. Com uma das mãos aplicou um golpe de ar lateral afastando seus corpos do perigo, ainda que não tivesse sido rápido o bastante. Penas brancas banhadas de vermelho foram lançadas pelo ar. A lança atravessou sua asa esquerda como um tiro de canhão. Cairam em queda livre do penhasco. Persus se conteve para que não urrasse de dor. A dor era intensa, como se tivesse um de seus braços arrancado de uma só vez. Na queda, enrolou a asa restante sobre o garoto de modo que pudesse amortecer o impacto. Um galho grosso se rompeu entre as copas antes de atingirem o chão úmido repleto de folhas.
- Senhor da noite, está louco? Por que fez isso? – disse o garoto tentando levantá-lo, o que aparentemente fizera sem qualquer esforço.
- Não temos tempo para explicações agora, garoto... Precisamos chegar ao meu barco o mais rápido possível... Mas sem minhas asas precisará correr comigo até lá – disse ele ainda ofegante com os suspiros de dor misturados em sua fala. Teria que aguentar chegar até ao barco. - Não demorará muito para que nos alcancem.
- Temo que o senhor tenha desperdiçado sua vida junto com a minha. Vortmor não descansará até que tenha nós dois sobre aquela mesa – murmurou o garoto desesperançoso.
- Se continuar falando ao invés de correr, é bem provável que as chances dele aumentem. Apenas não me perca de vista.
Ele saiu correndo pela mata em ritmo acelerado, manchando as folhas com um rastro vermelho. Qualquer tentativa de ocultar o caminho deles seria falha naquele momento. Chegaram ao final da mata ainda sem sinal dos gigantes e continuaram sobre as pedras. Persus sabia que não conseguiria se manter naquele ritmo por muito tempo, ainda mais com a extensão daquele ferimento, mas a impressão que tinha era que o garoto parecia estar participando de uma caminhada para idosos. Não suava e nem ofegava, como se a situação fosse tão natural quanto enxergar. Não lembrava de gigantes com tamanha resistência, ainda que os que conhecesse fossem provavelmente mais velhos e maiores do que ele próprio.
Lembrou-se da primeira vez que passara por ali, extremamente cuidadoso. Agora rezava para que não cruzasse com os ursos. O que lhe restava para o momento era apenas deixar migalhas para que eles ou os gigantes os encontrassem. Sabia que arriscara demais, ainda que soubesse que em nenhuma hipótese tomaria qualquer outra atitude. Era um homem sem casa agora, destinado a vagar como um andarilho por terras que nem sempre eram receptíveis com estrangeiros. Talvez Fisbia fosse um bom destino, tivera notícias desse reino criado justamente por pessoas sem lar. Amber e seus irmãos o perdoariam de qualquer forma. Sabia que se estivessem naquele mundo teriam tomado a mesma decisão. Se sua fé o permitisse salvar aquelas crianças, provavelmente tivesse tomado a decisão de acordo com o desejo dos deuses.
Ao chegar ao gramado verde e plano, sabia que estava perto de seu destino, por mais que sua visão estivesse embaçada e seus músculos respondessem de forma inconsciente.
- Meu senhor, posso carregá-lo até o destino que desejar, apenas me mostre a direção.
Persus não lembrava da última vez que aceitara ajuda, mas recusá-la naquele momento poderia significar a morte daquele garoto que acabara de salvar. Estende0u a mão sobre seu orgulho, apontando na direção do barco, ainda que lhe poupasse o restante de suas forças.
O garoto o ergueu sobre os ombros sem qualquer dificuldade quando Persus escutou os passos ao fundo. Eram seus algozes. Se soubesse da velocidade do garoto com certeza teria aceitado a ajuda mais cedo. Corria sem qualquer dificuldade, mesmo com o peso adicional, mantendo os passos que escutara a outrora a uma distância segura.
Alcançou finalmente as pedras, ainda que sua vista ao longe não permitisse enxergar muito mais.
- Vê o barco, garoto?
- Preso às pedras, senhor, chegaremos logo – disse o garoto enquanto mantinha o passo.
Os gigantes os avistaram. Ao longe, pôde escutar os rugidos que soltavam enquanto avançavam. Não tinham muito tempo. Outra lança daquelas transformaria o barco em entulho de madeira e não aguentariam uma noite mergulhados naquela água gélida.
- Garoto, quando chegarmos ao barco, desamarre a vela e deixe o resto comigo.
- Como quiser – respondeu o rapaz determinado sem questionar. Não o conhecia, mas tê-lo salvado parecia ser o bastante para que lhe ganhasse a confiança.
O garoto pulou entre as pedras pontiagudas como se as solas de seus pés fossem grandes estacas de ferro fundido, o que fez com que chegassem rapidamente ao barco.
- Pelos deuses, senhor Persus. O senhor está ferido – disse Rixi enquanto o garoto depositava o corpo dele sobre o chão, dirigindo-se à vela como combinado. Persus escutou a voz da silhueta que vira a sua frente com alegria. A pequena fada havia cumprido sua missão. – Fiz o que prometi, meu senhor, estou bem, deixe-me ajudá-lo.
- Rixi, apenas ajude esse garoto a guiar o barco e faça com que ele aponte a vela contra a palma de minhas mãos – disse ele quase inaudivelmente enquanto estendia novamente o braço. Sua audição fora tomada pelos rugidos que se aproximavam.
Rixi se direcionou ao rapaz que mal conhecera, transmitindo sua ordem.
- Estamos prontos, senhor Persus – gritou a fada à sua frente.
Nem terminara a fala quando um novo sopro de ar impulsionou o barco velozmente contra as marés, enquanto as águas salgadas os banhavam com violência. Foi a última sensação que tivera enquanto os sons se afastavam, dando lugar ao sentimento de dever cumprido.
A horda de gigantes os contemplaria sobre as pedras enquanto o pequeno barco sumia no horizonte junto ao pôr do sol.
A DEUSA VIVA
Rixi
Era o segundo dia desde a chegada dos centauros. As folhas das árvores que os rodeavam em seus diversos tamanhos e tons sombreavam o sol como um conjunto de grandes peneiras.
Rixi sobrevoava e observava atentamente o corpo do ser mascarado de cabelos azuis, ainda que poucos fios saíssem do elmo que vestia. Estava com roupas novas de pano simples e claro, bem diferente da condição que chegara no outro dia. Estava disposto em uma cama de pedra envolta de heras que o cobriam como um grande lençol verde e que se unia ao chão igualmente coberto por elas em perfeita sintonia. Ainda era difícil digerir os acontecimentos recentes. As notícias que chegavam era que Persus se sacrificara para salvar Rin e aquele jovem, ainda que este estivesse em estado bastante melhor.
Provavelmente Gaya não deixaria que partissem para o outro plano, assim como fez no dia em que Persus chegara ali. Lembrava de estancar suas feridas com o pouco de chamas que conseguia controlar em suas pequenas mãos na época, enquanto as águas salgadas banhavam o pequeno barco. Fora suficiente para que ele conseguisse guiá-los até as encostas de Faldram com as forças que lhe restavam.
Por que não sobreviveu novamente? Por que os deuses que acreditava não o abençoaram dessa vez? No fim, havia partido do mesmo modo com que vivera todos os dias, salvando todos aqueles que podia sem ao menos conhecê-los. A maldita balança de que tanto falava não fizera justiça dessa vez, não para ela.
Abdicara de viver seguramente dentro das fronteiras de Dypsia, que se fecharam logo depois do ataque de Lumeran, o que reforçou a acusação de que tinham auxiliado Noch, um dos mandatários do reino das fadas, ainda que Rixi soubesse que Dypsia seria poderosa e conservadora o bastante para se isolar até que as dúvidas deixassem de existir. Sabia que não conseguiria viver longe da família que Persus dera a ela, ainda que aqueles vínculos ainda fossem de alguma forma estranhos. Seres como ela, diferentes dos Falirianos, não tinham pais ou mães, eram seres nascidos da magia para a magia, sem qualquer outro objetivo naqueles dias que não fosse servir ao tratado, eram os chamados Vinolianos.
- Ei, Rixi, por quanto tempo ficará aí? - questionou Narthus, agora com quase o dobro de tamanho de quando fora resgatado, posicionando-se ao lado da mesa de pedra.
O garoto manteve o nome que herdara entre os pilares acinzentados. O maior ser que Rixi conhecera depois dos gigantes, ainda que não encontrasse em sua linhagem qualquer traço que pudesse explicar tamanha gentileza. Era um descendente direto dos originários do reino cinza, a força sobrehumana dos gigantes e a resistência inquebrável dos Golias unidas em uma máquina de guerra que materializava a ironia que os gigantes atribuíram aos velhos deuses. Narthus era completamente contrário ao desejo de sangue que guiava ambos os povos, uma maldição à miscigenação do sangue, que dera a Narthus o único nome que ouvira por anos, o de príncipe mestiço. Nada importava em meio àquela floresta, onde rótulos caiam como folhas no outono.
Rixi o tinha como um irmão, ainda que, ao contrário dele, crescera apenas poucos centímetros desde sua volta às florestas.
- Até quando achar necessário – respondeu ela sobrevoando o corpo do recém-chegado.
Já tinha se encontrado com Rin em outra ocasião, mas aquele rapaz era misterioso o bastante para intrigá-la. O elmo que mais parecia uma das máscaras amaldiçoadas da terra das cachoeiras. Aquelas escritas certamente eram de lá, traços desenhados e apoiados entre si, que salvo engano significavam “eternidade”, estavam entalhados no metal, ainda que não pudesse sentir qualquer magia vinda dali. Um castigo cruel a quem quer que fosse, já que nem mesmo a magia antiga ou as mãos hábeis dos seres da floresta haviam sido capazes de retirá-lo sem que isso representasse um risco iminente da integridade daquele homem. Quem quer que tivesse feito aquilo garantiu que fosse irreversível.
- Duvido que ele trará mais respostas do que já sabemos – disse Narthus tentando convencê-la.
- Ache o que quiser. Não o verá outra vez, sabia? Por que não pede àqueles pra quem tanto reza que eles o devolvam para nós? Persus morreu por eles, não foi? Para a famosa e inútil balança da justiça que usam para justificar qualquer coisa ruim que aconteça? Acha justo que ele morra por eles, Narthus? – questionou ela transtornada com os olhos visivelmente marejados.
- Não vou continuar qualquer discussão com você. Tinha Persus como meu pai, sabe disso, só que assim como ele, acredito que cada um tenha seu papel nesse mundo. Por mais que doa, Persus cumpriu o dele e garanto que ficaria feliz em saber que salvou os dois, assim como fizera quando desistiu de sua vida por nós.
- Se seus deuses permitiram que ele partisse não valem muito mais do que eu já imaginava sobre eles – completou ela enxugando o rosto. Quando mais nova fora fascinada pela era antiga. Queria contribuir com a paixão daquele a salvou, mas a cada busca, mais perguntas do que respostas eram encontradas, em páginas e mais páginas obscuras e cinzentas. Buracos na história que mesmo os que haviam vivido naqueles tempos pareciam fazer questão de esconder. Sabia que as velhas divindades haviam dado sua vida pelo tratado, mas a paz que tanto prometeram havia se desintegrado ao longo dos anos sem que estivessem ali novamente. Os infalíveis deuses não pareciam tão infalíveis assim, pelo menos para as cabeças mais desprovidas de paixão como a dela.
- Gaya também é um deles – justificou Narthus.
- E está aqui conosco – respondeu ela prontamente.
- Por alguma razão que você também desconhece.
- É impressionante como dá um jeito de defendê-los. Se fossem tão poderosos, onipresentes e bondosos como acredita, estariam aqui nos protegendo do que esse mundo se tornou, não acha?
- O que estou tentando dizer é que para tudo existe uma razão, Rixi! Persus perdeu tudo, não se lembra? Suas asas, sua casa, seu nome e ainda assim disse que foi muito mais feliz do que em todos os outros anos que vivera – lembrou Narthus em tom nostálgico, provavelmente relembrando dos cabelos brancos e dos sábios conselhos do mestre que os havia deixado. - Lembro da primeira vez que nos encontramos. Ele disse que sempre seriam abençoados aqueles que fazem o bem, mesmo que por caminhos tortuosos. Hoje, depois de tudo que aconteceu, seria impossível que eu pudesse discordar dele. Concordo que seja intrigante, mas é como se não soubéssemos que os caminhos estão certos até que os trilhemos por completo.
- Sim, faz bastante sentido – respondeu ela ironicamente. – Espero que encontre suas explicações quando eu também me for pela força do martelo que agora governa esse mundo – terminou ela quando o hóspede despertou.
- Persus... – gritou Cavian de uma vez, estendendo suas mãos ao nada enquanto se sentava, fazendo com que Rixi fosse forçada a se deslocar para trás com suas asas para que não ficasse em seu caminho.
Como pensava, o homem que acabara de voltar a vida, parecia ter as respostas que procurava.
Cavian
- Fique calmo, meu jovem, Persus não está aqui – explicou Narthus. - Ele salvou você e Rin e digamos que ele...Bem, digamos que...
- Ele se foi, Persus morreu para que pudesse salvá-los – interrompeu a fada sem enrolações.
- Mas que droga... – disse ele enquanto batia em seu elmo efusivamente. Cavian podia sentir a presença de dois seres à sua frente. Uma menor e outro bastante maior. Não sabia onde estava, mas a última lembrança que tinha era de Persus jogando-o para longe. Seus punhos desacorrentados indicavam que o plano do Lumeriano tinha tido êxito e o clima ameno de que estava longe daquele lugar, ainda que seu rosto ainda latejasse timidamente. Como pode se sacrificar por alguém que mal conhecera como ele? A sua incapacidade diante das situações que se apresentavam parecia ser sua sina agora e os pensamentos de angústia que o acompanharam durante anos voltavam a atormentá-lo. Provavelmente encheria um cemitério antes que finalmente partisse.
- Não se culpe, meu amigo, são tempos difíceis e eles costumam trazer mais tempestades do que habitualmente estamos dispostos a suportar – disse Narthus com a voz serena. – Pense que Persus ainda pode viver por suas próprias escolhas, diferente da maioria nós hoje em dia. Já sabemos pelos centauros, que os trouxeram até aqui, que estava preso em uma fortaleza em Gremory, mas Rin não soube dizer a razão. Quero que saiba que não somos seus inimigos, então não forçaremos nada até que se sinta à vontade para esclarecer as coisas. No coração dessa floresta você sempre estará seguro.
Cavian assentiu. Não sabia onde estava, mas as palavras daquele homem pareciam ser verdade. Apesar da dor que carregava consigo, por alguma razão aquele lugar parecia acolhê-lo.
- Meu nome é Cavian, filho de Bahamut e herdeiro legítimo do reino de Aquia. – respondeu ele diretamente, enquanto ainda tentava processar todas aquelas informações.
- Minha nossa, sua morte foi espalhada aos quatro ventos – disse a fada com olhar espantado.
- Sim, quando trai meu reino, não imaginava que me manteriam vivo, mas pelo menos agora estou livre pra descobrir a razão. De qualquer forma, muito obrigado por terem cuidado de mim – continuou ele observando tudo que se mexia ao seu redor.
Rixi riu.
- Estranho pensar que liberdade seja traição, príncipe dragão. Aqui costumamos pensar que ela faz parte do direito natural de cada um de nós. Sobre o agradecimento, acredito que deva fazê-los à Gaya e aos anciãos dessa floresta. Só estávamos aqui de passagem. À propósito, meu nome é Rixi e o outro que escutou é Narthus.
- Pode parecer estranho, mas consigo vê-los ainda que seja difícil explicar como – disse ele calmamente.
- Pode me ver aqui – disse Rixi voando para a direita, enquanto Cavian virava seu pescoço para acompanhá-la. – Ou aqui – deslocou-se pra cima, com Cavian virando seu elmo em direção a ela.
- Sim, ainda que sem detalhes.
- Hmm... Interessante – disse Rixi com a mão ao queixo.
- Não ligue, Cavian, Rixi é apenas uma cética incurável – brincou Narthus.
Cavian esboçou um sorriso.
- Sem problemas. Vocês fazem parte dos libertos? – questionou ele aos dois.
- Não, não, de forma alguma – negou o gigante. - Persus era um deles de fato, mas não nós. Somos como você, também fomos salvos por ele e por suas crenças muitos anos antes dele conseguir te trazer aqui.
- Entendo, pergunto por que os julguei no passado, mas Persus me disse que, sabendo do estado atual das coisas, eu entenderia.
- Sim, nesses sete anos os reinos aliados tomaram o controle de todas as cidades livres e de todos os demais reinos – explicou Narthus, professoralmente. - As artes místicas foram banidas e voltamos à era das tochas embebidas em óleo. Desde os mais famosos usuários até aqueles que ninguém reconhecera o nome, ou se uniram a eles ou sumiram sem qualquer aviso.
- E ninguém se opôs a eles? – questionou ele ainda incrédulo.
- Não é tão simples quanto parece, Cavian – continuou o gigante. - Muitos tentaram, mas sem coordenação e sem tempo, todos os que negaram o acordo foram colocados em posição de subserviência em relação aos demais de modo a pagar por seus crimes contra a paz. Há ainda os que conseguiram se manter isolados como nós. Em relação aos libertos não temos muitas informações, mas parece que são a única força que vem se opondo a eles desde então.
Lis estava certa o tempo todo, pensou Cavian, refletindo sobre as conversas que haviam tido.
- E não podemos ajudá-los?
- É justamente o que esperam por todos esses anos – respondeu Narthus. - Gaya nos protege dentro dessas florestas, mas o poder dela está limitado aqui. Não sei qual seu conhecimento sobre as antigas divindades, mas Gaya não pode se afastar muito de seu corpo material. O que temos dela é somente uma projeção do que restou de sua energia. Projetar um ataque contra eles nessa situação só resultaria na extinção de um dos únicos locais que ainda permanecem seguros. Pode parecer pouco, mas ter um lugar seguro também é dar esperança àqueles que desejam se libertar.
- Entendo, a situação parece ser muito além de qualquer coisa que imaginei anos atrás. Bom, pensarei em algo de qualquer forma. Sabem me dizer como está Rin? Gostaria de vê-lo se possível – solicitou Cavian.
- O levaremos até lá. Será uma boa oportunidade para conversar com Gaya, já que ele está sob seus cuidados – orientou Narthus.
- Assim poderemos saber de Rin qual o propósito de libertá-lo. É provável que saiba de algo – disse a fada com o rosto fechado.
- Siga-nos, Cavian – completou Narthus.
Cavian
A sensação era bastante estranha, mas nunca vira o mundo daquele jeito, ao seu redor era possível ver tudo, desde os pequenos insetos aos exóticos seres vivos que viviam ali, ainda que todos no mais claro azul. Inclusive uns que os acompanharam no trajeto, pendurando-se e pulando entre as árvores, pequenos seres de olhos arredondados e pelagem amarelada chamados de Flitos pelos nativos, com caudas maiores do que eles próprios e que pareciam com primatas ainda que em tamanho bastante reduzido.
Fazia tempo que não via tantos seres e tinha uma estranha sensação de angústia, por mais incomum que isso pudesse parecer. Teria a oportunidade de conversar com a única deusa viva que restara do passado. Uma que nunca aparecera em qualquer ocasião de reunião entre os povos e que só agora Cavian pudera entender a razão. Por mais poder que ainda lhe restasse, estava privada de sua liberdade, ainda que viver ali comparado ao que passara não parecia ser qualquer desafio. Se a prisão que estava parecia um túnel escuro, aquele local era como um festival de fogos de artifício. Tudo parecia tão vivo e reluzente que quase tivera a impressão que estava enxergando novamente.
Sabia que precisava encontrar Egen e Lis. Talvez fosse um caminho mais fácil. Gostaria de encontrar Yuki também, mas se ela tivesse de fato querendo se esconder, tinha sérias dúvidas de que pudesse encontrá-la. Além do mais, por sua culpa a mãe deles fora morta e provavelmente ela o culparia. Não estaria errada de qualquer forma. Fora inconsequente de um modo que Yuki jamais seria. Traiu sua confiança e jogara Aquia no colo de Malfien. Eram tantos pedidos de desculpa que não saberia nem por onde começar.
Lis provavelmente poderia saber quais seriam os próximos passos dos reinos aliados, afinal, ao contrário dele, vira a história acontecer diante de seus próprios olhos. Provavelmente saberia quais seriam seus próximos objetivos. Juntos certamente poderiam ajudar a derrubá-los.
Os sentimentos que um dia cultivara por seu pai se esvaíram juntos com a vida de sua mãe. Estava confiante que poderia derrotá-lo e assim assumir seu lugar no trono por direito. Talvez esse fosse o plano de Persus e dos libertos. Sabia muito bem o que estava fazendo, sabia quem ele era e saberia que provavelmente apoiaria a causa depois que soubesse de tudo que aconteceu. A derrota do líder dos reinos aliados poderia significar a derrubada de todo o sistema, e os tesouros e exércitos de Aquia estariam à disposição dos libertos como nunca estiveram antes.
Depois de caminhar por alguns minutos, viu o que julgou ser a árvore de Duir, o carvalho mítico que só conhecia pelos livros. A árvore que fundara Faldram e dera origem aos primeiros seres da floresta. Era tão alto quanto as outras árvores que quase tocavam o céu, mas seu tronco era ainda maior que a torre de um castelo. Suas raízes pareciam se conectar a toda vida que brotava ali e em seu interior Cavian pôde encontrar Gaya, um ser de brilho tão intenso, que o permitia até delinear sua delicada silhueta, que se assemelhava a de uma jovem, ainda que fosse mais velha do que o próprio carvalho.
Cavian acompanhou os passos largos de Narthus em sua direção, enquanto observou o corpo deitado na frente da deusa. Sabia que era Rin, já que o braço que perdera não parecia ter sido salvo. Entraram por um portal, quando Narthus se ajoelhou à frente da deusa.
- Já disse que não há necessidade dessas formalidades, meu querido – repreendeu Gaya gentilmente. - Não sou diferente de qualquer um de vocês. Nem de você, jovem Cavian, as dúvidas sempre permanecerão em nossas mentes por mais que tentemos evitá-las – continuou a deusa o assustando.
Como sabia das dúvidas que inundaram sua mente? Nunca se encontrara com um deus antes. Sua presença era reconfortante de alguma forma. Mesmo assustado com o fato dela saber tantas informações, não se sentia invadido. Era como uma amigável presença que o tranquilizava, o que por um momento o lembrara do sentimento que tinha na companhia de sua mãe.
- É uma honra conhecê-la – disse ele repetindo o gesto do gigante acinzentado.
- Gaya, trouxemos Cavian porque ele queria ver Rin e conversar com a senhora – justificou-se Rixi perante a deusa.
- Não há nenhum problema, inclusive já esperava sua visita. A estadia foi confortável, jovem príncipe?
- Sim, senhora, sem dúvidas o melhor descanso que tive por anos – revelou ele. - Minha única dor foi a da partida de um recente amigo.
- Persus era sem dúvida uma criatura formidável – disse a deusa. - Mas todos vocês deveriam se orgulhar. Infelizes são aqueles que partiram sem qualquer propósito, não é mesmo? – completou Gaya calmamente à medida que Rixi franzia o cenho.
Gaya sorriu ao perceber a expressão da fada.
- Não há qualquer verdade absoluta, Rixi, tanto os deuses quanto os homens têm sua parcela de culpa, mas não pense que ainda estou nesse mundo por escolha minha. Todos cometeram pecados, entre eles os deuses. Antes do tratado, os mares eram banhados com o sangue de nossas criações e o céu encoberto pela poeira e pelas cinzas. O mundo quase teve seu fim pela ganância dos deuses e agora parece que caminha para o fim pela ganância dos homens. No fim, o mais provável é que este seja um destino inevitável.
Todos se calaram. Muito pouco se sabia da história antiga, mas fora da vida dos deuses que o mundo retomara sua forma original. O tratado fora feito para que seus filhos não repetissem o passado, ou pelo menos esperavam que tivessem aprendido a lição. Viram o terror e o caos com seus próprios olhos, eles mais do que todos os outros deveriam prezar para que aquelas memórias permanecessem enterradas no passado.
- Gaya, se me permite, gostaria de saber qual o estado de Rin – indagou ele.
- Ele viverá, se é o que quer saber, mas provavelmente não antes que você parta em busca das respostas que procura – alertou a deusa.
Ela lera sua mente?, pensou ele. Era impossível que tivesse lido qualquer expressão. O objetivo de Cavian era sim sair dali o mais rápido possível. Já perdera mais de sete anos de sua vida, não passaria mais qualquer dia que fosse sem buscar respostas. Bastaria que seu vigor se recuperasse. Enquanto isso, pensaria em um plano para reencontrar Egen e Lis.
- Que bom, já que a senhora pode ler mentes já sabe quem estou à procura – disse ele com a voz firme, ainda que mantivesse o respeito que lhe era habitual.
Gaya riu delicadamente.
- Certamente algo que facilitaria meu trabalho, mas sugiro que permaneça aqui até ao menos que se recupere. Por mais que seja irremediável, sair daqui em seu estado atual só facilitará o trabalho daqueles que o perseguirão. Ser capturado novamente só fará com que a morte do quebrador de correntes tenha sido em vão.
Sabia que Gaya estava certa sobre tudo. Provavelmente estariam à sua procura e se fosse preso novamente, certamente nem os deuses seriam capazes de libertá-lo. Arriscado, porém necessário. Cada dia que se passava era mais um dia que correriam perigo. Ficaria feliz em saber que ao menos pode ajudar de alguma forma.
- Certamente, minha senhora. Não discordo de seus conselhos e penso o mesmo, só não posso me dar ao luxo de permanecer aqui enquanto há pessoas sofrendo pelo que fiz.
- E certamente é bastante improvável que consiga ajudá-los preso ou morto. No fim, não passam de conselhos, meu jovem. Caberá a você usá-los com sabedoria – orientou a deusa.
- Agradeço pela preocupação, espero que possa compartilhar da gentileza de sua hospitalidade por mais alguns dias.
- Com o maior prazer. Aqueles que trilham o bom caminho sempre são bem-vindos, meu príncipe. Ao contrário do que acha, não posso ler mentes, são seus corações que são livros abertos pra mim - disse ela se aproximando e tocando o fino dedo indicador em seu peito. – Se me permite o alerta, toda essa culpa que carrega consigo não o levará a um caminho diferente do que já trilhou até aqui, ainda que caso queira mudá-lo tenha que fazê-lo por si só... Argrim, por favor, leve-o a algum quarto perto das bases – ordenou Gaya para o homem mais ao fundo.
Cavian mal percebeu quando o ajudante de Gaya se aproximou. Se Gaya parecia uma fogueira em uma noite escura, Argrim era a chama que estava prestes a se apagar. Provavelmente se tratava de um ser mais velho, ainda que para os demais sua pele lisa e cabelos sedosos não permitissem tal caracterização. As orelhas pontiagudas e a pele pálida lembravam os elfos, mas seus cabelos castanhos aos ombros se entrelaçavam na galhada que nascia em sua testa e percorria sua cabeça, como ninhos entre troncos. Vestia vestes leves como a de um monge.
- Sim, senhora, tudo será providenciado conforme o desejo de Gaya – assentiu Argrim enquanto ela o agradecia com um gentil sorriso.
Todos se dirigiram pelo gramado extenso e florido aos aposentos. A copa do carvalho impedia com que qualquer outra coisa de porte crescesse ali, fazendo com que todos se acomodassem em seu entorno. Estruturas redondas se perduravam nos grossos troncos com escadas que se interligavam como as próprias heras. Era tudo composto de galhos e folhas vivas, fazendo com que a própria natureza se abraçasse. Subiu por alguns degraus trançados e estacados nos troncos das árvores de tronco alargado até que Argrim apresentasse seu cômodo. Uma rede simples de cipó que se pendurava entre os pilares da estrutura circular e o que parecia se tratar de um armário com roupas limpas pelo cheiro fresco que exalava dali.
- Fique à vontade, príncipe dragão – disse Argrim sem que delongasse a conversa que fora interrompida pela fada.
- Ei, Cavian, gostaria de se juntar a nós hoje à noite? Sempre nos reunimos ao entardecer. Assim poderemos te atualizar sobre o que aconteceu aqui fora durante todo esse tempo e em troca você poderá me responder algumas perguntas minhas, o que acha? – disse Rixi entusiasmada.
Faldram raramente recebia visitantes, ainda mais em tempos como aqueles. Rixi parecia curiosa o bastante para que ele pudesse recusar o convite, ainda que parte de si parecesse cultivar um interesse mútuo pela conversa que teriam.
- Sim, claro – respondeu ele à fada antes de dirigir a Argrim, que se dirigia silenciosamente até a porta – Aliás, muito obrigado, senhor Argrim!
- Disponha. Deixarei você com os jovens, tenho ainda outros afazeres – completou o homem, aparentando não estar muito disposto a perder tempo ali, antes que finalmente se retirasse.
- Conseguirá descer as escadas? – perguntou Narthus preocupado.
- Sem nenhum problema. Só preciso que me encontrem lá embaixo, não é como se eu pudesse facilmente distingui-los ao longe.
- Fique tranquilo, não deixaremos uma conversa tão interessante para trás – tranquilizou a fada.
Cavian
A noite era repleta de canções e conversas. Um lugar calmo que parecia ter o poder de atrasar o tempo. Sentados em volta de uma pequena fogueira circulada de pedras cinzas e quase redondas, eram cozidos uma farta quantidade de frutos frescos em espetos de madeira fina que Narthus havia embebido em algum tipo de melaço que ele não soube identificar. Suas mãos de dedos grossos curiosamente demonstravam certa destreza para detalhes pequenos como aqueles. Não eram cheiros conhecidos, mas fora hipnotizado por certo momento. Fazia tanto tempo que não saboreava algo, que até as lembranças dos banquetes de sua mãe já haviam partido.
- Ei, Cavian, nos conte como é a terra acima das nuvens! – disse Rixi entusiasmada.
Ele refletiu por um momento.
- Bom... Vamos dizer que parece tão calmo quanto aqui, mas ou pouco diferente... Parece haver mais união entre vocês talvez... O que quero dizer é que em Aquia tudo parece ser sobre hierarquia – respondeu ele sentado ao gramado com os braços cruzados em frente às pernas.
- Hmm... Parece um pouco chato – observou Rixi. A fada estava logo à frente, sentada também sobre o gramado, unindo as pequeninas mãos em frente ao rosto, como se refletisse seriamente sobre o assunto.
- Talvez – disse ele sorrindo. – Mas é como se acostumaram a viver. É um hábito passado de geração em geração. Dificilmente um forasteiro chegaria a meu pai, por exemplo, como aconteceu hoje aqui – explicou.
- E você consegue se transformar em um dragão? Não que seja obrigado logicamente, mas li algumas histórias e...
- Rixi... – repreendeu Narthus.
Cavian sorriu.
- Tudo bem... Na verdade, todos os filhos dos dragões atualmente não são descendentes diretos de Iscalon. Somente a linhagem original possui esse poder, como meu pai por exemplo.
- Que pena... – murmurou a fada decepcionada. – Você é como Narthus então, ele também é um príncipe mestiço.
Cavian conhecia bem os nomes da realeza, e não se lembrava de nenhum outro príncipe perdido, ainda mais com aquela idade.
- A fada tem uma boca maior do que sua própria curiosidade, Cavian – acrescentou Narthus. - Não ligue para o que ela diz. Como pode perceber, isso felizmente não importa aqui.
- Creio que se lembre de Tralon... – disse a fada ignorando o amigo.
- Sim... Já ouvi o nome algumas vezes. Pelo que me lembre foi o antigo rei deposto por Vortmor, não é?
- Desafiado – corrigiu Narthus. – Mais especificamente por conta de minha natureza, príncipe dragão, sou eu o experimento deles que deu errado – continuou o gigante, ainda que suas falas estranhamente não parecessem trazer qualquer rancor.
- A verdade é que Vortmor tinha medo de que Narthus o impedisse de chegar ao poder e tentou matá-lo enquanto ainda tinha chances – esclareceu Rixi com a ajuda das pequeninas mãos como se suas palavras fossem saídas de um conto.
- Não diga besteiras, Rixi – respondeu o gigante enquanto a fada franzia o cenho - Não lhe dê ouvidos, Cavian. Eles apenas tinham em mente que a mistura das linhagens dos nômades daquelas terras com a dos gigantes, pudessem de alguma forma fazer com que eles fossem os responsáveis por ditar as próximas páginas da história, o que obviamente não aconteceu.
- Entendo... E no fim você acabou herdando suas fraquezas como eu – brincou ele, ainda que aquela realidade o incomodasse. O que poderia ter sido diferente com o poder que nunca esteve em suas mãos? Era essa uma das perguntas que o remoía quando sua mente não estava ocupada com a realidade que o cercava.
- É complicado julgar dessa forma, Cavian – discordou Narthus girando os petiscos sobre o fogo. - O que posso dizer é que não herdei a vocação pela guerra e pelo sangue como desejavam, mas ainda que você tivesse razão... Se eu pudesse escolher entre isso e a clareza de meus pensamentos, não há dúvidas de que escolheria a segunda opção.
- Até em tempos como esse? – questionou ele, franzindo as sobrancelhas.
- Principalmente em tempos como esse, meu jovem amigo... Eu pelo menos não gostaria de correr qualquer risco de estar do lado de lá e sei que o tempo irá ajudá-lo a compreender minha decisão.
Cavian assentiu, ainda pensando que independente do risco, provavelmente tomaria uma decisão diferente daquela.
- Cavian, tenho que ser sincera – iniciou Rixi novamente. - Vi que tem seu problema com o impiedoso rei, que por acaso também é seu pai, e sabemos de tudo o que está acontecendo mundo afora, mas pela sorte do destino, o único que pode detê-lo está a sua frente, então talvez com algumas informações suas... Creio que todos poderão sair ganhando.
Cavian sorriu.
- Como disse, o que lhe falta em estatura compensa em seus pensamentos mirabolantes – alertou Narthus, enquanto Rixi sorria confrontando o rosto indiferente do gigante. – Mais cedo você foi alertado, Cavian. Talvez o melhor a ser feito é se manter acolhido aqui. Na situação em que está, pisar fora dessa floresta é o mesmo que abraçar a morte. Esse lugar... – disse ele apontando para as árvores ao seu redor. – Se conseguíssemos trazer mais pessoas pra cá, talvez possamos lhes dar um lugar seguro sem que mais sangue seja derramado. Você pode encorajá-los, meu amigo, fazer com que possam encontrar abrigo sob a proteção desta floresta.
- Talvez tenha razão – concordou ele inicialmente. – E provavelmente fosse minha decisão muito tempo atrás, mas não acho que eu seja a pessoa que procura, entende?
- Perfeitamente – respondeu Narthus sem hesitar. – Cada um possui seus próprios caminhos a trilhar, mas tenha em mente que Persus não teria se arriscado sem um bom motivo, digo... Não que seja um mal motivo salvar quem quer que seja, mas no meu caso e o de Rixi foi o acaso que nos encontrou. Ele certamente não era do tipo de pessoa que se manteria dentro das regras vendo tudo que estava acontecendo, mas foi diferente com você. Ele foi buscá-lo, Cavian... Pense o que possa ter o levado a fazer isso. Logicamente você tem um papel nisso e acho que ele ficaria feliz que ao menos você entendesse essas razões.
Cavian assentiu.
- Sabe... Gostaria de tê-lo conhecido mais – lamentou ele.
Narthus sorriu.
- Não acho que conheceria mais do que conheceu – revelou Narthus pensativo. - Ele era exatamente isso, um homem sem raízes... Tão sábio quanto bondoso e principalmente inabalável em sua fé. Se tem alguém que merece estar do lado de nossos deuses, com certeza é ele.
Rixi revirou os olhos.
- Antes que me ouça dormir escutando essa baboseira de deuses e tudo mais, preste atenção na nossa comida, grandalhão – murmurou a fada apontando para as cascas douradas que brilhavam entre as brasas, enquanto Narthus se mexeu rapidamente para tirá-las do fogo. - O que planeja ao partir? – indagou Rixi.
- Preciso encontrar alguns velhos amigos – respondeu Cavian prontamente. Era tudo que pensava no momento. Tinha que voltar ao último ponto do qual se lembrava, reconstruindo as pequenas pontes que haviam sido capazes de queimar.
- Se fala dos príncipes fugitivos, queria te dizer que foi um evento e tanto, sabia? – relembrou a fada interrompendo seu pensamento com uma fala entusiasmada. - Acho que foi a última vez que aqueles facínoras sofreram uma derrota tão expressiva... Tantos lordes de sorrisos amarelados deixados para trás... Ai, ai... Tudo que eu queria estar lá para ver seus rostos covardes – pausou enquanto ria divertidamente. – Disseram que seu primo, filho daquela dragoa enrugada, despistou seu pai em meio às águas tortuosas que dançavam abaixo do castelo negro – completou.
Cavian gargalhou.
- Ele sempre foi bom nisso – completou animado e mais relaxado. Por mais inusitado que fosse, era difícil se acostumar com a liberdade novamente. Em vezes se via esfregando seus pulsos soltos com avidez. – Fico feliz que ele tenha sido capaz de salvá-la. Enfim pode completar o que não consegui.
- Disseram que sua mãe os ajudou – acrescentou Rixi.
- E perdeu a vida com isso... – respondeu ele ainda que suas palavras sequer conseguissem refletir o sentimento de sua face deprimida e coberta.
- Vejam como estão deliciosos! – interrompeu Narthus cortando o assunto provavelmente de propósito. Carregava em uma tábua de madeira frutas de cheiros tão distintos e tão apetitosos que tornara a missão de escolher difícil até para um estômago faminto como o dele.
- Não me leve a mal, Cavian... Não foi meu intuito lembrá-lo... Bem, do que aconteceu – completou Rixi desajeitada.
- Fique tranquila, já faz um tempo de qualquer forma... Por algum acaso, saberiam me dizer para onde possivelmente eles possam ter ido? – indagou ele, enquanto tateou a tábua estendida em sua direção e puxou um dos espetos abocanhando um pedaço de abacaxi de gosto açucarado.
- Não faço ideia, mas são poucos os locais que restaram - pausou Rixi enquanto abocanhava o cipó que arrancou da tábua rapidamente com uma das mãos, o alimento preferido da pequenina, que continuou a fala de boca cheia - Os reinos... Que não se subjugaram a eles como nós... Vivem fechados em si mesmos, como Dypsia e Darkwaters... E as únicas áreas não monitoradas por eles talvez sejam as montanhas ao norte e ao sul ou algumas ilhas remotas como aquelas escondidas entre as brumas. Mesmo que optassem pelas cidades comuns, bem... Acho que elas estariam cobertas por soldados e Kirins, o que não parece ser uma boa opção pra quem quer que seja...
- Por que não pergunta à Gaya? – sugeriu Narthus.
- Acha que ela ajudaria? – indagou ele.
- Gaya não é poderosa só com a magia, Cavian – explicou Narthus. - Sua memória guarda os acontecimentos desde a criação desse mundo. Não há qualquer dúvida de que sua sabedoria ainda seja muito maior do que seu próprio poder.
- Bom... Pelo menos nisso tenho que concordar com o grandalhão – disse Rixi. - Ela está mais para um de nós do que para um deles. Apesar de sua capacidade de fornecer respostas que nos levam a mais perguntas, talvez em seu caso que não tenha ideia nenhuma para onde ir isso possa ser útil – finalizou, ainda que ele não tivesse certeza de que se tratava de um elogio.
Cavian assentiu enquanto pegava mais um dos espetos, torcendo para que as porções que tateavam suas narinas fossem tão fartas quanto as folhas daquela floresta.
- Acho que todo esse tempo preso me deixou um pouco desacostumado com multidões – disse ele incomodado, ainda que a calmaria do balançar das folhas e das risadas despretensiosas que chegavam aos seus ouvidos acolhesse seus sentimentos que se prendiam como frouxos retalhos. - O mundo lá fora deve estar bem diferente do que eu estava acostumado a conhecer.
- São tempos sombrios, meu caro amigo, mas são nas maiores escuridões que as pequenas luzes se tornam mais notáveis... – aconselhou Narthus.
- Faltou só a peruca de cabelos brancos... – zombou Rixi rindo.
- Já deve estar satisfeita – ameaçou o gigante tirando alguns cipós da tábua e segurando-os por suas pontas sobre a brasa ainda vermelha.
- Ainda que a sabedoria de nosso saudoso mentor nunca lhe caísse tão bem, meu querido irmão – brincou Rixi, enquanto implorava com os olhos, fazendo não só com que Narthus devolvesse as iguarias ao lugar onde as pequeninas mãos as alcançassem como também alcançar alguns risos contidos do próprio gigante.
- Como eu estava dizendo, este carvalho não simboliza só nossa esperança na chegada de dias melhores, Cavian, enquanto ele estiver de pé, sempre haverá um lugar para voltar ou se esconder, onde as pequenas luzes possam se nutrir e crescer. Você estar aqui é mais uma prova disso e quanto tudo isso acabar e você finalmente encontrar seu destino, prometo que discutiremos debaixo da sombra de suas folhas como ajudaremos a construir as estradas para o novo mundo.
Cavian assentiu com um sorriso no rosto enquanto até mesmo Rixi se resguardou em silêncio. Certamente não pela ameaça que Narthus fizera em brincadeira, muitas outras não a haviam contido, mas sim porque por um breve momento pareceu uma memória pela qual seriam gratos caso pudessem compartilhar.
A noite seguiu enquanto conversavam sobre Persus e os costumes Natelurianos. Cavian havia comido tanto que teve certa dificuldade em subir aqueles degraus novamente. Uma boa noite de sono com estômago cheio parecia um sonho distante dias atrás. Quase se lembrara dos dias quando mais jovem, onde suas únicas preocupações eram os contos e as caminhadas nas montanhas.
Desejava partir tão breve quanto possível. Provavelmente não conseguiria manejar uma espada naquela situação, mas dificilmente haveria desafios tão grandes à sua espera. Seus algozes não o visitaram por anos e caso contassem sobre sua fuga não havia dúvidas de que correriam mais perigo do que ele próprio. Provavelmente enviariam equipes menores em sua busca, o que não seria um problema. Ainda que seu elmo o limitasse, poderia batalhar caso precisasse. Sua preocupação era outra. Não conseguia ver o sol ou qualquer coisa à sua frente. Precisaria de um guia, de preferência um que não quisesse entregar sua cabeça em uma bandeja ao seu pai. Pensaria nisso amanhã de qualquer forma. Naquele dia as estrelas já haviam tomado o céu.
Cavian
O cheiro das flores tomava seu olfato. Era como acordar em uma piscina de infinitos perfumes. Uma hipnose inebriante quebrada por uma voz inusitada.
- Cavian, Cavian, acorde! – exclamou Rixi apressadamente.
- Oi, sim, bom dia! – disse ele assustado, sentando-se na cama em um instante enquanto tentava se recompor com os olhos e mente ainda preguiçosos.
- Vamos, desça logo, hoje temos aula de combate, mestre Argrim e Narthus vão lutar. Não está curioso pra ver? – disse a fada ainda mais animada que o de costume o chamando com as mãos.
Era uma boa oportunidade de ver o que Narthus poderia fazer contra o misterioso imediato de Gaya, além disso o lembraria um pouco das discussões que tinha com sua irmã.
Seguiu Rixi até o fim das escadas apressadamente e caminharam por alguns metros até que Cavian viu a aglomeração de pessoas sentadas à sua frente. Os centauros descansavam seus grandes corpos sobre a grama fofa e até os pequeninos se acomodavam em um grande círculo.
Os dois estavam lá frente a frente, sob os olhares atentos de todos.
- Bom dia a todos, hoje vou ensiná-los a combater um oponente maior e mais forte que vocês – disse Argrim gesticulando e olhando para platéia como um experiente professor. - Os Orcs, por exemplo, são inimigos de força bruta e de estatura mais alta do que estamos habitualmente acostumados. Já vimos antes o que aconteceria em situações de igualdade e como nos proteger de usuários hábeis com magia, mas... Geralmente a maioria dos soldados são selecionados por sua força física e hoje veremos como podemos nos aproveitar dessa condição.
Ambos se cumprimentaram flexionando o tronco ao centro do gramado em um gesto de saudação.
Narthus atacou inicialmente avançando sobre Argrim. Seus punhos eram tão potentes e rápidos que mais pareciam tiros de canhão. Argrim era esguio e se esquivava para o lado e para trás como um dançarino ao vento, até que chegou à borda do público, arrancando olhos arregalados e expressões espantadas da plateia, principalmente dos pequeninos.
- Vejam aqui – disse Argrim levando o braço estendido de Narthus ao lado com uma das mãos. - Qualquer ataque que fosse recebido por mim seria um enorme problema. Dificilmente em combate vocês não terão obstáculos para locomoção, então não se deve demorar muito para achar o momento agir, mesmo que esteja apenas próximo do ideal. Todos os estilos de luta e estruturas corporais, por mais invencíveis que pareçam, escondem fraquezas que geralmente estão escondidas atrás de sua maior virtude, ou seja, uma dica valiosa de onde podemos encontrar nossa brecha – completou, sinalizando com o olhar a Narthus e fazendo com que caminhassem novamente ao centro.
Após se cumprimentarem como na primeira vez, Narthus atacou novamente, Argrim desviou do primeiro e segundo ataque inclinando o tronco para trás quando punho de Narthus passou a centímetros de seu rosto. No terceiro movimento, agachou-se rapidamente e, movimentando-se abaixo dos longos braços que ainda o atacavam, desferiu um soco em meio ao peito aberto de Narthus, jogando-o alguns passos para trás.
- Qual a principal vantagem que um oponente maior tem sobre mim? Alguém sabe me dizer? – questionou Argrim enquanto Narthus se recompunha.
- O alcance de ataque, senhor Argrim – disse uma menina Nateluriana, como eram chamados os povos das florestas. Seu rosto se assemelhava ao dos humanos, ainda que o nariz arrebitado, as manchas contornando os olhos e pelagem curta tímida sob suas roupas, relatassem sem qualquer dúvida sua verdadeira origem. Ela não deveria ter muito mais do que dez anos e sua fala convicta demonstrara que até os pequenos eram preparados assim como ele fora um dia.
- Isso mesmo, Tasha – respondeu o professor orgulhoso. – Então seria impossível eu acertá-lo sem que eu encurtasse a distância, certo? Alguém vê alguma vantagem nessa situação? – questionou Argrim novamente à multidão que se sentava no círculo em volta deles, enquanto se mantinham em silêncio pelos próximos instantes.
- A velocidade de recomposição de seu braço – disse Cavian levantando a mão repentinamente.
- Exatamente, príncipe dragão – elogiou Argrim, enquanto esperava reações em relação àquela declaração que nunca vieram. Estranhamente não se importavam com quem ele era ali, nenhum olhar se voltara a ele, o que o reconfortara de certa forma. - Braços longos levam mais tempo para se recompor do que braços mais curtos. O período é bastante breve, mas o suficiente para usuários bem treinados, principalmente em combates nos quais poderemos produzir superioridade numérica em meio à floresta – observou o professor apontando o indicador para cima, ressaltando a importância do que acabara de descrever entre os olhares de interesse que se cruzavam. - Agora a última lição – finalizou enquanto novamente retomavam suas posições.
Começou desviando para trás novamente, retardando o ataque como fizera da primeira vez. Narthus havia mudado o padrão de seus punhos, não aplicando socos tão longos como os anteriores e impedindo que Argrim utilizasse a vantagem antes explicada, fazendo com que o corpo do professor avançasse contra a borda. São golpes que dificilmente seriam desviados em um combate comum, pensou Cavian ainda analisando os movimentos dos dois. Pensou que era provável que conseguisse, mas o simples fato de não ter certeza já o impressionava, ainda mais para um reino que nunca fora reconhecido por seu poderio militar. Ou escondiam essa virtude ou os anos fizeram com que adotassem novos hábitos, ainda que dificilmente achasse que toda aquela noção de combate viesse apenas durante os anos que esteve ausente.
Continuaram até que Narthus desferiu um chute frontal, tão inesperado quanto a reação de seu oponente. Argrim rapidamente se agachou ao chão e aplicou uma rasteira em sua perna de apoio, jogando o corpo do gigante sobre o solo, em um impacto que não conseguiu ser amaciado nem pelo gramado fofo que amortecera a queda.
Estendeu a mão a Narthus, que aceitou e retribuiu com um sorriso educado.
- E essa é a terceira e última lição. Percebam que no primeiro ataque que desferi, Narthus mal o sentiu, porque a força por mim aplicada fora baixa contra um oponente como ele. Dificilmente haverá uma postura passiva no campo de batalha... Nossos inimigos não esperarão que ataquem, já que o tempo será prejudicial a eles. Assim é necessário usar sua força contra eles mesmos. Amplifiquem seus movimentos e deixem que eles mesmos caiam em suas próprias armadilhas. Se fizerem isso, as chances deles serão as mesmas que tiveram até hoje, ou seja, nenhuma – disse Argrim enquanto andava pela borda do círculo e falava aos atentos ouvintes. – Narthus e eu apenas simulamos situações aqui. Em um combate real não haverá tempo para pensar, então seus corpos já precisam saber como reagir. No mais, muito obrigado pela atenção de todos e tenham um ótimo e ensolarado dia – concluiu fazendo com que fossem ovacionados por uma salva de palmas.
Não lutaram sério? Seria impossível, pensou Cavian. Olhos comuns não acompanhariam o ritmo de seus golpes. Se isso de fato fosse verdade, a proteção daquele reino não estava só nas mãos de Gaya. Aliás, precisava aproveitar a oportunidade para ir até a deusa. Levantou-se rapidamente enquanto Rixi ainda permanecia dispersa. Algumas crianças foram até Argrim pedir dicas extras enquanto o professor retribuía com gentilezas, mas ele não esperou qualquer oportunidade.
- Bom dia, senhor Argrim – disse ele finalizando sua breve corrida. - Poderia me levar para conversar com Gaya novamente? Preciso de uma orientação antes de partir.
- Lógico, meu caro, a mãe da floresta sempre possui a palavra que conforta ou o caminho que pode guiá-lo. Tenho certeza que ela lhe será toda ouvidos – respondeu Argrim pedindo licença às crianças. – Ei, Narthus, gostaria de nos acompanhar? – completou chamando Narthus mais ao fundo enquanto Cavian o cumprimentava sorridente de longe.
Rixi chegou logo depois acompanhando o passo dos três, voando próxima ao ombro de Argrim, com suas asas rebatendo tão rapidamente contra o ar que tornava difícil enxergá-las.
- Ei, mestre Argrim, aquela brincadeira não ensinará nada, eles precisam de combates reais – disse a fada com a certeza de sua verdade.
- Poderá ministrá-las caso deseje – respondeu Argrim em sorriso irônico enquanto Rixi franzia o cenho.
Rixi riu.
- Cuidado, vai ficar parecendo que está com medo de ser derrotado, mestre Argrim – continuou Rixi.
- Ei, Rixi, chega dessa conversa – repreendeu Narthus.
- Não há qualquer problema – respondeu Argrim calmamente. - E mesmo que aceitasse e não me sagrasse vitorioso, de nada adiantaria aos seus anseios, minha jovem. Temo que tenha se esquecido que não seguimos a regra dos povos bárbaros em nossa cultura. Se Narthus almeja meu lugar, ele irá merecê-lo no tempo que Gaya ordenar.
- Argrim, eu não... – tentou arguir Narthus antes que fosse interrompido pela palma da mão levantada por Argrim.
- Não há dúvidas de que este posto será herdado por você um dia, meu caro irmão, só não do jeito que Rixi deseja – explicou o mestre sorrindo a Narthus enquanto a fada o encarava descontente.
- E nem do seu – retrucou a fada irritada, ainda que Argrim sequer tenha dado ouvidos.
Andaram por um caminho que Cavian certamente não conseguiria voltar sozinho. A mata era densa e viva, com raízes protuberantes e cipós que desciam das árvores até se moldarem ao chão sob o caminhar de seus pés.
- Chegamos - disse Narthus em frente a uma caverna escondida entre os arbustos volumosos e flores multicoloridas que cobriam os troncos desgastados pelo tempo. Seguiram por um corredor coberto por musgos e flores verde-azuladas que caiam em cachos arroxeados, refletindo a luz que vinha do fundo do caminho.
Era uma sala irregularmente arredondada com um pequeno lago em seu centro de superfície tão intocada que fazia com que a superfície lembrasse um grande espelho. Gaya estava ajoelhada ao fundo do ambiente com as mãos unidas e dedos trançados. Os olhos fechados da deusa pareciam navegar por pensamentos tão profundos que provavelmente a tornasse incapaz de notar sua presença. Mas não era isso que mais chamava atenção. Cavian reconheceu o objeto ao fundo do lago, talvez os outros não pudessem vê-lo ou sequer soubessem do que se tratava, um pequeno semicírculo, fino e alongado, ao centro do fundo do lago vivo, abaixo dos peixes que ali habitavam, com um brilho ainda mais intenso do que a própria deusa. Estava apoiado sobre uma base de metal que delicadamente o abraçava e envolto por tapete de gramíneas agulhadas. Era sem dúvida um dos pedaços do portal da troca, o mesmo utilizado pelos deuses antigos antes da promulgação do tratado e que agora estavam sob a proteção de cada um dos povos originários. Lembrava do objeto similar mostrado pelas mãos de dedos cuidadosos de Bacus no topo da montanha de Jizu quando sua única preocupação ainda eram as aulas que se finalizavam antes do pôr do sol. Os detalhes dourados entalhados em desenhos de linhas pequenas e sinuosas que dançavam harmoniosamente pelo corpo cilíndrico, como os sulcos formados nos troncos das árvores de grande idade, não geravam qualquer dúvida sobre sua origem divina. Logicamente ali, a visão do belo objeto de outrora trazia um significado ainda maior. Por seus novos olhos era como se a relíquia carregasse consigo uma forma abundante da mais pura energia, intocável, incomparável e melodiosa, e que provavelmente se tratasse do reflexo pleno do desejo de seus próprios criadores.
- Sim, meus jovens, o que desejam? – disse Gaya repentinamente de olhos ainda fechados enquanto todos pararam na borda do outro lado do lago.
- Peço de antemão perdão se de alguma forma esteja atrapalhando, minha senhora – iniciou ele respeitosamente, enquanto se ajoelhava com uma das pernas, mantendo sua face baixa em direção ao lago.
- E os demais? – indagou a deusa.
- Apenas acompanhando, minha senhora – respondeu Narthus prontamente.
- Infelizmente, apenas um de seus corações ainda se encontra aqui – disse a deusa enquanto abria os olhos e revelava um sorriso tão enigmático quanto suas últimas palavras. – Pense, meu príncipe, por que fugiram pelas águas de Fisbia?
- Seria o único caminho possível, minha senhora? – respondeu Cavian, pensando em se tratar de uma obviedade.
- Pode ser que seja, mas mais importante do que isso, é que o mais poderoso dos dragões os cercava e o único lugar onde seu pai não conseguiria alcançá-los era na profundeza das águas.
Gaya tinha razão, pensou ele, por mais poderoso que Bahamut fosse, seus exércitos ou sua força não valeriam de nada ali.
- Sabe a distância entre Blackhelm e a foz das águas que banham Fisbia, príncipe dragão? – questionou novamente a deusa.
- Alguns quilômetros, minha senhora?
- Exatamente... E se uma humana encontrasse algum modo de sobreviver todo esse caminho debaixo d’água, o que a impediria de permanecer por lá? – ressaltou Gaya.
Claro! Egen era o único com o dom dos Aquamarinus fora da linhagem dos povos do mar, certamente havia encontrado uma forma de replicá-lo. Assim, com as razões certas, poderiam convencê-los a se abrigar no reino das águas, que Rixi já havia indicado não estar ainda sob o domínio dos reinos aliados. Só poderia ser essa resposta.
- Creio que já encontrou sua resposta, correto? – continuou Gaya, após a pausa de suas falas.
- Sim, senhora, muito obrigado, muito obrigado mesmo! – agradeceu ele entusiasmado.
- Tem certeza que não há mais perguntas a serem feitas? – indagou novamente Gaya.
- Acredito que não, vou encontrá-los imediatamente! – disse ele meneando a cabeça em cumprimento a deusa e se preparando para se retirar.
- O problema nunca foi chegar a essa conclusão, meu príncipe – continuou Gaya. - Você acha que os reinos aliados não detêm essa informação? O desafio sempre esteve em chegar até lá... Na época seria impossível para quem quer que fosse invadir Darkwaters e enquanto se organizavam para fazê-lo, a maioria das entradas foram fechadas pelos povos do mar e os poucos caminhos existentes se tornaram desconhecidos. Tentaram por anos invadir seu território, assim como fizeram conosco.
Cavian assentiu.
A informação veio como um banho de água fria. Seu entusiasmo momentaneamente cegou seus pensamentos. Se por um lado sabia que provavelmente estariam seguros, por outro não a reencontrar era dizer adeus a um dos únicos objetivos que o mantivera vivo por anos. Talvez estivessem melhor sem a sua ajuda de qualquer forma, ainda que não soubesse a situação de sua irmã ou de Bacus.
- Mas não se desespere, meu jovem. Sua vida é mais valiosa do que talvez por ora saiba avaliar. Sei que sabe que tem o poder hereditário de requerer Aquia em seu nome ao derrotar seu pai. O trono é seu por direito e os Aquirianos sabem disso, tanto que seu mesmo pai sequer ousou mudar as regras de sucessão disposta nas escritas antigas, ainda que tivesse esse poder. Caso tenha os meios necessários para confrontá-lo, é provável que desperte o interesse de aliados poderosos como Mesai. Creio que se lembre de Rizar, o ilusionista que costumava frequentar as festas dos reinos aliados no passado.
- Sim, minha senhora, difícil não se lembrar daquele... Vamos dizer exótico e gracioso senhor – respondeu ele lembrando de seus chapéus e roupas de cores espalhafatosas que pareciam querer compensar a pouca atenção criada pela baixa estatura dos raros gnomos.
- Bom... Muitos não se lembrarão ou não dão a devida importância aos pequenos detalhes, mas ele era amigo pessoal de Osian, que faleceu pouco depois da época em que você foi preso. Ele também sempre residiu em Tessan, um dos caminhos para se chegar em Darkwaters. Se as suspeitas estiverem corretas, Egen provavelmente tomou esse caminho, e provavelmente Rizar deve saber de algo. Tenho informações de que ele possa fazer parte dos libertos, é algo ainda incipiente, mas eles têm conseguido aliados poderosos, e a própria morte de Osian pode guardar relação com essas alianças. Se isso for verdade e ele partilhar dos desejos que movem esse grupo, poderá ser a chave para ajudar seu amigo e reencontrar a princesa perdida – disse a deusa enquanto ele esboçava um tímido sorriso esperançoso. – Só peço que tenham cuidado, é provável que Rizar seja uma boa pessoa, mas sua posição em todo esse processo ainda é incerta. O avanço deverá ser cuidadoso e o perigo incontestável deve ser o sinal para que volte à proteção das florestas. O caminho pelas montanhas geladas protegerá vocês até que embarquem para Tessan.
- Senhora... – disse Narthus um pouco mais ao fundo.
- Estão dispensados de seus deveres, meus jovens. Não há nada a ser pago como dívida, me deram muito mais do que sequer ousei pedir – disse Gaya sorridente, cruzando os olhares com o gigante acinzentado, que assentiu sem confrontá-la.
Cavian não entendeu o tom daquela conversa. O que Narthus estava tentando dizer? Gaya mal o deixara falar.
Narthus se aproximou da deusa rodeando o lago com seu imenso corpo. Seus olhares se cruzaram por um momento antes que o gigante se ajoelhasse e a abraçasse como um filho que se despedia de sua mãe.
- Gostaria de sua benção – pediu o gigante com os olhos marejados.
- Em nome dos deuses que já se foram e pelo poder do criador, das águas escuras até a lua vermelha, eu o abençôo, meu filho, e espero que a luz da esperança guie seus caminhos – disse Gaya, circulando o polegar sobre sua testa e o cruzando ao meio, com a benção do povo das florestas. - Venha cá, pequena, não se envergonhe – continuou a deusa se dirigindo à Rixi, que aguardava sem graça ainda ao lado de Cavian, obedecendo a ordem daquela que também ganhara um abraço da fada.
- Ei, pessoal, o que é tudo isso? Vão embora também? – indagou Cavian surpreso.
- Vamos com você, príncipe dragão - disse a fada confiante. - Foi o que decidimos ontem à noite depois que foi dormir. Persus o salvou por alguma razão e não acho que poderá sobreviver por muito tempo lá fora sem nós.
- Se há alguma chance de vencermos essa guerra, queremos ajudá-lo, Cavian – respondeu Narthus.
Argrim sorriu.
- Bom, meus caros, o que posso desejar é sorte – disse Argrim aos jovens. - Minha deusa, peço dispensa para organizar os preparativos. Acredito que tudo esteja pronto até amanhã antes que o sol nasça – continuou, reverenciando Gaya.
- Obrigado, Argrim, providencie as mantas mais quentes e leves, por favor – respondeu a deusa de imediato.
- Como desejar – disse Argrim ao se retirar.
Cavian se lembrou de um ditado em Aquia que dizia “Quanto mais se caminha pela estrada do infortúnio, mais estará próximo do destino dos gloriosos”, conhecera poucos que o tivessem trilhado por tantos anos como ele. Talvez fosse a hora de colher algum fruto pela desafortunada caminhada. Precisava de um guia que enfim aparecera diante dele. Mais do que isso, Narthus e Rixi, sem qualquer dúvida, eram as melhores companhias que sequer havia cogitado em escolher. Não era só pelas poucas e curtas conversas que tiveram. Era como se eles carregassem consigo os tempos nostálgicos pelos quais valeria a pena lutar.
Cavian
Cavian voltou a sua cabana depois de algumas horas e organizou as poucas coisas que precisaria para sua viagem, como um cantil de fole, um pequeno saco de couro com pedras de magnésio e duas pequenas facas de lâmina curta, que foram amarrados em seu cinto, além de uma armadura acolchoada de couro liso que Argrim provavelmente havia providenciado com as medidas corretas. A bota amarrada à calça de tecido grosso cruzava até pouco abaixo do joelho e a capa cedida cobria parcialmente a máscara de ferro. Mais cedo, havia deixado um bilhete de agradecimento a Rin, que continuava desacordado, ainda que as luzes de seu corpo tivessem se avivado desde sua última visita, indicando que logo estivesse de volta. Havia jantado a pouco com seus companheiros de viagem, que pareciam estar mais animados até do que ele próprio. Só o preocupava o fato de mais uma vez aparecerem pessoas dispostas a ajudá-lo sem que ao menos pudesse fazer algo para garantir suas proteções. Prometera a si mesmo que seria a última vez que tentaria. O rastro de cadáveres poderia ser um sinal dos deuses para apontar que seu destino talvez fosse definhar entre aquelas pedras geladas de Gremory, ainda que alguma esperança ainda o movesse, acreditando que Persus não tivesse partido por nada. Em seu coração torcia para que não fosse seu próprio ego tentando convencê-lo a seguir em frente, mas infelizmente só o tempo seria capaz de enterrar suas dúvidas.
Escutou os passos abafados vindos de fora. Provavelmente Narthus esquecera de repassar alguma coisa para ele antes que fosse dormir.
- Ei, Cavian – sussurrou o gigante que estava com Rixi no ombro. – Vê algum problema de partirmos agora?
Agora? O pedido do gigante era repentino, mas ia de encontro com o que gostaria de fazer desde o começo. Achou inclusive que seria pedir demais aos dois depois de tudo que já estavam fazendo por ele.
- Nenhum – respondeu ele animado.
- Ótimo. Rixi acha que é melhor partirmos agora para chegarmos ao final das florestas ainda pela manhã – disse Narthus, que vestia vestes leves, inadequadas para viagens longas para qualquer quer que fosse, com exceção da capa que se assemelhava a de Cavian, ainda que em formato bastante maior. - Devemos continuar pelo caminho para as montanhas geladas e o clima lá não é nenhum um pouco hospitaleiro aos viajantes. Assim evitaremos as trilhas que levam a Opanum que devem estar recheadas de guardas a sua procura e quanto mais tempo tivermos para nos preparar para noite melhor.
- Sem problemas, não seria bom avisar a todos? – questionou ele.
- Gaya nos verá pelos olhos da floresta e aquele velho ranzinza do Argrim, acredito que não se importará se optarmos por não lhe incomodar a essa hora - disse a fada enquanto Narthus entregava uma das mochilas ao príncipe. - Um café da manhã nos fará menos falta do que uma noite em segurança.
Eram mochilas de tecido claro com uma manta fina e aconchegante enrolada e amarrada em seu topo, recheada de mantimentos que durariam por praticamente um mês em seu interior. Na de Narthus mais alguns rolos de tecidos enrolados em hastes e placas de madeira abauladas que pareciam com um veleiro desmontado. Se dependesse de preparativos, não teriam qualquer dificuldade de chegar aos jardins pantanosos de Tessan.
- Cavian, há mais um motivo para caminharmos durante a noite – revelou Narthus em tom de preocupação. - Há muito tempo, o posto de Argrim era ocupado por Wocan, um ente da floresta que traiu Gaya antes que chegássemos a Faldram. Gaya pouco toca no assunto, mas diferente do destino imposto a traidores, ela o manteve em isolamento nesta floresta, não podendo se aproximar mais dos seres que vivem aqui. Porém, se ele tiver algum meio de acionar os reinos aliados, sua segurança estaria em perigo e acreditamos que durante a noite seria mais fácil de despistá-lo.
- Entendo, não há dúvidas que fui abençoado com os companheiros de viagem certos – disse ele sorrindo. - Então vamos logo antes que percebam – continuou enquanto terminava de acomodar a mochila nas costas como um escoteiro amador.
Desceram silenciosamente as escadas e adentraram a mata, enquanto as estrelas que se escondiam entre as copas iluminavam suficientemente seus caminhos, ainda que para Cavian a luz do sol não fizesse qualquer diferença. Seus passos eram abafados pelo tapete de folhas aos seus pés e assim seguiram pelas árvores até que encontrassem seu transporte. Dois Bívios, animais que aguentariam o trajeto sem questionar. Logo estariam em terras inexploradas por qualquer um deles e ainda que tivessem entusiasmados, o perigo era sempre uma presença que os vigiava de perto, ávido pela única oportunidade que precisava encontrar.
OS CAVALEIROS DAS SOMBRAS
Cavian
Levaram dias até que a floresta se tornasse esparsa. O sol intenso que rachava seus lábios deu lugar ao vento frígido que vinha do norte. O único sinal de vida eram os pequenos animais pelo caminho que os acompanhavam por certo tempo até que seus pés cansassem. Pareciam querer escoltá-los, ainda que a companhia fosse o que mais agradasse. Paravam para se alimentar e dar descanso aos animais regularmente e ainda que ele desconfiasse que provavelmente rezassem a cada parada para que não fossem o próximo a carregar Narthus, o animal à frente sempre parecia mais exausto.
Quando as patas começaram a se marcar sobre a neve, Narthus os dispensou para que voltassem à floresta, desfazendo as selas e dando alguns tapas carinhosos em seus pescoços. Precisavam se manter no anonimato e animais daquele porte atraíram uma atenção indesejada ainda que o encurtamento de dias de viagem fosse adequado.
Sobre os resmungos da fada de corpo franzino, chegaram até as montanhas geladas. Já haviam se passado tantos dias sob a neve que ele tivera dúvida se podiam ter se perdido no caminho, ainda mais com os olhares frequentes de Narthus à única bússola que os guiavam até então.
Ainda que os ventos gélidos cortassem suas faces, o sol se apresentava imponente sobre as árvores esparsas. A neve acumulada sobre os braços dos roliços troncos fazia com que suas copas se assemelhavam a grandes tufos de algodão e os galhos contorcidos, apesar de aparentarem estarem sendo atacados por ventos tempestuosos, pareciam suspensos no tempo, inertes e imóveis como esculturas de gelo. Naquele cenário seria impossível não olhar à frente sem que qualquer um que enxergasse estreitasse os olhos. Logo precisariam partilhar de uma refeição mais abastada e de um descanso mais longo. Não que Narthus parecesse se importar de qualquer forma, mas ele e Rixi precisavam se alimentar e descansar se quisessem estar prontos para o que estava por vir. A jornada era difícil, o caminho era longo e as oportunidades de tempos tranquilos cada vez mais escassas à medida que avançavam.
- Cavian, estive pensando em alguns obstáculos que teremos nesse trajeto e a desconfiança sobre Rizar talvez seja o menor de nossos problemas. Se tornar invisível em uma cidade como aquela não será uma tarefa fácil – observou Narthus caminhando a frente, fincando o bastão de madeira em suas mãos ao chão a cada passo, enquanto Rixi se mantinha escondida no gorro da capa do gigante, provavelmente dormindo, já que o silêncio raramente costumava acompanhá-la.
Ele assentiu, atrás do vento que era cortado pelo grande corpo à sua frente.
- Sim, sem dúvidas, mas não se preocupe, pensaremos em algo até lá. Além de conversar com Rizar, existe uma outra coisa que pretendo fazer em Tessan... Tirar isso da minha cabeça - disse ele dando leves batidas na máscara que circundava seu crânio. – Se há algum lugar em que isso seja possível provavelmente seja lá.
- Não quero parecer desesperançoso, meu amigo – justificou Narthus. - Mas temo que a cidade que tenha conhecido não exista mais... Seus famosos hospitais e bibliotecas deram lugar a prisões a céu aberto...
- Os reinos aliados têm aprisionado que tipos de pessoas lá? – indagou ele.
- Todo tipo que se opusera aos ideais que consideram impuros, sejam por seus berços de nascimento ou por seus próprios pensamentos – respondeu Narthus. - Os povos que não assinaram o tratado e qualquer um que ouse questioná-los, agora são marcados e vendidos como animais nas feiras de cidade.
- Pelos deuses! E por qual razão a cidade não estaria em guerra nesse momento? – exclamou ele, já imaginando quais horrores seriam presenciados, pela descrição era muito pior do que pudera prever.
- Não é como se aceitassem, Cavian – respondeu Narthus. - Ou fazem isso ou deixam com que definhem até a morte aos olhos de todos ou os executam em praça pública. É como se de uma forma ou de outra acabassem servindo aos propósitos e desejos de seus algozes, já que mesmo aqueles que preferissem perder a vida alimentariam o medo dos que temessem por ela.
- Mais um motivo para enfrentá-los com tudo que temos!
- Sem dúvida... A questão é que não estamos nem perto de qualquer sucesso... Cogitamos inclusive pedir apoio à Gaya para o que pretendemos fazer aqui, mas quanto mais gente o protegesse, mais chamaria atenção e menores seriam as chances de que chegasse a qualquer lugar – revelou Narthus. – Além disso, provavelmente poucos estariam dispostos a segui-lo a um destino ainda desconhecido e de caminhos ainda tão incertos.
Cavian assentiu novamente, concordando com cada palavra proferida. Se ele tinha seus interesses, era esperado que os Natelurianos também os tivessem. Sabia que a crença de Narthus e Rixi se baseassem em uma esperança improvável, mas por mais que passasse os dias pensando, não havia encontrado qualquer outro rumo que pudesse poupá-los das decisões que tomaram para si mesmos, assim como eles não se opuseram quando decidiu partir.
Cavian
Foi apenas quando as pernas de Cavian começaram a perder a firmeza que o caminho começou a se embranquecer totalmente com a neve fina que começara a cobrir suas cabeças, em meio aos grandes pinheiros que se espalhavam na tentativa de não deixar com que o branco tomasse o horizonte, acompanhando as montanhas nevadas ao fundo ainda que não tivessem qualquer sucesso. Toda aquela região pertencia a Overfrost, o reino congelado e sem qualquer rei nomeado que dava abrigo a bárbaros e criaturas ainda desconhecidas, que se escondiam entre as montanhas e os ventos uivantes. Alguma de suas opções anos atrás.
O passo fofo tornava a caminhada pesada e mais lenta e a nevasca era suficiente para incomodar até mesmo Cavian, que vivera entre as altas montanhas. Ao menos podia manter seu rosto aquecido com um pouco de sua energia que fluía pela máscara ferrosa. Sabia que a situação pioraria até o anoitecer e que precisavam encontrar um abrigo o mais rápido possível, ainda que seu campo de visão não desse qualquer pista de que estariam próximos desse objetivo.
Cavian estava perdido em seus pensamentos quando Narthus parou repentinamente.
- Algum problema? – perguntou ele tentando avaliar a situação.
- Pegadas, Cavian, pegadas frescas de cavalos que passaram por aqui não muito tempo atrás – disse Narthus se agachando para avaliar a situação.
- Nativos? – questionou ele novamente.
- Dificilmente... Não há como manter cavalos aqui por muito tempo. É provável que sejam batedores... Talvez não tenhamos sido cuidadosos o suficiente – disse Narthus. - Rixi pode apagar nossas pegadas a partir de agora? Prometo que serão apenas algumas horas até que encontremos um lugar para passar a noite, não podemos nos arriscar esperando que a nevasca as cubra.
- Sim, sim... Deixe isso comigo – disse a fada voando até o topo da mochila de Cavian e se acomodando em sua nova montaria. – Terá que me carregar um pouco desse pequeno corpo até que cheguemos ao nosso destino, meu senhor – completou a fada se dirigindo a ele, enquanto descobria sua cabeça puxando para trás seu capuz, assim como havia feito com Narthus.
Cavian sorriu;
- Sem problemas, minha senhora – respondeu ele ironicamente por conta do formalismo da fada.
Rixi manipulou o vento contra as pegadas dos dois, encobrindo-as sob a neve, enquanto ele mantinha os ouvidos da forma mais atenta que pôde. Apesar de ser um péssimo guia sem sua visão, não teria qualquer dificuldade com a neblina que se formava. Poderia localizar qualquer um que entrasse naquele perímetro, o que o deixava confortável de certo modo.
Mantiveram os passos apressados durante o caminho mais longo que o esperado até que Narthus avistou finalmente uma série de rochas à frente.
- Venham, encontrei nosso abrigo – exclamou o gigante como se tivesse achado um tesouro escondido.
Eram rochas irregulares cobertas de neve, mas que serviriam como abrigo temporário. A luz já não era tão intensa como antes e a nevasca faria com que fosse impossível trilhar a direção correta dali pra frente. A hora de descansar finalmente chegara.
Narthus parou em uma delas, grande o suficiente para que pudesse abrigá-los e não chamativa o suficiente para que pudesse se destacar das demais que se estendiam pelos próximos metros em um plano rochoso. Narthus cavou a neve com a ajuda de Cavian, que mal podia sentir os dedos com o passar do tempo. Fizeram um buraco na base do corpo rochoso grande o suficiente para que pudessem se acomodar e se protegerem do vento gélido que os atacava sem qualquer piedade. As mãos grandes do gigante fizeram com que o trabalho não durasse muito tempo.
- Finalmente abrigados! – disse Rixi visivelmente aliviada de se proteger do sopro frígido das montanhas. Fora uma jornada árdua até ali para quem quer que fosse, ainda mais para um corpo pequeno como aquele. Mesmo que pudesse criar chamas em suas mãos, a magia não era algo que pudesse ser usado a bel prazer. A energia consumida era tão intensa que até mesmo os Dypsirianos, acostumados a usá-la desde seu despertar, tinham dificuldades em mantê-la por longos períodos.
- De fato, Rixi, a única coisa que me intriga nisso tudo é a constatação de que nosso amigo Narthus é incapaz de sentir frio, mesmo em um lugar como esse – brincou ele enquanto se encolhia envolvo à manta que desdobrara da mochila, tentando aquecer suas mãos geladas, esfregando-as uma contra a outra. O frio era tão intenso que era possível sentir o caminho do ar preenchendo seus pulmões.
- É de fato uma peculiaridade útil – disse Narthus. – Assim posso usar essa folga de carga para carregar a língua de Rixi para onde quer que eu for.
Ele riu, enquanto a fada franzia o nariz ainda que também sorrisse timidamente.
- Ei, grandalhão, pare de conversar e me dê algumas lenhas dentro da sua mochila – disse a fada apressadamente. Talvez os braços finos e trêmulos explicassem o desespero sentido por suas palavras, ainda que não fugisse muito de seu comportamento normal.
Narthus obedeceu imediatamente e apoiou a imensa mochila ao chão, abrindo-a e retirando algumas poucas toras que lenha ali guardadas, as quais empilhou no chão como uma fogueira improvisada. Rixi, com um estalar de dedos e um soprar de sua pequena boca, lançou brasas sobre a pilha de tocos, fazendo com que as chamas finalmente tomassem forma.
Estariam aquecidos e protegidos até que a nevasca passasse. Rixi retirou da mochila de Narthus o sobretudo que Persus usara para protegê-la em meio ao reino cinza e que passara a carregar consigo desde então. Era como se sentia protegida, mesmo sabendo que o Lumeriano não a acordaria mais pela manhã.
Apesar do desejo de descansar, as palavras de Narthus foram claras, tinham pessoas ali procurando por eles e conforme a nevasca passasse a fogueira no meio do nada não seria a melhor forma de escondê-los.
Não demorou muito até que Rixi se servisse de alguns pedaços de cipó, claramente se empanturrando antes da merecida noite de sono que planejava desde que partiram.
- Ei, príncipe, sabia que Tessan é governada agora pelo doutor quimera? – dizia a fada ainda de boca cheia. – Os boatos dizem que ele tem sete cabeças e é maior até do que as calamidades – continuou meneando as mãos como se contasse uma história de terror, referindo-se às corpulentas criaturas que guardavam os reinos dos deuses na era antiga e que nunca mais foram vistas desde a grande guerra.
- Infelizmente tudo que sei sobre o mundo atual são as coisas que escutei de vocês nos últimos dias – disse ele também alcançando alguns pães já ressecados e pouco apetitosos que separaram para sua viagem.
- E não sente medo de tudo que teremos que enfrentar? Estamos enfrentando um império inteiro, afinal – questionou Rixi.
- Não sei... Mas não acho que seja algo que eu volte a sentir tão facilmente... Quando se passa muito tempo no escuro e no silêncio, acho que seu maior medo se torna voltar a não escutar mais as vozes – refletiu ele.
- Não deixemos que as vozes se apaguem então! – disse a fada levantando seu pedaço de cipó como se brindasse ao companheiro, abocanhando-o logo em seguida e esfregando as palmas das mãos uma contra a outra. – Queria inclusive te agradecer, se não fosse por você aquele cabeça de pedra nunca aceitaria sair daquela floresta. Mesmo em tempos como esse acho que temos que manter a chama de nossa curiosidade como esse braseiro – finalizou arrancando algo novamente da pequena mochila. Vez ou outra Cavian a via fazer isso, parecia sempre estar escrevendo algo.
Era uma caderneta de madeira e uma pequena vareta que utilizava para rascunhar. A vareta de madeira era bastante fina e a ponta se aquecia magicamente nas mãos da fada, fazendo com que gravasse nas folhas delgadas e firmes de madeira os desenhos e descrições do mundo que se passava através daqueles pequenos olhos.
- Não imaginei realmente que quisessem sair de lá – observou ele.
- Por motivos diferentes, mas sim, inclusive confesso que eu possa ter me utilizado de artifícios pouco honestos – interrompeu rindo a fada, que encarava Narthus comprimindo os lábios arteiramente. - Mas sempre foi meu sonho ter a chance de sair de lá.
- É o que rabisca tanto nesse caderno?
- Haha, de certa forma... Tem tanta coisa que ainda quero conhecer – suspirou Rixi. - Logicamente seria impossível fazer isso estando naquela floresta... Apesar de Faldram ser um sonho para muitos, viver só por viver é tão sem graça, não acha?
- Isso não é uma diversão, Rixi, nós estamos aqui por um propósito... – repreendeu Narthus.
- Ah, não encha o saco, grandalhão... Não é disso que estou falando... Nem tudo é sobre propósito e obrigações e blá, blá, blá desses discursos chatos, só quero andar por aí... Não posso? O mundo pode não estar tão bonito quanto já foi, mas também não é minha culpa... – resmungou.
- Não quero que me entenda mal, Rixi, mas sempre imaginei vocês como seres mais reservados – brincou ele esperando uma resposta deseducada.
- Na maioria das vezes... Nós, Vinolianos, somos seres criados pela magia para a magia, não temos sobrenomes ou coisas do tipo, então a maioria nós tende a ser chato como Narthus – disse a fada apontando com a vareta o rosto contrariado de Narthus - Masss... Como pretendo ser uma guardadora decidi não me limitar ao meu berço assim como você. Veja só... Se tivesse escolhido se manter na linha, estaria comandando os exércitos dos plumados contra seres sem lar agora.
Ele sorriu.
Guardadores eram aqueles que se limitavam a guardar as memórias daquele mundo, geralmente gnomos enfurnados em suas cavernas, coletando relatos e contos que se cruzavam despretensiosamente por qualquer lugar que fosse, quase nunca vistos, mas sempre onipresentes pelos ouvidos comprados por serviços tão místicos quanto questionáveis, em um futuro que não lhes importava, mas que agora cobrava seu preço, fazendo com que se tornassem apenas raros sussurros.
- Tem razão, mas os Aquirianos não são ruins como pensa... Só são fiéis demais às suas tradições. Talvez algum dia eu os leve até lá e poderão comprovar o que falo com seus próprios olhos.
- Em qual mundo eles vivem para acreditar que acorrentar pessoas que não fizeram nada possa trazer algum bem? – retrucou a fada.
- Em um que os faça acreditar que essas pessoas estão do lado errado da história. Não estou justificando a ação deles, Rixi, eu não faria o mesmo, mas a fé e a idolatria têm o poder de guiar pessoas a coisas como essa.
- Então pelo jeito não são tão sábios quanto dizem – concluiu a fada.
Ele riu.
- Parece que não pra algumas coisas – concordou. - Mas voltando ao doutor quimera, quem ele é realmente?
- Se interessou, não foi? – questionou a fada visivelmente feliz com o sucesso de seu plano.
- Pareceu uma descrição interessante...
- E um pouco exagerada, não? – acrescentou Narthus.
- Não sei, não costumo dizer que as coisas não existem só porque não vi... – murmurou Rixi. - Os boatos não surgem do nada, sabe? E um pouco de exagero torna as histórias muito mais interessantes.
Até Narthus desfez seu semblante fechado com a fala da fada.
- Rixi se refere a Splenze, um dos generais do exército de seu pai – explicou Narthus. - Sua família era bem famosa na região mesmo antes de tudo se tornar o que conhecemos hoje.
- O nome não me é estranho... – pensou ele por alguns instantes, - Mas visitei muito pouco Tessan quando era mais jovem, só lembro de tudo ser verde para onde quer que olhasse – continuou se lembrando nostalgicamente de correr com Yuki entre os corredores largos do castelo da família Neniak, tentando se esconder de Melin em uma das raras ocasiões em que sua mãe conseguia se afastar de seus afazeres reais.
- Talvez a única coisa que tenha sido mantida – disse Narthus.
- Sabe, por mais que eu esteja preocupado, acredito que ao chegarmos lá estaremos relativamente seguros, já que duvido que os exércitos de Gremory nos sigam pelo mar – disse ele confiante enquanto pegava mais um pedaço de pão na pequena trouxa em sua mochila.
- E como sabe que são só eles? – indagou Narthus.
- Bom, isso realmente não sei... Mas duvido que a informação da minha fuga chegue em Tessan antes de nós – explicou. - Seria muito arriscado pra quem comanda aquela fortaleza. Com certeza seu posto e sua vida estariam em perigo assim que explicasse o ocorrido.
- É provável que tenha razão, mas mesmo assim precisamos ter cautela – lembrou Narthus.
Cavian assentiu com um sorriso.
- Não serei precipitado novamente, meu amigo... Acredito que sete anos naquele lugar mude a cabeça de qualquer um. Hoje entendo como fui tolo quando mais jovem por exemplo e por isso não repetirei o mesmo erro, ainda mais com vocês ao meu lado – disse ele, enquanto flexionava seus dedos quando finalmente começara a sentir o sangue voltar a suas mãos.
- Assim esperamos, jovem príncipe, ou te encontrarei no outro plano e te darei cascudos até que sua cabeça dobre de tamanho – disse Rixi, séria, enquanto ele e Narthus riram.
A noite avançou sem maiores preocupações e Cavian nem percebeu quando apagou em sono profundo.
Cavian
O sol não havia nascido ainda quando sentiu a mão de Narthus tampando sua boca. Percebeu que o gigante acinzentado estava imóvel com outra das suas mãos protegendo Rixi da neve que agora praticamente os cobria. Mal havia recobrado a consciência totalmente quando entendera a razão. O odor fétido invadiu seus pulmões com violência, próximo como sua própria sombra. Escutou os sons abafados dos cascos contra a camada fofa de neve, ainda que não conseguisse sentir qualquer presença.
A fogueira fora coberta pela neve, assim como parte de seu corpo. Não era uma sensação agradável ainda que fosse a menor de suas preocupações. Estavam próximos de encontrá-los. Invisíveis, Cavian pensou no fundo de sua mente, embora achasse que a melhor opção seria enfrentá-los ali enquanto provavelmente fossem poucos. Poderiam inclusive pegar os cavalos para que chegassem mais rapidamente ao seu destino, mas não quebraria a promessa que fizera na noite anterior.
Os trotes se acalmaram lentamente como se parassem para observá-los. Cavian já se preparava para o pior, enquanto Narthus permanecia imóvel e assustadoramente calmo perante a situação. Pôde perceber que Rixi mantinha a pequena palma de sua mão aberta em direção à abertura que permitia que suas cabeças ainda respirassem.
Não passou muito tempo até que voltassem a respirar com vigor. Esperaram ainda alguns bons minutos para se certificarem de que o perigo havia passado e finalmente puderam sair da depressão que os escondia. A preocupação estampava o rosto de todos, mas Narthus sabia o significado do que acabara de acontecer, talvez mais do que os demais.
- Pelos deuses, quase me mata de susto - murmurou a fada a Narthus ainda com o rosto perplexo.
- Não os percebi até que estivessem perto o suficiente – revelou Narthus.
- Poderíamos tê-los abatidos, assim haveria menos um grupo para nos preocuparmos, além dos cavalos para nos levar até o litoral – disse ele, enquanto batia a mão contra as vestes para retirar a neve que ainda restava.
- Não se engane, Cavian, aqueles certamente são cavaleiros de Cusgar – revelou o gigante, procurando as marcas na neve para verificar a direção que precisariam evitar. - Dizem que seus espíritos vagam neste mundo exclusivamente para atender seus chamados e que não há pessoas que tenham escapado de suas mãos. Se estão aqui provavelmente sabem que fugiu, o que significa que eu estava certo sobre o perigo que alertei nas florestas.
- Ainda não entendo a razão de não conseguir senti-los. Os sons pareciam tão próximos... – disse ele ainda tentando descobrir o que aquilo significava. Magia? Difícil, primeiro porque não teria como saberem de sua habilidade e segundo, se soubessem que estavam ali, não haveria qualquer razão para não os confrontar. A situação era como um quebra-cabeça de peças faltantes.
- Naquele momento que pararam estavam a cerca de cinco metros de nós, mas Rixi conseguiu criar uma barreira que acredito que os tenha despistado. Escutei no mínimo três deles por aqui, mas se decidiram vir pessoalmente com certeza estão em um número maior.
- Se quisermos derrubar os reinos aliados, os soldados de Cusgar não deveriam ser obstáculos – constatou Cavian.
- Talvez não sejam, mas quanto mais confrontos evitarmos mais perto de nossos objetivos estaremos – observou Narthus sabiamente.
- Tem um ponto, meu amigo, temo que tenha feito bem em controlar minhas ações como prometi.
Narthus assentiu.
- Coação é diferente de livre arbítrio, príncipe dragão. Tenho certeza que as ameaças que fiz passaram por sua mente – brincou Rixi amenizando a situação desconfortável que haviam acabado de passar.
Narthus depositou a mochila no chão fofo de neve e começou a desamarrar as madeiras que carregara no trajeto, soltando alguns pinos de madeira ao chão assim como a vela que se enrolava em alguns bastões de diferentes tamanhos.
- O que vai fazer? – questionou Cavian ao amigo.
- Montar nosso barco – respondeu Narthus, encaixando as peças que depositara sobre o chão. - Chamaremos mais atenção, mas acho que não estamos tão longe do litoral. Creio que montá-lo em uma situação de fuga seja ainda pior do que arriscarmos sermos vistos. Só se prepare para correr o máximo que puder. A nevasca cessou e o que temos à frente é somente um horizonte branco e relativamente plano, o que significa que nos enxergarão a quilômetros de distância.
- Precisa de ajuda? – questionou ele novamente, ainda sem saber se poderia de fato ajudar em algo.
- Ei, Cavian, me ajude com a vela – pediu Rixi enquanto tentava esticar forçosamente o objeto sobre o chão.
Os bastões se encaixavam entre eles em diferentes tamanhos e tanto ele quanto Rixi amarravam o tecido na estrutura que agora tinha quase o tamanho de Narthus. O barco era intrigante. Parecia como um grande quebra cabeça de madeira, no qual as peças se encaixavam em uma rara harmonia em juntas que se uniam sem qualquer metal. Qualquer um que olhasse teria suas dúvidas se de fato aquela estrutura tinha qualquer chance de enfrentar as tempestades em alto mar.
Ele levantou a vela em seu ombro e Narthus o barco que acabara de montar. A estrutura parecia tão leve nas mãos do gigante, que qualquer um que os olhasse teria a certeza de que a embarcação não resistiria aos ataques das enraivecidas ondas à frente. Partiram em direção ao litoral com as montanhas cobrindo suas costas ao fundo. O sumiço das árvores indicava que estavam cada vez mais próximos de seu destino e até o ambiente se apresentava mais agradável.
O sol havia caminhado metade de seu caminho diário quando Narthus e Rixi avistaram o que seus olhos claramente não gostariam de ter presenciado. Os cavaleiros que quase os encontraram naquele dia, pareciam ter saído das próprias sombras no horizonte coberto pela neve e pelo medo. Seus caminhos acabaram se cruzando novamente em uma situação bem diferente daquela manhã. Suas armaduras negras tinham curvas que lembravam as barricadas que circundavam os castelos dos grandes reis, com extremidades que se desdobravam em grandes pontas de ferro pontiagudo em um singelo convite à morte.
- Corra, Cavian, corra! – bradou Narthus ao apressar seus passos, mantendo a direção que tomaram no início enquanto os cavalos ao fundo partiram em arrancada.
Aceleraram o passo como podiam, mas mesmo que suas velocidades fossem acima de qualquer média, cavalos ainda eram cavalos e ainda que o mar parecesse mais perto do que os batedores, era bem provável que os alcançariam antes que chegassem.
Ele estava completamente perdido e a única coisa que conseguia fazer no momento era seguir Narthus e Rixi, seus dois únicos faróis no horizonte. Mais uma fuga, já era a terceira em sua vida e a cada uma delas uma nova ferida se abria. Na primeira perdera sua mãe, na segunda Persus e agora mais duas pessoas sem qualquer culpa corriam risco por sua causa. Talvez um último sinal para concretizar sua desistência.
Sabia que os cavalos se aproximavam rapidamente, a cabeça de Narthus virava cada vez com mais frequência e Rixi se mantinha alerta nas costas do gigante. Cavian tinha que lutar, sabia disso, ainda que achasse difícil que os dois simplesmente o abandonassem, afinal, haviam saído naquela jornada por conta dele. Provavelmente Gaya não contava que seriam descobertos pelos reinos aliados tão rápido. A neve não os protegeria do que estava por vir.
- Narthus! – gritou Rixi ao gigante, que parou repentinamente e jogou seu corpo contra o de Cavian, derrubando-o ao chão como se tivesse batido contra um tronco de carvalho. Antes que caísse, escutou o zunido da lança que quase o acertara. Rápida como um raio ao cair do céu. Ele subestimara a força daqueles soldados, se ele evoluiu no tempo que ficou preso naquelas masmorras, certamente seus inimigos também o fizeram.
Narthus tirou a lança do chão e estendeu sua mão a ele novamente para que se levantasse.
Menos tempo correndo significava menos chances de chegar ao litoral. Cavian sentiu a brisa que vinha do mar. Estavam perto o suficiente para chegar, mas aquelas lanças o preocupavam. Se houvesse mais delas, seriam certamente alvejados. Rixi disparou pequenos projéteis de fogo contra eles que zumbiam antes de se apagarem na neve, provavelmente tentando distrair os corcéis, ainda que a distância e o balanço tornassem qualquer acerto difícil. Mesmo assim ele pôde ter certa noção de onde estavam, ou seja, não distantes o suficiente.
Narthus arrancou o barco das costas e lançou na direção do mar. Nem mesmo o choque com as águas turbulentas se apresentaram como um desafio à pequena embarcação, que agora meneava pacientemente ao longe.
- Rixi, vá com Cavian para o barco, vou atrasá-los e os alcançarei assim que possível – ordenou Narthus.
Rixi assentiu.
- Não o deixarei aqui – confrontou Cavian.
- Esqueça, Cavian, nas condições em que se encontra só o que pode fazer é atrapalhar...
Narthus levantou a lança em sua mão direita. A ponta tão afiada como uma fina folha de papel atravessaria Cavian com a facilidade ainda maior do que um tiro à queima roupa. Sua ponta reluzia como a neve enquanto Narthus apontava para seu alvo. Cerca de cem metros o separava de seus inimigos quando a lança partiu o ar talvez ainda mais rápida do que quando viera. O alvo fora certeiro, o meio do peito de um dos cavaleiros, que foi lançado do cavalo com a violência da colisão.
- Ei, dragão, Narthus acaba de abater um deles – exclamou a fada. - Os outros não resistirão por muito tempo. Acelere seu passo antes que mais deles cheguem até nós.
Não houve tempo pra comemorar. Os cavaleiros restantes sequer olharam ao lado, continuaram avançando sem qualquer hesitação. Narthus tentou conter o primeiro cavaleiro a chegar se opondo contra o robusto cavalo. Antes que colidissem, o cavaleiro habilmente alterou seu trajeto, com uma mudança sutil na trajetória, que criou a distância ideal para que a esfera de espinhos encontrasse a costela de Narthus como um aríete, conseguindo jogar o gigante contra o chão e liberando caminho que se destinava a Cavian e Rixi. O próximo a alcançá-los também avançava com uma espada longa o suficiente para quase alcançar a neve que pulava ao trotar dos cascos.
Rixi impulsionou o corpo dos dois com a palma da mão, da mesma forma que Persus fizera um dia. Ainda que não fosse tão potente, foi suficiente para que conseguisse desviá-los para longe do segundo golpe de mangual, que passara a centímetros dos dois. Eram como fantasmas pra ele e mesmo que aumentasse o potencial de seu campo continuava a não senti-los, tornando a situação tão desesperadora quanto frustrante, já que mal conseguia acompanhar os movimentos que se sucediam. Novamente, depois de tantos anos, teve a oportunidade de se redimir e a história insistia em se repetir.
Assim que o som da lâmina chegou aos seus ouvidos, puxou a fada junto ao seu corpo e rolou para longe em um movimento de raro sucesso. A única coisa que pensava agora era em um jeito de encurtar a distância de seus oponentes. Ou era isso, ou a sorte com certeza o abandonaria, já que os cascos vinham a galope em sua direção.
Narthus
Narthus levantou da neve tentando encontrá-los. A pancada fora forte como um tiro de canhão, mas nada que surpreendesse a robustez de seu corpo. Precisava alcançar seu próximo alvo urgente.
O gigante viu os cavalos se aproximando dos de Cavian e Rixi quando uma lança atravessou sua perna esquerda. Olhou para trás e encarou o cavaleiro que derrubara minutos atrás. O buraco em seu peito não deixava dúvidas que não habitava mais o mundo dos vivos e as lendas não pareciam mais tão distantes da realidade. O sangue escorria pelos seus pés e coloria a neve, ainda que não esboçasse qualquer sinal de dor. Puxou a lança pela ponta, arrancando-a pela outra extremidade do buraco que abrira pouco acima de seus pés. Não conseguiria chegar a tempo de fazer algo e ainda tinha que se preocupar com o cavaleiro que achava que tinha se livrado de seu encalço.
Ergueu novamente a lança manchada de vermelho contra seu oponente e antes que pudesse pensar em fazer algo, um forte vento atingiu o cavaleiro, jogando-o por alguns metros. O sorriso que finalmente tomou sua face revelava que sabia do que se tratava, afinal, fora a sua própria deusa que dissera que os caminhos nevados os protegeriam.
Cavian
Os cavalos pararam de se mover quando os ventos gélidos atacaram os cascos largos, fazendo com que o chão instável mais parecesse com as águas que o banhavam a metros dali. A falta de equilíbrio os impedia de avançarem enquanto as esperanças em seus corações aos poucos se renovavam.
Cavian imaginou em um primeiro momento que Rixi novamente barrara o ímpeto das ações dos cavaleiros, mas a fada permanecia imóvel em suas costas. Ele estava ajoelhado na neve quando pode ver claramente o vento se moldando a sua frente em um ser disforme e sem face imbuído de magia, fluído, maior do que os gigantes e onipresente como a própria natureza.
Parou na frente dele por um momento, observando-o e o analisando como alguém que dissecasse minuciosamente um novo espécime. Cavian não sentiu qualquer ameaça vindo do que quer que aquilo fosse e nem teve tempo de criar suas dúvidas.
A forma se desdez ao mesmo tempo que se moldou, materializando-se a metros dali, diante de seus algozes que o atacavam em golpes nos quais o ferro se lançava contra o vazio. Era a chance que se apresentava diante dos três viajantes, que viam os corpos dos cavaleiros serem jogados como se fossem folhas ao vento.
O cavaleiro golpeado por Narthus havia acabado de se levantar quando foi atingido novamente, agora por uma clava longa de um ser de pele azulada e cabelos longos e esbranquiçados, assim como seus olhos e a barba longa que descia até o peito. Era tão grande quanto Narthus, embora trouxesse terror no olhar. Não vestia nada além de um saiote costurado com peles das criaturas que viviam naquele reino congelado. Um Yeti provavelmente, ainda que qualquer um deles nunca tivesse visto um. Tão raros quanto mortais, o que dificilmente os colocava nas páginas dos livros passados entre gerações.
Ele não sabia a razão e nem se importava, os inimigos de seus inimigos eram aliados valiosos principalmente no momento em que se encontravam.
- Vamos, Cavian – gritou Narthus ao fundo se dirigindo na direção do barco sem a mesma velocidade habitual.
- Quem são eles? – questionou se movimentando também o mais rápido que podia.
- Ela prometeu que a neve nos protegeria – exclamou Narthus. - Vamos em frente antes que mais deles cheguem.
Cavian assentiu, entendendo que não seria a melhor hora para uma conversa.
Narthus tomou a vela de suas mãos tomando a frente do grupo. Cortou as águas congelantes com o corpulento corpo sendo banhadopelas ondas que se sucediam. Finalmente alcançaram o barco, Narthus o ajudou a subir sobre as tábuas flutuantes enquanto seus músculos tremulavam tanto quanto a vela içada.
Os filhos das sombras lutavam sem sucesso contra as exóticas criaturas. Uma luta que provavelmente se estenderia mais do que os olhos atentos da embarcação pudessem acompanhar, em um horizonte que cada vez se tornava mais distante com o soprar dos ventos tempestuosos, fazendo com que velejassem tão rápido quanto realmente teriam desejado.
Cavian não sabia o que aquilo tudo significava, mas se ele buscava um sinal dos deuses para que desistisse, um milagre como aquele parecia ser uma mensagem bastante clara para que esse talvez não fosse esse o caminho a ser seguido.
O GRANDE RIZAR
Cavian
Narthus se ajoelhou para rezar por Gaya, a deusa que o salvara pouco tempo depois de chegar à floresta de árvores corpulentas. Se ainda habitava aquele mundo entre os vivos, era pelas mãos da própria deusa e de Persus, com quem aprendeu os caminhos da fé. Adorá-la era também pedir que os antigos deuses recebessem o Lumeriano com o tratamento respeitoso que este deu a eles quando mortal, ainda que suas ações em vida falassem mais do que qualquer pedido que pudesse suplicar por suas preces. Era um devoto de suas crenças, assim como Persus havia sido e como Rixi jamais seria.
A fada tinha a religião dos antigos com uma das doenças que assolara o novo mundo, já que não era raro que pessoas reivindicassem a morte em nome dos deuses passados. Eram tempos difíceis de pouca esperança, nos quais milagres se tornaram o motor que ainda movia as pessoas a seguirem acreditando em dias melhores, mesmo que esses nunca viessem a chegar. Era como um vício, que transformava homens em seus próprios algozes. Apesar disso, só questionara Narthus em raras ocasiões. Sabia como era importante pra ele acreditar que Persus não se fora sem um propósito ou que a vida que vivera até então tivesse algum.
As águas coléricas e o sol que os cobria em toda sua plenitude quando se apresentava se intercalaram por dias, fazendo com que o silêncio fosse cada vez um companheiro mais frequente. Chegariam a Tessan em poucas horas, enquanto a neblina ainda os encobria e as ondas pareciam finalmente se acalmar e se amornar.
Cavian não parava de pensar em Rizar. Poderia ser tanto a chave para encontrar Lis quanto as algemas que o acorrentariam novamente. A travessia que julgavam segura já não existia mais. Seus inimigos sabiam que navegavam em um pequeno barco e os portos não eram tantos assim. De um lado a tempestade certamente os consumiria, do outro Tessan parecia ser o caminho mais próximo e mais óbvio onde ainda conseguiriam se misturar, ainda que Narthus chamasse alguma atenção. Mesmo que atracassem em outro ponto do litoral, certamente os encontrariam em algum momento, em um terreno onde a vantagem claramente não os acompanharia. Fazia tempo que o gigante partira e desaparecera por completo. Um mestiço tão jovem como ele, longe dos acordos da realeza e fora das fronteiras, com certeza já teria perecido. Já ele tinha praticamente uma placa de procurado estampado em sua testa. Não haveria muitos obstáculos para que os reconhecessem mesmo em meio à multidão.
- Cavian, vamos descer aqui – disse Narthus organizando as refeições que partilhara na noite anterior dentro da mochila que lhe tomava as costas da nuca à cintura.
- No meio do nada? – questionou ele ainda sem entender a ideia.
- Sim, longe dos olhos curiosos – completou o gigante.
- Mas a maré não o levará à encosta de qualquer jeito? – indagou novamente sobre a embarcação.
- Não se o afundarmos antes – completou novamente Narthus, agora arrancando o pino que travava a vela, jogando-a no mar.
- Ou seja, sem plano de fuga – constatou ele ainda pensando que não estivera enxergando todos os pontos.
- É como uma aposta, jovem príncipe – disse Rixi. - Ou se aposta tudo e se ganha ou se aposta a metade e a chance de perder se torna significativa o suficiente para nos questionar quando as coisas não derem certo. Achei que você, como o otimista do grupo, deveria estar mais entusiasmado, afinal, foi acreditar nisso que fez com que chegássemos até aqui – acrescentou a fada flutuando acima do tablado da embarcação. Não precisaria se molhar como os demais, ainda que precisasse tomar cuidado para que não a vissem. Se fadas já eram raras quando fora capturada pela primeira vez, Tessan talvez fosse o pior lugar para se visitar naquele momento. Se a vissem seria como abanar um pedaço suculento de carne a estômagos famintos.
- Bom... Que seja! Sinto que encontraremos o que buscamos. – completou ele.
- Agora sim, parece o Cavian que conhecemos! Por um momento achei que alguém tivesse lhe lançado algum feitiço – murmurou a fada.
- Talvez eu esteja... – disse Cavian erguendo as mãos ao partir para cima da fada, que se afastou assustada, meneando as mãos para contra atacá-lo. Foi só então que o príncipe caiu em gargalhada.
- Da próxima vez lançarei seu corpo a quilômetros daqui, meu jovem – resmungou Rixi franzindo o cenho.
- Desculpe, foi inevitável! – disse ele ainda risonho quando terminou de se preparar, pulando finalmente no mar.
À medida que o gigante arrancava as conexões, o pequeno barco ia se desfazendo em pedaços e afundando lentamente com ele, até que submergisse e sumisse na escuridão das águas não tão profundas.
Narthus não era um exímio nadador. Sua natureza o fazia parecer mais com uma âncora do que com uma boia, já que a densidade de suas raças originárias extrapolava o senso comum. Em contraponto, o que lhe faltava em leveza lhe sobrava em força e seus músculos, apesar de provavelmente não serem tão potentes quanto os dos gigantes, precisavam sustentar na água um corpo significativamente menor.
Não sabia ao certo quanto tempo se passara até que as águas limpas de outrora dessem lugar à praia barrenta que se encontravam. Plantas arredondadas e outras de folhas e galhos finos cobriam a superfície da água quase que por completo e se confundiam com a encosta também coberta por folhas verdes, assim como ele resgatara em suas recordações.
Tessan era praticamente toda erguida sobre terreno pantanoso, e o verde que Cavian mencionara era reflexo da cobertura musgosa que tomava desde imensos telhados até as pequenas fechaduras. Os adonsoneiros, árvores de tronco alongado de tom escuro e folhas espalmadas que refletiam o tom das luas de sangue, espalhavam-se sobre o solo úmido, gerando a sombra necessária para que o verde florescesse, o ouro negro, como costumavam chamar os nativos.
Os sábios diziam que somente um tronco duro como o próprio ferro poderia crescer ali, já que a pressão da água obrigava com que seus veios se comprimissem a um ponto que sequer as lâminas pudessem atravessar, tão forte quanto o próprio aço e tão leve quanto suas próprias folhas. Se os anões extraiam seu ouro das minas profundas, Tessan o tinha ali, ao alcance das mãos de todos.
A cidade que já havia sido anos atrás o abrigo de enfermos e curandeiros, tinha em sua essência o confronto entre os sacerdotes dos deuses e os amantes da ciência na busca pela vida perene. Ninguém questionara a potência da cura divina, ainda que as poções das cabaças pudessem tratar vilas inteiras em uma única noite. A concorrência velada gerava a busca pela perfeição em situações de limites subjetivos, o que sem dúvida trouxera frutos, ainda que de sementes eventualmente apodrecidas.
Parecia ser manhã, embora o sol iluminasse preguiçosamente tudo que nascia ali. Não era sua culpa de qualquer forma. A luz não encontrava caminhos entre o tapete de musgos que permeava a floresta negra, ainda que seu alicerce fosse mais espaçado e de copas menos densas se comparadas ao refúgio Nateluriano.
Assim que subiram à superfície terrestre, Narthus tirou da mochila uma pequena cartola amassada pela viagem e Rixi pousou sobre sua cabeça, fazendo com que o objeto a cobrisse logo depois. Um par de óculos amarrado atrás de sua cabeça calva de lentes arredondadas e com detalhes metálicos pouco afinados também cobria os olhos do gigante, fazendo com que aparentasse um viajante mercador, apesar do tamanho avantajado.
Narthus continuou a desfazer a sacola de surpresas, quando o tintilar das argolas fez com que seu corpo fosse paralisado por um instante, até que seus músculos começassem a tremer timidamente e esfregasse a mão por seus pulsos com mais intensidade do que o habitual. Um par de algemas se pendurava nas mãos de Narthus, não eram novas, como as marcas do tempo que estampavam sua superfície revelavam, mas as sentia como se voltasse a habitar as pedras frias, como se estivessem prontas e ansiosas para abraçá-lo novamente. O gigante também retirou da bolsa um conjunto de trapos sujos que guardara para a ocasião.
Narthus percebeu a hesitação do amigo, mas mesmo sabendo do que vivera, não haviam achado melhor plano para ocasião e o inevitável incômodo certamente banharia de verdade quaisquer dúvidas que olhos alheios pudessem tentar encontrar. Por mais que soubesse de seu tamanho exótico, não era um meio-sangue das terras acinzentadas que estavam procurando. Por outro lado, se Cavian se passasse por um escravo, a quantidade deles por ali seria tão grande que seria como tentar diferenciar um cordão de ouro em um rolo de feno.
- Cavian, está tudo bem? – questionou Narthus, entregando-lhe as novas vestes.
- Tudo sim... – disse ele desconfiadamente enquanto substituía as densas roupas de viagem pelas vestes surradas.
- É o jeito mais seguro, Cavian... Essas algemas inclusive podem ser facilmente quebradas – mostrava o gigante, puxando-as com vigor. - Pense bem, de qual outra forma poderemos esconder a máscara que puseram em seu rosto?
- Eu sei e concordo com você... – disse ele respirando profundamente. - Só preciso fazer com que meus braços consigam entender.
- Sem problemas, tenha seu tempo... Se quiser podemos fazer uma pausa – sugeriu o gigante em tom compassivo, ainda que olhasse ansiosamente para os lados com certa frequência, já que certamente seria difícil explicar tal situação.
- Não será necessário... – disse ele quando finalmente estendeu as mãos ainda trêmulas.
Posso quebrá-las quando quiser, não estou mais naquela masmorra, repetia a si mesmo, tentando se encorajar. Não fez tudo que fez para que aquilo o impedisse. As algemas que acorrentavam seus braços não poderiam pará-lo novamente, não deixaria com que pudessem fazê-lo. Havia muito em jogo para que se preocupasse com vaidades por mais justificadas que fossem.
Narthus atravessou as algemas ao redor dos pulsos de Cavian sabendo da dor que causou ao recente amigo. Estavam arriscando suas vidas ali, se não estivessem dispostos a enfrentar seus próprios medos, seria melhor que voltassem de onde partiram. Todos sabiam disso, ainda que não precisassem dizer.
- O capuz ajudará a esconder a máscara, Cavian, mas deverá se manter curvado durante todo o trajeto. Caso precise de algo, puxe a corrente duas vezes – orientou Narthus antes de partirem.
Cavian assentiu, quando o metal finalmente puxou seus braços rumo à cidade.
Narthus
O gigante sabia que era preciso chegar a Rizar antes de anoitecer, ou teriam que arrumar uma boa explicação para um mestre de escravos manter seu prisioneiro em tão bom estado. Um mero sussurro poderia se transformar em ouro para os ouvidos atentos que o alcançassem.
Assim como previsto, não fora difícil caminharem sem que fossem notados, alguns olhares desconfiados logo se desviavam e os corredores que cruzavam a cidade verde tinham seus muros cobertos de pessoas das mais variadas linhagens, desde de seres esguios de orelhas pontiagudas, aos duradouros nômades de pele verde e dentes saltados. Se Cavian tinha temor das algemas que cobriam seu pulso, provavelmente agradeceria por ter sido privado da visão que presenciaria ali. Narthus mal conseguia encarar os corpos que se ofereciam por meros restos de comida, com olhares tão famintos que não saberia dizer se os membros que lhes faltavam pudessem ter sido arrancados por fruto do desespero de seus próprios estômagos famintos ou ceifados por lâminas cegas de seus senhores. Numerados e marcados na maioria das vezes em suas testas castigadas e leiloados como animais, ainda que nem as criaturas merecessem tal tratamento. Pais vendendo suas proles na esperança de não escutarem os choros das barrigas vazias ou dos sopros frios que avançavam pela noite, ainda que tudo isso ainda não fosse o que mais lhe embrulhasse o estômago. Eram seus sorrisos que mais incomodavam, eram mantidos por seus rostos em sinal de obediência e submissão. Pela primeira vez em sua vida, seu coração, por um momento, pareceu finalmente se curvar aos desejos de seus ancestrais. Sabia que não podia fazer nada ali, por mais que quisesse lutar, por mais força que os deuses tivessem lhe dado. Era como estar preso em uma jaula vendo tudo que o mais lhe importasse ser morto dentro de si.
Ficou tão atônito com a cena que se chocou com um senhor curvado que foi puxado logo em seguida por seu mestre, certamente um dos soldados dos reinos aliados, que carregava o símbolo das hastes arqueadas estampado no ombro do colete que o cobria. Narthus reconheceu as protuberâncias marcadas no crânio do senhor de escravos e a expressão confiante que tomava conta do rosto daquele homem, as mesmas marcas que não havia herdado de sua mãe. O homem não pediu desculpas ou reivindicou qualquer ação que talvez viesse de outros seres dali. Somente puxou a corrente fixada na coleira de ferro travada no pescoço do pobre senhor, um nativo provavelmente, dado o belo tom de sua pele, que se assemelhavam ao interior do tronco das árvores pantanosas e das folhas que caiam ao outono. Certamente também tão resistente quanto elas. Narthus cerrou o punho e o cenho por um instante em que a fúria sempre tão distante ameaçou tomar sua mente.
- Me desculpe, meu senhor, meus olhos velhos não conseguem mais ver o caminho como deveriam – disse o senhor com a voz trêmula ao se chocar com o gigante cinza. Seus olhos eram aterrorizantes ainda que não soubessem que seu alvo era o dono daquelas correntes e não quem estava preso por elas.
Sabia que era ele que deveria se desculpar. Era o que seu coração desejava, ao ponto de fazer com que pelo menos em seus pensamentos, descumprisse a promessa que fizera. Seria o que Persus certamente teria feito, foi o que fez por ele, ainda que ali não se tratasse somente de sua vida em jogo. Rixi provavelmente seria jogada na mão de comerciantes que provavelmente negociariam suas partes, enquanto Cavian voltaria para masmorra certamente agora com cuidados que garantissem que permanecesse naquele caixão de pedras por toda a eternidade. Persus teria partido em vão e certamente muitos ruiriam com a decisão. Aquele senhor provavelmente não viveria muitos dias, ainda que sua morte agora passasse agora por suas mãos. Não hesitaria em trocar sua vida por a daquele senhor, mas não poderia fazê-lo naquele dia, não naquelas circunstâncias. Rixi e Cavian eram voláteis demais, por isso os deuses não haviam depositado a decisão a eles. Deveria cumprir a missão que lhe fora dado por mais difícil que fosse. Assim se manteve calado enquanto o senhor se distanciava.
Não saberia seu nome, mas certamente estaria em suas orações, assim como todos que passaram por seus olhos naquele dia. O silêncio tomava suas vozes, enquanto suas mentes se inundavam nas dúvidas ainda sem respostas.
Pararam em um cruzamento movimentado, entre casarões refinados de janelas tão grandes que Narthus poderia passar por elas sem se agachar. Gaya havia lhe dito que o homem que buscavam provavelmente viveria na região mais nobre de Tessan, o que indicava que estavam próximos de seu destino. Finalmente se direcionou a uma senhora que comercializava essências em uma pequena carroça de mão estacionada no local.
- Saberia me dizer onde posso encontrar Rizar? Tenho uma encomenda pra ele – disse ele, impositivo, puxando a corrente amarrada aos punhos de Cavian, fazendo com que o amigo se aproximasse com alguns passos.
- Rizar?... – parou a mulher miúda com a voz anasalada por um breve momento pensando – Ah, sim, Rizar, aquela pequena criatura vistosa... Vive na casa corada, seguramente muito espaçosa, assim como se espera de um senhor de posses – continuou ela, apontando para um muro policromado e limpo ao longe que só conseguia ser distinguido pela vivacidade de suas cores.
Em seguida, saiu de trás da estrutura de madeira e se dirigiu a Cavian, estendendo o braço em direção ao seu rosto antes de ser impedida por Narthus.
- Não ouse tocá-lo – ameaçou ele puxando Cavian para trás.
- Sem problemas, meu senhor, sem problemas... - respondeu a mulher recolhendo seu braço vagarosamente. - Se pudesse observá-lo com mais detalhes certamente poderia conseguir ofertas mais vantajosas por uma comissão que com certeza o agradaria.
- Tome seu ouro – disse ele jogando uma moeda de ouro em suas mãos de dedos delgados, enquanto a mulher a levou diretamente a sua boca, mordendo-a como um pedaço suculento de carne. Não que duvidasse do homem que não prometera nenhuma recompensa pela informação, mas o ouro era raro por ali, tão raro quanto os bons costumes.
- Muito gentil, meu senhor, fico à disposição caso precise de mais algum serviço – gritou a senhora enquanto Narthus se afastava com expressão indiferente, enquanto a mensageira finalmente se calou com sua recompensa em mãos. Certamente aquela simples informação não valeria tal quantia, mas certamente a manteria distante de outras perguntas que eventualmente viessem a aflorar. Poucos seriam aqueles que confrontariam alguém que esbanjasse tal montante de forma tão displicente, era uma ação exclusiva de pessoas poderosas para qual seria prudente guardar-se em silêncio.
Narthus
Não havia dúvidas de que a imponente residência fosse de alguém dotado de consideráveis recursos. As paredes reluzentes eram todas de pedras polidas e de cores que se moldavam com a luz que as atingia, assim como o chão que brilhava como as pedras de grande valor. No entanto, o ouro que regava aquela indiscutível fortuna era certamente minerado por veios manchados de sangue, como indicava os dois seres com os pescoços acorrentados a uma grossa haste de ferro ao centro do extenso jardim e que o aparavam com surpreendente delicadeza. Um deles era um Orc, seres nômades da era antiga, de pelagem verde e dentes saltados que encontraram abrigo no mórbido deserto de Drazad. Possuía cabelo amarronzado, de aparência relativamente jovem e com as marcas da desobediência marcadas em seu dorso exposto. O segundo, um anão das montanhas cinzas de Reez, provavelmente muito mais velho, ainda que o seu vigor não fosse por ninguém questionado. Dotado de cabelos grisalhos e barba alongada, lançou um olhar ranzinza que Narthus não soube identificar se era intencionalmente um ato hostil ou o semblante padrão dos famosos ferreiros entre as montanhas, ainda que de alguma forma aquela feição fosse muito menos incômoda que os falsos sorrisos de outrora que ainda insistiam em habitar sua mente.
Havia algo errado por ali. Por que alguém que dizia lutar pela liberdade trataria pessoas daquela forma? Por mais que fosse um belo disfarce, não os diferenciava em qualquer grau dos reinos aliados. Defender a liberdade alongando as correntes era como combater a fome depois de se empanturrar em um banquete. Seu coração acelerado acompanhava o receio que crescera em seu coração de que talvez Rizar não fosse quem Gaya realmente pensasse, o que os colocaria na bandeja de julgamento de seus algozes.
Continuou pelo jardim por alguns metros até que chegassem na imensa porta entre os pilares lustrosos que os separavam de seu destino. Puxou a aldrava cobreada e a bateu contra a porta de madeira por três vezes. Não demorou muito até que finalmente a abrissem.
Uma nova servente os recepcionou. Era uma jovem moça de aparência Nateluriana, com a mesma coleira de ferro no pescoço, ainda que estivesse lustrada. Seus cachos castanhos eram da mesma cor que os olhos animalescos dos seres da floresta. Estava bem vestida com um vestido amarelado de detalhes finos que se estendia até o chão.
- Boa tarde, meu senhor, fique à vontade. O mestre já virá recebê-lo – disse, cumprimentando-o e apontando para a sala de espera ao lado da escadaria principal.
Apesar das poltronas acolchoadas e confortáveis até mesmo aos seus olhos, ele permaneceu em pé. Observou os quadros nas paredes com belas obras de arte, ainda que a maioria delas representasse a servidão como forma de devoção aos deuses, um castigo apropriado aos traidores de suas vontades, como um retrato fiel da imagem que presenciara durante todo o trajeto até ali.
Na escadaria apareceu um pequeno ser, vestido com um terno alaranjado e um colete de estampa quadriculada multicolorida. Um monóculo cobria o olho direito de brilho intenso e a cartola azulada os seus cabelos grisalhos, ainda que as orelhas pontudas se destacassem nas laterais. O rosto corado ainda reservava um bigode alongado certamente tratado esmero e que completava a figura exótica e de natureza rara. Rixi certamente o reconheceria se o visse. Os gnomos eram seres reclusos em suas cavernas particulares e habilitavam as fronteiras de Dypsia e Faldram como guardiões em grande parte das memórias, mas também de segredos ocultos só por eles sabidos. Hábeis na magia como as fadas, mas muito mais voláteis que os pequeninos seres. Tão incompreensíveis quanto imprevisíveis, e sempre tratados com certa indiferença pelos demais seres que viviam entre as árvores e flores. Seguramente não era o caso de Rizar. Criara laços junto a nobreza que o mantivera em posição de destaque independente das relações de poder. Poucas criações da deusa das florestas tiveram a mesma sorte.
- A que devo à honra, senhor?... – cumprimentou Rizar olhando para cima e confrontando o olhar de Narthus diretamente.
- Narthus... – respondeu ele com dureza que requeria a situação.
- A que devo a honra, senhor Narthus? – questionou o gnomo não parecendo se importar com o ser acorrentado à sua frente. Mantinha as mãos entrelaçadas atrás de si enquanto ele tentava buscar qualquer traço em sua expressão que pudesse mesmo de longe demonstrar certo incômodo que o pudesse se revelar, ainda que não encontrasse nenhum.
- Venho a negócios, como pode perceber, e minhas referências me disseram que o senhor é o melhor mercador de escravos da região.
- Muito gentis, certamente... Ou exagero eu diria... Não sou o maior deles ou o mais eloquente, mas posso garantir a você que sei domá-los com a maior maestria que encontrará por essas terras – exclamou Rizar estendendo a mão ao lado em direção à servente ao se gabar quando esta se curvou e se retirou.
- Algo que certamente parece ser valioso nesse meio... – elogiou ele contidamente de modo não tão convincente enquanto esfregava a mão direita - Bem, não gostaria de me estender muito, creio que tenho uma mercadoria valiosa que gostaria de comercializar em sigilo – continuou puxando o capuz de Cavian, e revelando sua máscara.
A expressão de surpresa tomou conta finalmente do rosto sorridente do gnomo por um instante, que pareceu não acreditar no que acabara de presenciar.
- Senhor Narthus... – exclamou o gnomo se recompondo desconfortavelmente. - Acredito que seja um tolo ou louco ao achar que eu teria qualquer interesse repentino em seu serviçal... Acredito também que seja novo nesse ramo, já que nunca o vi por aqui... Mas não são exatamente assim que as coisas funcionam. Apesar de parecer bastante saudável, um homem cego provavelmente não pagaria sequer o tempo que perco com essa conversa, se é que me entende – continuou Rizar, novamente o encarando como no início.
- Sei que o conhece, meu senhor... – afirmou ele. – É curioso o poder que o ouro tem de trazer informações confiáveis, não é? Acredito que o utilize da mesma forma, ainda que dificilmente qualquer uma de suas fontes tenha mencionado minha chegada – continuou confiante, como se parecesse importante.
- É provável que as bolsas que entregara pesassem mais que as minhas, meu senhor – brincou Rizar.
- Veja só... Sei que talvez não reverta seu valor em ouro, mas o que me traz aqui é o mesmo motivo pelo qual conseguiu se manter vivo até hoje nos jogos políticos da nobreza. Sei que sabe tirar proveito de sua posição e certamente saberá mais do que qualquer outro encontrar um meio de aproveitá-lo – disse ele, bajulando o anfitrião.
- Hmm... Nisso provavelmente tem razão, mas por que acha que acreditariam que não fui eu mesmo que encomendei sua fuga? Se sou esperto como diz que sou, certamente poderiam pensar que tentaria enganá-los e talvez apenas minimamente pode ser que eu coloque minha confortável posição em risco... talvez seu interesse maior seja achar alguém que eventualmente possa ser insano o suficiente para encontrar algum ganho nessa situação, tendo seu ouro em mãos sem que precise se expor. É bastante provável também que no estado em que se encontra, o príncipe tenha chegado em suas mãos por mero acaso.
- Sua fama o procede... – disse ele fingindo analisar a situação. Se fosse de fato somente um mercador interessado em seus proventos, seria mais fácil que os deixasse ir e os emboscasse fora dali. Assim teria seu reconhecimento sem que gastasse qualquer moeda. Rizar certamente o via como um forasteiro, que apesar do tamanho pereceria como qualquer outro que entrasse ali sem um exército. Se Rizar insistisse na negociação de manter Cavian sob sua guarda era bastante provável que quisesse manter seu paradeiro em segredo, o que seria um indício de que talvez não fosse o homem que dizia ser e ainda que qualquer um pensasse nessas hipóteses, sempre haveria parcela de dúvida para se abrigar. - Veja, sei que acha que não conseguirei qualquer oferta, mas minha proposta é de dez baús de ouro, sem qualquer tipo de negociação... Caso aceite, te entregarei o príncipe e partilharei de sua morada até o amanhecer para que tenha tempo de arranjar os preparativos, caso não, negociarei a mercadoria com outros senhores dessa cidade que certamente encontrarão sua devida serventia – prestou atenção nos valores ofertados nos leilões a céu aberto no caminho e sabia que era um valor alto demais a se pagar em um ativo tão arriscado como Cavian, mas poderia se valer da premissa de se fingir um falso mercador. Era uma quantia significativa, mas nem perto do que ele valeria aos libertos.
- Certo... – pausou Rizar por um instante. - Não sei se conseguiria muito mais com ele, mas como disse... É provável que eu encontre alguma utilidade. Acredito que saiba que se trata de uma quantia considerável...
- Foi outro dos aspectos que limitaram minhas opções, meu senhor, talvez poucas pessoas aqui tenham capacidade de negociar em alto nível.
- Bem astuto de sua parte... Pedirei que ajeite um quarto à você, senhor Narthus, e agradeço pela preferência. Como dizem, um bom nome é o segredo do sucesso nos negócios, não é mesmo? – completou sorridente, enquanto Narthus concluía sua jogada.
Chegou a hora de arriscar.
- Rizar, não menti sobre meu nome, mas na verdade não vim te entregar Cavian e sim pedir sua ajuda – disse ele a Rizar que estava prestes a sair. – Viemos porque Gaya disse que provavelmente poderia nos ajudar – completou ele, observando atentamente a reação do mercador enquanto as batidas de seu coração se aceleravam enquanto abria com as chaves em sua cintura as algemas que prendiam Cavian.
Rizar observou Cavian com perplexidade como se esperasse alguma reação do príncipe, que percebeu o intervalo de silêncio até que finalmente se levantasse da postura curvada que mantivera durante todo tempo.
- O que ele diz é verdade, Rizar... Preciso encontrar Egen, sei que ele fugiu de meu pai e que talvez você seja o único que saiba de seu paradeiro.
Rizar gargalhou copiosamente.
- Achei estivesse fora de si, meu príncipe – exclamou Rizar parecendo entusiasmado. – Que bom que está bem. Mas você sequer tem certeza de quem realmente sou. Arriscar a vida por conta de simples boatos não parece ser muito inteligente, já que se eu não for quem vocês pensam que eu sou, estarão mortos dentro de alguns minutos – ameaçou o gnomo sem se intimidar.
- Não viemos para voltar vivos, meu senhor, e sim para acabar com esse falso reinado – acrescentou Cavian, provavelmente aliviado pelas correntes que já não mais o prendiam. Assim como o amigo, ele também partilhara de certo alívio.
- Ainda que você tenha consciência de que isso possa ser impossível? – questionou Rizar.
- Ainda assim... – respondeu o príncipe sem titubear.
- Pois bem... Não conheço o grande senhor, mas reconheceria esses cabelos azuis em qualquer lugar que os visse – disse o gnomo. - Parece até melhor do que a última vez que o vi, jovem príncipe. Se é esse é realmente seu desejo talvez eu possa ajudá-lo, mas como um bom mercador seria impossível que o fizesse de graça. Tenho um nome a zelar, se é que me entende...
- Imaginava que sim – respondeu Cavian, ainda que ele tivesse dúvidas sobre o atendimento daquele pedido. Provavelmente Cavian diria sim a qualquer demanda que lhe fosse imposta naquele momento. Não havia qualquer outro caminho afinal.
- Apenas uma última coisa – voltou-se o gnomo novamente a ele. - Se é de fato quem diz que é, quais são as flores preferidas de sua deusa, jovem senhor Narthus?
- Jade Vines, meu senhor – respondeu ele sem hesitar, replicando o sussurro de Rixi ao seu ouvido, que por precaução se manteria assim até que não restassem dúvidas sobre os reais objetivos de seu interlocutor. Qualquer elemento surpresa se faria útil em um caso extremo.
- Sem dúvidas que sejam elas! – exclamou Rizar. - Temo que provavelmente sejam as minhas também, apesar de não vê-las já faz um bom tempo – suspirou. - Venham, vou mostrar a vocês algo que vale mais do que a vida de ambos. Siga os sons de meus passos jovem príncipe – continuou Rizar enquanto Cavian provavelmente pensasse em criar um resumo escrito de suas condições mais tarde, assim certamente economizaria tempo em todas as vezes que o perguntassem a respeito.
Acompanharam Rizar por um longo corredor posicionado lateralmente às escadas. No caminho havia várias portas de madeira fechadas, como se inúmeros quartos se multiplicassem por ali. Talvez prisões, ainda que não fossem vistas as grelhas de metal habituais e nem as aberturas nas bases para passagem das refeições. O que era fato era que dificilmente haveria explicação para tantos quartos na casa de um mercador.
Depois de passar por incontáveis delas, Rizar parou diante de uma específica. Não parecia diferente das outras que passaram por seus olhos. Ao invés de chaves, colocou as pequenas mãos em uma das esferas de ferro que alcançara e que corriam pelo espesso batente, quando repentinamente ela se destacara em brilho intenso.
Rizar transpassou pela porta como um corpo etéreo e desapareceu diante de Narthus, assim como Cavian que não hesitou sequer por um segundo antes de também desaparecer.
- Ei, Rixi, do que se trata? – questionou ele.
- Hmm... Provavelmente magia de ilusão... De um nível de complexidade alto. Diria que há grandes chances de que isso seja uma armadilha, veja as...
Cavian voltou por onde acabara de entrar.
- Aconteceu algo? – perguntou Cavian ainda sem explicar a falta de hesitação.
- Tenha cuidado, Cavian, o que viu depois da porta? – questionou ele.
- Que porta? São pessoas, não são? – indagou Cavian.
A pergunta foi como um estalo de consciência para ele. É lógico que Cavian não pudera vê-la, as ilusões não o afetariam de qualquer forma. Talvez seus olhos fossem os melhores guias naquele momento.
- Esqueça... – respondeu ele ao príncipe dragão, pensando nas possibilidades que não fariam qualquer diferença àquela altura.
Narthus finalmente a atravessou e não acreditou no que seus olhos lhe mostraram. Era um campo irregular e extenso que se estendia por vários metros. O gramado fino lembrava de longe o ambiente entre as árvores de copas largas ainda que estas não se apresentassem ali. Era um grande salão iluminado por esferas brilhantes ao teto, que se multiplicavam aleatoriamente acima de suas cabeças. O que chamara a atenção, no entanto, eram seus habitantes. Algumas mães cuidavam de seus filhos, que brincavam com objetos simples de madeira. Todos os demais trabalhavam em galpões sem paredes, em cadeiras confortáveis e mesas lustradas que talvez fossem até mais iluminadas que o próprio exterior. Pareciam, em sua grande maioria, artesãos e alquimistas, ainda que ele não entendesse o que faziam exatamente ali. Ao menos suas mãos e pés estavam livres e seus sorrisos pareciam reais.
- A liberdade é meu segredo, senhores – exclamou Rizar, caminhando em frente. - Sempre me questionam como sou capaz de produzir tanta riqueza, mas é aqui que trabalhamos para quebrar cada vez mais correntes, com todo ouro que podemos produzir com os mais diversos objetos.... Desde esferas luminosas como veem acima de suas cabeças, até choupanas que cabem na palma de suas mãos.
Rixi levantou a cartola para cima e voou para alimentar sua curiosidade. Aquele lugar exalava magia, como a terra em que nascera anos atrás.
- Ora, ora... E eu tentando surpreendê-los... – disse Rizar finalmente parando no meio do gramado.
- Prazer, senhor Rizar, meu nome é Rixi – disse a fada batendo suas asas translúcidas enquanto seus olhos rodeavam o local ainda sem saber no que focar. – Sempre quis conhecê-los, só não imaginei que seria nas atuais condições.
- O prazer é meu, senhorita, inclusive poderia nos ajudar se quisesse, suas mãos seriam muito úteis aqui – respondeu o gnomo.
- Guardarei a proposta para um momento oportuno, meu senhor – respondeu a fada em tom agradecido. - Creio que ainda ficarei de babá desses dois por certo tempo – sussurrou com a pequena mão ao lado da boca para que ninguém a escutasse, ainda que a voz baixa não fosse qualquer desafio aos ouvidos aguçados de seus companheiros, fazendo com que Rizar esboçasse um leve sorriso com as falas confiantes da fada.
- Certo, sem problemas, ficará para uma outra hora – continuou o anfitrião.
- Como manteve tudo isso aqui escondido por tanto tempo? – questionou ele impressionado.
- Com as mesmas armas da nobreza, meu caro – explicou Rizar. - Independente do lugar em que vivemos, esse é um mundo onde sempre se viveu de aparências. Seja pelo mais forte ou pelo mais belo, a maioria das decisões são tomadas mais pelo que aparentamos ser do que por aquilo que realmente somos. Não tenho dúvidas de que me julgara antes, meu jovem. Seu coração hesitou ao tentar atravessar aquela porta e é isso exatamente o que busco. Nos revezamos lá fora para manter os olhos atentos no sonho que gostariam de ver enquanto nos tornamos cada vez maiores. Cresceremos bem debaixo de seus narizes e não saberão de onde viemos. No fim, só lhes restará serem engolidos pela própria soberba – respondeu Rizar observando com olhos orgulhosos tudo que estava diante deles.
- Pelo que vejo, o palpite de Gaya estava certo – comentou Cavian, visivelmente aliviado pelo que acabara de escutar.
- Tinha sempre a impressão que aquela velha jovem senhora sempre soube mais desse mundo do que pode nos contar – respondeu Rizar morosamente pensativo. – Bom, acredito que já foram feitas as devidas apresentações e tenho alguns compromissos irremediáveis agora à tarde, mas os deixarei sob os cuidados de Divio, que chegará aqui em cerca de uma hora – disse o gnomo conferindo o horário em um relógio de mão, com a tampa acobreada entalhada com os ramos da videira em seu entorno. - Enquanto isso, aproveitem a paisagem e observem os trabalhos o quanto quiserem. Estarei de volta pela manhã, assim espero ter tempo de pensar em algo e trazer as respostas que esperam de mim – continuou enquanto caminhava de volta ao portal com seus pequenos e silenciosos passos.
Era com certo alívio que seus corações se acalmaram desde que saíram daquelas florestas e o risco pareceu finalmente ter começado a valer a pena. Narthus sabia que aquele era apenas o início de uma jornada certamente longa, mas que estava cada vez mais convencido de que Persus fora acompanhado novamente pela razão. A essência da natureza é a impermanência, dissera Persus a ele certa vez. Talvez era chegada a hora daquele mundo reencontrar a luz guardada em remotas lembranças.
LÂMINA DA TEMPESTADE
Cavian
Divio finalmente se apresentou, quando as asas pálidas se menearam no ar a cada passo, todos se paralisaram por um breve momento. Era um Lumeriano, assim como Persus, ainda que sua pele fosse levemente esverdeada e lisa como as folhas da fina grama que cobriam seus pés. Usava apenas um saiote branco com uma corda de cânhamo amarrada em sua cintura.
Apesar da surpresa, Cavian se recordou da menção que Persus fizera a outros poucos sobreviventes, o que provavelmente indicava que Divio talvez tivesse conhecido seu efêmero amigo.
- Sejam bem-vindos – cumprimentou Divio cordialmente cumprimentando o trio, que já se encontrava dentro de um dos galpões observando os trabalhos manuais das mãos dançantes que davam vida às criações daquele lugar.
- O senhor deve ser Divio de quem Rizar falou – respondeu Narthus estendendo a mão para cumprimentá-lo.
- Isso mesmo, peço desculpas pela demora, todos temos nossas atividades aqui, a minha momentaneamente é coordenar as equipes que aqui estão e isso acaba levando às vezes mais tempo do que desejamos – justificou-se constrangido.
- Sem problemas, não temos muito o que fazer de fato, a não ser esperar que Rizar retorne – disse ele, voltando a atenção a Divio, ainda que os pequenos artefatos de fato prenderiam a atenção de qualquer um, ainda mais para ele que estivera afastado do mundo por tanto tempo, uma fábrica de bugigangas que certamente teriam ainda mais lugar no mundo sem as facilidades da magia.
- É bom que não tenham, após uma viagem longa como a de vocês é prudente que descansem. Rizar me disse que vieram de longe e acabou me incumbindo de apresentar a vocês o que fazemos aqui, caso não seja um incômodo.
- De forma alguma, meu senhor – respondeu Rixi rapidamente. – Inclusive gostaria de saber por que aquele único lugar é fechado? – disse ela apontando ao único galpão com paredes ao fundo.
- Ah, sim, aquele local é onde estocamos transitoriamente a nossa produção. Após segregação e separação, os produtos são organizados em inúmeras salas ao longo dessa residência e são encaminhados a todos àqueles dispostos a pagar por eles. Essas esferas por exemplo – disse Divio pegando uma esfera que se iluminara assim que tocara sua mão. – São fontes de luz que chamamos de globos de tomásio. Foi a primeira vez que conseguimos confinar a magia por aqui, ou seja, recriamos a ideia das pequenas esferas criadas pelos Aquirianos e expandimos suas possibilidades – Eram como as contas, pensara Cavian, recordando da pacificidade das montanhas que habitaram sua infância - Se o uso da magia depende da vitalidade de seu portador, temos um limite para seu uso, mas com o avanço desses estudos poderemos armazená-la e usá-la em grande escala. Esse é a principal riqueza por trás de nosso trabalho – finalizou o Lumeriano visivelmente orgulhoso.
- Desculpe, meu senhor, mas quanto mais poderosa e mais distante de seu portador, mais instável é a magia, é uma das primeiras regras que aprendemos com nossos mentores – discordou a fada com o ceticismo habitual. – Não quero ser pessimista, mas acho difícil atingirem esse objetivo. Uma coisa é armazenar uma pequena quantidade de vento instável, outra é tentar colocar um elefante em uma gaveta.
- Já conversou sobre magia com um anão, jovem fada? – indagou Divio.
- Nunca tive a oportunidade... Mas pelo que sei teriam dificuldades de utilizá-la, talvez teriam até de entendê-la – respondeu Rixi.
- É esse exatamente o problema. Um erro inconsciente, eu diria... Até mesmo pra nós foi por certo tempo... – disse Divio pensativo. – Quanto mais aprendemos sobre as coisas, mais nos tornamos autossuficientes e assim achamos cada vez mais que o conhecimento do leigo é menos valioso. Assim nossas mentes ficam presas a certos hábitos que nos impedem de analisar certos problemas por novos ângulos. No exemplo anterior disse que os anões talvez não estivessem aptos a entender a magia correto? – questionou novamente, recolocando a esfera em seu lugar.
- Sim, pelo menos imagino que sim – respondeu Rixi.
- Pois então, mas a senhora também não entende quais seriam os segredos que tornariam uma lâmina capaz de cortar barra de ferro, correto? – observou Divio.
- Não faço a mínima ideia, meu senhor – respondeu novamente a fada.
- O que torna as armas das montanhas de Reez tão valiosas, é o conhecimento que aqueles seres ranzinzas têm sobre o processo, dobrando e comprimindo o metal ao ponto de criar estruturas tão pequenas que impedem que haja qualquer brecha em sua estrutura. Logicamente se os anões dominam essa arte, poderiam utilizá-la para suportar pressões muito maiores do que o nosso conhecimento alcançaria, permitindo por exemplo manter a magia estável em estruturas cada vez menores. O conhecimento é um só, pequenina, basta que desfaçamos essas amarras que nos habituamos a criar – terminou o Lumeriano com um sorriso gentil.
Ela assentiu com olhar extasiado.
- Agora entendem, não é? – continuou o Lumeriano. - Passei por isso também. Rizar costuma dizer que quando mais absurda a ideia menos pessoas partilharam de seu tesouro.
- Finalmente entendi a razão dele não ter nos questionado quando revelamos nossas intenções – brincou Narthus, fazendo com que ele assentisse.
A ideia absurda deles poderia não parecer tão absurda na cabeça de Rizar e até daquelas pessoas.
- É um pouco irônico, mas com a prisão constante dos usuários de magia, ela tem se tornado cada vez mais rara e valiosa e isso tem feito com que consigamos libertar cada vez mais prisioneiros – explicou Divio.
- E qual seria a intenção de prendê-los? – perguntou ele interessado.
- Aqueles que não concordam em submeter suas mãos aos interesses dos reinos aliados são consideradas potenciais ameaças. Iadrin foi só o primeiro. Depois dele já perdemos a conta de quantos sumiram, assim como todo o conhecimento estocado nas bibliotecas reais, que recentemente acreditamos estarem sendo armazenadas em Blackhelm.
Ele se lembrou imediatamente do porto em que vira Lis pela última vez. A cidade onde tivera as melhores e piores sensações de sua vida ainda era uma lembrança bastante marcante em sua mente, mesmo com o passar dos anos.
- Se estão os atacando provavelmente acham que esse pode ser o meio para derrotá-los – constatou Narthus.
- É por isso que o que fazemos aqui é controlado e a razão pela qual é tão importante manter nossas aparências. Enquanto pensarem que o que fazemos aqui é gerar entretenimento para os poderosos, todos estarão seguros. É daqui que fazemos os testes para alimentar todas as bases dos libertos também, quase como um centro de pesquisa para derrubar os reinos aliados utilizando seu próprio ouro.
- Rizar não tem medo que descubram vocês? – perguntou ele.
- O medo sempre esteve presente desde que tudo isso começou, meu jovem – respondeu Divio. - Quem poderia desconfiar do descontentamento de alguém que poderia ter seu corpo vendido em partes nas feiras dessa cidade, quando esse mesmo alguém hoje se esbanja em festas de luxo e controla uma das maiores legiões de escravos do reino? Não faria nenhum sentido que Rizar se arriscasse, ainda mais com a relação sempre próxima que teve em relação aos nobres desde antes da ascensão dos reinos aliados.
- De fato, como disfarce era tão perfeito que não tivemos certeza até que tivéssemos visto com nossos próprios olhos – acrescentou Narthus.
- Quem sabe vocês não se juntem a nós? – indagou o Lumeriano. - Rizar não disse de onde vieram e nem quem são, mas alguém que ajuda a nossa causa sempre terá um lugar aqui.
- Muito obrigado, Divio – agradeceu ele. - Essa hora com certeza chegará. Porém, se me permite gostaria de tirar uma última dúvida com o senhor, que acredito que tenha passado na cabeça de todos aqui, mas que ninguém ainda perguntou.
- Sim, claro – respondeu Divio atentamente.
- O senhor chegou a conhecer Persus? – perguntou Cavian sob o olhar atento e curioso de todos.
Divio pela primeira vez recolheu o sorriso que tinha em seu rosto.
- Era um bom homem, meu senhor, talvez um dos melhores que conheci em vida, sua perda recente foi inestimável para todos que tiveram a oportunidade de conhecê-lo. Imagino que seja o caso de vocês.
- Sim... Todos aqui o temos como um grande amigo. Foi reconfortante lembrá-lo de alguma forma. O senhor é um Lumeriano também, correto? – questionou ele.
Divio assentiu.
- Ele havia mencionado alguns poucos sobreviventes, antes de partir – esclareceu Cavian.
- São somente três de nós agora, infelizmente não o suficiente para incomodar quem quer que seja. Só estou aqui porque soube do ataque antes de acontecer. Tentei avisar nosso rei Jamiel, mas infelizmente ele não me deu ouvidos. Na época eu era só um lunático proferindo futuros impossíveis.
- Como soube do ataque, meu senhor? – indagou ele. - Se é que não se incomodaria em responder. É que também busco entender como tudo isso começou.
- De forma alguma – respondeu Divio. - Minha filha... Nuriel, uma Lumeriana como eu, vira o chão ardendo e a queda do trono. Mesmo que difuso, era possível entender que o perigo nos rondava. Ela sempre teve esses sonhos e por mais dispersos que fossem sempre traziam algo sobre tempos que ainda estavam por vir. A única certeza que tenho hoje é que faltou pulso para que eu agisse como deveria. A confiança que o rei e a rainha tinham sobre as proteções de nosso reino foram suficientes para que nem sequer um novo pilar fosse levantado. Foi o suficiente para que dizimassem tudo que havia pela frente. A fé que tinham ruiu junto com a queda da primeira muralha – disse o Lumeriano cabisbaixo inundado por lembranças que certamente nunca conseguiria esquecer.
- Não carregue qualquer culpa, meu senhor – respondeu ele. – Se lhe serve de consolo, convivi com reis minha vida inteira. Acho bem difícil que pudesse forçar qualquer um deles a pensar diferente. Talvez a teimosia seja um pré-requisito para o trono.
Divio sorriu timidamente.
- Talvez, meu jovem, o fato é que Lumeran nunca voltará a existir – disse Divio com olhar distante antes que recobrasse o semblante de outrora. - Mas não se preocupem, devemos nos concentrar no futuro. Inclusive Rizar pediu que eu separasse sacos de dormir para que pudessem descansar a noite. Já estão ali naquele armário – continuou apontando para uma cadeia deles que se enfileiravam na parede ao fundo. – Somente o do senhor que não, senhor Narthus, assim que os costureiros terminarem entregarei ao senhor em mãos.
- Muito obrigado, meu senhor – disse Narthus, parecendo compreender totalmente a situação.
Não costumavam receber seres daquele tamanho ali, ainda que ele não precisasse de qualquer conforto. O frio certamente não seria um problema, mas certamente seria difícil explicar as razões dentro de um ambiente de tamanha hospitalidade. Na pior das hipóteses alguém se beneficiaria de um local espaçoso para dormir quando saíssem dali.
- Não há o que agradecer – respondeu Divio. - De qualquer forma, espero que aproveitem a noite e realmente descansem. Aquele pequeno senhor costuma ser bem preciso com as palavras.
- Fique tranquilo, senhor Divio, cuidarei deles para que não façam qualquer besteira – observou Rixi seriamente.
- Conto com a senhorita – disse Divio enquanto flexionava o tronco com um dos braços cruzado ao peito para agradecê-los, como provavelmente faziam na cidade da luz.
Divio voltou às suas atividades enquanto as luzes do local se esmaeciam como se acompanhassem o caminhar do próprio sol. Não houve contos naquele dia. Tudo que lhes importava era o que Rizar traria no dia de amanhã. Ele prometeu a eles que traria respostas, ainda que não soubessem se eram aquelas que vieram buscar. De qualquer forma, na atual situação dificilmente o senhor de roupas vistosas trouxesse algo que não lhes fosse útil. Não tinham nada até aquele momento e Rizar talvez tenha sido o primeiro trunfo desde que saíram da proteção das florestas.
Cavian
Todos haviam acordado pela manhã, mas diferente dos outros que caminharam às mesas, mantiveram-se debaixo da copa de uma das pequenas árvores que haviam ali. De algum modo, a luz que vinha dos globos conseguia as alimentar, ainda que as folhas amareladas e pálidas indicassem que nada poderia substituir o astro que reinava acima da superfície. Não entendiam os detalhes, mas também não era algo que merecia a atenção deles naquele momento. Rixi pôde dormir como usualmente fazia nas florestas e isso era muito mais do que o suficiente para uma boa noite de sono. Enquanto isso, Cavian e Narthus se escoravam em seu tronco até a chegada de Rizar, que atravessou o portal logo em seguida, no mesmo estilo que no dia anterior, ainda que o quadriculado do colete daquele dia tivesse sido substituído por um tom liso e avermelhado e carregasse amarrado em sua cintura um bastão de madeira fino, pouco menor do que o próprio gnomo.
Rizar carregava com ele uma sacola de couro que despejou ao chão assim que chegou a eles. Estava repleta de barras amareladas e retangulares, que se empilharam como gravetos, sem qualquer indicação que pudesse revelar sua origem, ainda que tivessem o mesmo aspecto daquelas ao longe servidas nas mesas.
- Peço desculpas pelo que temos para comer, meus amigos, mas por mais que eu tenha condição de alimentar a todos com comida decente, as suspeitas se levantariam assim como o cheiro que espalhariam no ar... – disse Rizar se sentando e abocanhando uma delas sem qualquer hesitação. - Não se preocupem... São tavassas, já tratadas logicamente, mas é a comida que dão aos escravos por aqui... Apesar de ser feita de restos da nobreza, podem sustentar tanto quanto uma bela refeição.
As rações originais eram bem menos convidativas. Os sorrisos dados a outrora não eram em vão. O líquido amarelado forjado das papoulas negras Qualinianas pelas hábeis mãos dos alquimistas a serviços dos reinos aliados e misturado aos restos de seus senhores, era a única ração que lhes era servida, a mesma que as mantinha suas carcaças conectadas àquele mundo ainda que suas mentes ficassem cada vez mais distantes. Era o que gerava a tão temida fome. No início, muitos a confundiam com a fome física com as quais já costumavam conviver nos velhos e novos tempos. Mas depois de algum tempo a agitação social finalmente cedera. Os restos de tronco já digeridos pelos cupins, os insetos e roedores cada vez mais frequentes, tudo havia se esgotado antes da humanidade que habitava os desgostosos corações finalmente se esvair. Quanto mais sorrisos, mais barras, até que os animais de estimação nos novos tempos se tornassem outros, cães que nunca desobedeciam e extensões dos desejos mais obscuros de seus donos, balbuciavam pedaços de palavras que provavelmente sequer significavam algo, seres sem alma batizados pelos elfos da noite de Arshakens.
- Muito obrigado, Rizar – agradeceu Cavian dando um sorriso gentil e tateando o chão para pegar uma delas, enquanto Narthus já havia se apossado do punhado que conseguira agarrar em suas mãos.
Não seria qualquer problema para qualquer um deles, já haviam experimentado em menor ou maior grau dificuldades maiores do que se alimentar de restos.
- As crianças sempre imaginam um bom e suculento pedaço de carne, mas a escolha fica a critério de cada um de vocês – revelou o gnomo rindo e se levantando. – Vamos ao que interessa, não é mesmo? Continue sentado, jovem Cavian – disse a pequena criatura esfregando as palmas das mãos rapidamente uma sobre a outra para limpá-las e retirando da cintura o bastão que carregada consigo. Levou a ponta do objeto até a nuca de Cavian, que inclinou a cabeça acompanhando os movimentos da mão de Rizar, que segurava o monóculo com a outra mão rigidamente, como se procurasse por respostas. – Hmm... Interessante... – pausou por outro instante. - Bom... Minhas fontes disseram que o autor dessa máscara de ferro em sua cabeça é mesmo Splenze e nesse caso é praticamente impossível que eu consiga retirá-la, já que nem mesmo os Natelurianos ousaram fazê-lo.
- Rizar, por mais que pareça, minha principal preocupação não é a visão, já que consegui contorná-la de outra forma. O problema é isso – disse ele, deixando que a corrente fluísse por seu corpo e as marcas transparecessem em seu braço esquerdo momentaneamente. – Toda a eletricidade que utilizo é drenada pela máscara e quando o metal se aquece tenho poucos minutos antes de finalmente perder a consciência.
- Força em fraqueza, um clássico... – disse Rizar, que parecia, por um momento, admirar de alguma forma o trabalho feito. - Splenze o estudou detalhadamente, meu garoto, assim como faz com todas as suas cobaias. O metal que veste em seu rosto é uma liga de Trilium de qualidade que vi raríssimas vezes diante de meus olhos, valiosíssima e com certeza encomendada e paga por alguém com muito poder como seu pai.... Mas receio que já estivesse ciente dessa última informação.
Ele assentiu, indiferente em relação à situação. Sabia que tal obra tinha o dedo de seu pai, ainda que não entendesse as razões e nem quisesse.
- Sou um usuário das artes místicas, meu caro príncipe – disse Rizar. - Não como o rei brilhante que já habitou essas terras, mas com a habilidade de distorcer a realidade ao ponto de torná-la tão real que nem mesmo olhos atentos possam questioná-la – respondeu o gnomo, criando um pequeno pássaro em suas mãos e o soprando logo em seguida fazendo com que desaparecesse. - Posso também não ser um exímio cientista como Splenze, mas talvez eu tenha o conhecimento necessário para ajudá-lo além do paradeiro do mestre Egen.
- Sou todo ouvidos, meu senhor – respondeu ele.
- Falamos de um bem muito mais antigo que seu próprio nascimento, meu jovem – continuou o gnomo. – Criado ironicamente pelos adversários mais letais dos dragões e que foi carregada por décadas pelas mãos dos senhores das tempestades. Era conhecida como a pacificadora de tormentas e quase levou consigo a honra dos incontestáveis dragões antes de ser parada pelas mãos de Ramiak, de quem certamente ouviu falar.
- Sabemos bem pouco das histórias dos velhos dragões, meu senhor – revelou Cavian. - Meu pai não costumava tocar no assunto e nem mesmo as páginas frias dos livros que tínhamos acesso falavam sobre a era antiga. Minhas poucas referências de suas existências se encontram nas estátuas que residem no jardim central do castelo.
- Hmm... Interessante... Entendível, talvez – disse Rizar pensativo. - Não deve ter sido fácil ver seu povo sendo extinto, meu jovem, mesmo que tenha sido fruto da autossuficiência que sempre fizeram questão de ostentar. De qualquer forma, Ramiak talvez foi aquele que chegou o mais perto do poder de seu pai, e herdou, assim como você e destes seres que mencionei, o dom de domar as tempestades.
- Esses seres que mencionou, há algum deles com quem possamos falar? Talvez se explicássemos minhas razões... Bem, talvez nos apoiassem para lutar contra meu pai – disse ele esperançoso.
Rizar gargalhou.
- Teria sua cabeça arrancada antes que abrisse sua boca, meu jovem – observou Rizar. - Não tinham muito mais coração que os dragões originários. Não se engane achando que poderia convencê-los. Seria impossível, mesmo que os dragões não tivessem se certificado de que todos habitassem o plano dos deuses, como fizeram.
- Entendo, nada que surpreenda vindo de meu pai ou de Tiamat – constatou ele, pensando em quantas coisas mais descobriria.
- Mas não julgue qualquer ação da era antiga, meu jovem – repreendeu Rizar. - Eram tempos de guerra assim como o que vivemos agora, demonstrar piedade a um inimigo em muitos casos seria promover sua própria ruína. Por sorte, objetos como esses transcendem as eras e por outra sorte sei em que mãos estão guardadas.
- Tenho dúvidas de como isso poderá me ajudar, ainda que por suas histórias seja um objeto de grande poder – disse ele.
- Confie em mim, certamente saberá assim que a tiver em mãos – disse Rizar. - Mas o principal ponto não é isso. Como disse anteriormente, sou um negociador e mesmo entre os libertos temos nossas diferenças. É bem provável que sua vida possua bastante valor, meu príncipe, e sei que o poder que emana de suas veias é precioso para a guerra que lutamos. Mas por mais que alguns achem que podemos prepará-lo para o que está por vir, entendo que não há testes melhores que as provações do mundo real... Dessa forma, o que proponho é uma troca de favores. Ajudarei você a recuperar a lâmina que provavelmente romperá com as limitações que hoje possui antes da próxima lua vermelha e assim poderão fazer um pequeno favor pra mim em retribuição, o que acham?
- E como isso pode me levar a Egen, meu senhor? – indagou ele curioso.
- Egen está no reino das águas, jovem príncipe – afirmou Rizar. - Como acredito que já saibam, o que não sabem é que provavelmente só um homem possui os mapas que talvez os levem até lá. Os reinos aliados têm mapeado possíveis brechas na defesa de Darkwaters ao longo dos anos de modo a permitir um ataque. Provavelmente o que eles têm em mão hoje não seria o suficiente para a entrada de um exército, mas com certeza comportaria um grupo pequeno como o de vocês. A questão é que enfrentar os lacaios de Shasak em seu próprio território na situação que está seria certamente suicídio. O que vamos fazer é apenas aumentar essas probabilidades, ainda que tudo isso ainda dependa de vocês.
- E o que teríamos que fazer em troca? – indagou Cavian novamente.
- Algo que não poderia me arriscar fazendo – revelou o gnomo. - Não porque seja difícil, tenho todas as informações necessárias para uma fuga segura, mas porque, se por alguma razão conseguirem me associar ao ocorrido, todos aqui estariam mortos no outro dia.
- Que seria?
- A filha de Divio hoje se encontra nas mãos de Splenze – disse Rizar seriamente. – E provavelmente se mantenha viva até que retornemos. É uma menina extraordinária, com um poder perigoso caso consigam utilizá-lo. Precisava que vocês a resgatassem. Divio insistiu em fazê-lo, mas ele também sabe que sem os meios corretos, mesmo que tentasse sozinho, só faria com que a eliminassem ou a levassem para o lugar onde você esteve, jovem príncipe. É um homem que sempre empunhou livros em mãos e não armas, apesar de sabermos até onde iria um pai que não tivesse outra saída. Já tentei explicar a situação às demais lideranças, mas a comunicação anda difícil e morosa, e talvez o tempo que precisarão não seja o mesmo que eu tenha para resolver essa situação.
- Poderíamos fazer isso sem qualquer contrapartida, meu senhor – interrompeu Narthus.
- Não seria justo... Nem prudente – disse Rizar. - As coisas devem ser como são e apesar de encararmos os riscos é sempre inteligente que consigamos minimizá-los. Em ambos os casos os riscos são mínimos se seguirem exatamente o que planejo pra vocês.
- Acredito que não haja problemas de nossa parte, certo, pessoal? – disse ele se dirigindo aos companheiros de jornada.
- Nenhum de minha parte – disse Narthus.
- Nem da minha – respondeu Rixi.
- Ótimo – disse Rizar entusiasmado. – Bom, ainda tenho algumas dúvidas. Rixi permanecerá aqui com Divio. Não tenho como justificar sua existência no cenário em que nos encontraremos. Já você, meu caro Narthus... Temo que será perfeito. O quão forte você realmente é?
- Alguém que consegue confrontar até os novos deuses, meu senhor – disse Rixi enquanto Narthus a olhava com descrença.
- Não sei exatamente do que precisa, meu senhor – respondeu Narthus. - Mas Rixi com certeza exagera em suas falas. O que posso dizer é que carrego comigo o sangue dos povos do reino cinza.
- Hmm... Interessante, meu jovem – disse Rizar. - Com certeza imaginei que seus traços remetessem àquelas terras, mas nunca havia visto um híbrido, certamente formidável – disse ele ajeitando o monóculo. – Creio que será mais útil até mesmo que o jovem príncipe no que está por vir. Pode lutar, meu rapaz?
- Somente se necessário, meu senhor – Revelou o gigante
- Certamente será – afirmou Rizar sorrindo. – Bom, então é isso, partiremos amanhã antes que o sol nasça para Javelin e poderão ver com seus próprios olhos o que os reinos aliados fizeram com as ruínas reluzentes do reino da luz.
Cavian tinha consciência que caminhavam rumo ao incerto. Até mesmo Rizar não era claro em suas motivações. Teriam que lutar pelo que disse, ainda que não demonstrasse que isso fosse uma preocupação. Era um senhor calmo demais, confiante demais em suas ações, do mesmo modo que Divio alertara sobre os reis. Seria uma doença ou mesmo um pré-requisito do poder? Nunca o tivera em mãos, uma pergunta que certamente não teria como responder.
O PÃO E O CIRCO ENTRE AS RUÍNAS DA LUZ
Cavian
A carroça que saíra de Tessan tinha dois vagões, o primeiro luxuoso com cortinas azuis que blindavam as janelas do sol escaldante, e o segundo que era caixa de madeira escurecida com uma porta ao fundo que ostentava uma pequena grade, um caminho único onde os raios de sol e os ventos que sopravam se digladiavam para adentrar. Eram seis Bívios no total, como os que os carregaram pelas florestas, animais de estrutura forte, mais resistentes a viagens longas do que os cavalos, ainda que mais lentos. Um trabalho que antigamente era feito em sua maioria pelas caixas mecânicas de sopro esfumaçado, condenadas pelo tratado e pela nova era. A tecnologia fora, sem dúvida, algo que havia dado aos humanos uma posição de destaque em meio aos seres mágicos que quebravam as barreiras do tempo.
A pólvora e os óleos que davam vida aos cavalos de ferro eram, naqueles tempos, ainda mais raros do que o próprio ouro. O perigo não vinha mais do fogo, mas a união entre o ferro e magia, que passaram a moldar novas formas de poder, tão pujante quanto o próprio dom da criação. De qualquer forma, velho ou novo, todo conhecimento estava sob a tutela dos reinos aliados agora. Ao menos todo aquele cujos donos quiseram seus pescoços fora das lâminas afiadas e brilhantes dos soldados que lutavam pela tão venerada paz.
Os bancos duros de madeira que trepidavam nas estradas de solo maciço durante os longos dias de viagem incomodavam menos do que o ferro gelado que insistia a voltar em seus pulsos como um carma que o acompanhava como um fiel amigo. Se fosse o destino provavelmente estaria tentando dizer que a única forma de avançar era se desfazendo de traumas antigos, sejam eles gerados pelas masmorras frias de outrora ou pelo coração impassível de seu próprio pai.
O que faltava em conforto sobrava em barras pouco apetitosas. Estavam longe das refeições acalentadoras das florestas, mas eram muito melhores que os dias que passara com seu corpo implorando por qualquer resto que passasse em sua frente. Rizar os explicara que as barras dadas aos abnegados, o nome que os mestres davam aos seus pertences vivos, eram embebidos de uma droga obtida das flores enegrecidas dos elfos da noite, o que fazia com que se tornassem tão obedientes quanto animais domésticos. Nenhum limite era respeitado, o que o levara a crer que nenhum castigo parecesse ser alto demais para os donos daquelas correntes.
A armadura leve de detalhes metálicos deixava somente as mãos expostas, assim como o elmo que carregava em sua face de fios devidamente aparados para que escondessem suas origens. Era longo e grande o suficiente para que cobrisse sua máscara, com dois curtos chifres laterais que se estendiam à frente como presas ao ataque. Ao todo, seis furos uniformemente distribuídos ao lado de cada fronte, ainda que o ferro espesso impedisse com que a luz revelasse seu interior. Poderia certamente se passar por um guerreiro do reino cinza ou por um andarilho das florestas, desde que ninguém lhe acertasse. As presilhas que uniam o elmo às ombreiras, apesar de firmes, também tinham seus limites e um golpe bem dado no local certo poderia colocar a cabeça de todos ali como oferenda aos seus algozes.
Já Narthus utilizava como proteção somente um elmo com uma linha de cerdas escovadas que corriam da testa à nuca como uma lustrosa crina dourada. A pele descendente das montanhas acinzentadas era o suficiente para protegê-lo. Já haviam se passado quase vinte anos, dificilmente o associariam à criança assustada que fugira aquele dia. De qualquer forma, Rizar se certificara com que seus olhos momentaneamente adquirissem tons arroxeados. O tamanho de seu corpo poderia não ser muito padrão, mas mestiços eram mestiços de qualquer forma e ninguém ligaria de onde vieram, afinal, para eles, eram somente tentativas imperfeitas de se igualar à nobreza. Não seria incomum se produtos defeituosos se tornassem escravos aos olhos dos autoproclamados novos deuses.
- Ei, Cavian – disse Narthus sussurrando como se alguém pudesse os ouvir. Estava sentado no banco de madeira maciça do outro lado da carroça, que a cruzava de ponta a ponta, ainda que a distância entre os dois não passasse de alguns pés.
- Sim?... – respondeu ele apoiando os cotovelos sobre os joelhos, enquanto suas mãos entrelaçadas balançavam com o chacoalhar do assento.
- Acha que teremos chance no desafio que Rizar irá nos levar? – questionou Narthus. – Digo... Não seria arriscar demais por algo que talvez não seja tão relevante.
- É o que penso também, mas ele garantiu que isso encurtaria nosso caminho, Narthus, e se pensarmos bem ele também está se arriscando vindo conosco, não acha?
- Faz algum sentido, ainda que eu ache que falte clareza em nossas decisões e que isso quase sempre nunca seja bom. Mesmo que eu tente te defender até acharmos um jeito de tirarmos essa coisa da sua cabeça, eu preferiria que a gente evitasse qualquer situação difícil, entende? – revelou Narthus preocupado.
Cavian esboçara um sorriso.
- Não se preocupe, meu amigo, nem sempre poderá estar presente por mim, mas de qualquer forma agradeço. Ainda fico meio aturdido quando penso que decidiram vir comigo – respondeu ele, pensando que Narthus tinha razão ainda que provavelmente nem ele visse outra saída a não ser confiar em Rizar naquele momento.
- Persus deu sua vida para que vivesse. Não lembro dele ter errado em qualquer uma de suas decisões... Então, de certa forma, eu pelo menos achei que valeria a pena arriscar – disse o gigante. – Veja, apesar de minhas crenças, ainda existem chances de que Faldram pereça... Sei que Gaya sabe disso, mas existindo qualquer chance de fazer com que isso não aconteça, gostaria de tentar – pausou ele, pensativo. – Mesmo que o medo me visite às vezes, mais inclusive do que eu desejasse... Não gostaria de passar a minha vida inteira me perguntando porque deixei tudo passar diante de mim. Sendo minha passagem curta ou longa, terei a oportunidade de, assim como ele, ter cumprido a missão que os deuses reservaram a mim.
- O descreveu com um homem de fé inabalável certa vez, talvez seja nisso em que vocês mais se parecem, sabia? – disse ele. – Conversar com vocês é como resgatar um pouco da esperança que já tive um dia, como se as coisas fossem de fato melhorar... Uma que não quero de maneira nenhuma decepcionar. Inclusive por conta disso venho me perguntando se chegar a Lis é de fato algo que realmente importe para o futuro que digo buscar ou se é somente uma desculpa para satisfazer as vontades que sempre habitaram em mim desde que sai daquele lugar.
- E em qual conclusão chegou? – indagou Narthus.
- Em nenhuma ainda, infelizmente, por mais que eu reflita, a resposta ainda não é tão clara pra mim... A única coisa que tenho certeza é que pelo que conheço tanto de Egen como dela, é que não esperariam esse tempo todo no fundo do mar sem agir. Independentemente do que eu sinta, não há dúvidas que seriam aliados valiosos e que com certeza devem ter construído uma boa relação com os povos do mar a essa altura. Pense, Narthus, não sei quantos são os libertos hoje, mas se juntarmos as forças deles, dos Aquamarinus e dos Natelurianos, é bem provável que alcancemos um grupo capaz ao menos de incomodá-los. Não parece muito distante pra mim – disse ele enquanto percebia algum resquício do ele próprio havia sido um dia enquanto falava.
- Não há dúvidas de que seria uma reunião extraordinária, meu amigo, mas ainda tenho dúvidas se será o suficiente – explicou o gigante. - Os reinos aliados não são como algozes para todos Cavian. Em um dia tinham a liberdade e um prato vazio diante de si, no outro para enchê-lo bastaria que se curvassem. Ao meu ver, parece ser um preço pequeno demais por algo que pra eles nunca de fato tiveram. É por isso que não se rebelaram antes, é por isso que muitos aceitam a situação que observou dias atrás, ou seja, independente de nossas ações, o problema é muito mais complexo do que realmente parece.
- Do jeito que fala, faz parecer que não temos uma saída – retrucou ele, voltando ao semblante desesperançoso.
- Se estou aqui é porque acredito no que vamos fazer. Acredito que os deuses tenham um plano para nós. Foi por isso que você viveu aquele dia... Foi por isso que Persus partiu. Talvez não acredite, mas para mim são todos sinais de que a vontade divina é que ilumina nossos passos.
- Acha que eles têm o poder de controlar nossos destinos ainda? – questionou ele, cético.
- Pelo contrário, e é exatamente por isso que temo – respondeu Narthus. - O poder do livre arbítrio nos foi dado por eles, a questão é se saberemos tomar as decisões corretas quando as escolhas chegarem às nossas mãos.
- Bom, nesse caso, mesmo que não sejamos sábios o suficiente, ainda acho que é melhor do que esperarmos um milagre vindo dos céus, meu amigo – concluiu ele enquanto Narthus assentiu.
A noite finalmente chegou enquanto Narthus se ajoelhava no chão de ripas amadeiradas e ele olhava em direção à janela. Sentia onde estava. O metal e os seres vivos eram pra ele como pequenas tochas que se iluminavam ao seu redor. Certamente Narthus se virara em direção à Faldram. Pelo que sabia nunca saíra da floresta depois de ter partido das montanhas e talvez suas preces o levassem de volta pra lá. Era um leigo sobre os hábitos sagrados e seus costumes, a devoção à Iscalon, o deus acima das nuvens, e aos velhos deuses era papel dos Aquirianos, não dos originários como seu pai sempre lhe alertara, ainda que soubesse que sua mãe encaminhara suas preces escondida entre as brumas. Independente de homens ou deuses, ele escolhera trilhar seu próprio caminho onde só o tempo teria o poder de lhe trazer as respostas que tanto buscava.
Cavian
Pela manhã, as árvores pela pequena janela foram substituídas pelas paredes de pedras alaranjadas e robustas, certamente provenientes das estruturas rochosas a oeste. Narthus provavelmente saberia distingui-las ainda que não parecesse tão entusiasmado a observar pelas frestas estreitas entre as barras da única abertura pela porta. As cortinas carmesins penduradas entre as hastes que saiam do topo das paredes brilhavam intensamente com os raios de sol que as atacavam com retidão. Era uma cidade cuidadosamente planejada, fruto de seu desenho sobre uma tela em branco. Era como se estivessem em um corredor infinito, onde as paisagens se repetiam conforme avançavam, até que finalmente as construções cresceram de tamanho e em detalhes, paredes com placas lisas de ferro polidas enfeitavam as paredes que se estendiam acima do que a pequena abertura conseguia revelar.
Entre as gravuras entalhadas nas paredes, uma delas provavelmente chamaria a atenção. Uma estrela cadente passando por uma árvore alta. Diferente dos outros que se apresentaram, não parecia um símbolo que trouxesse qualquer temor, ainda que fosse de conhecimento de todos que qualquer poder na arena se esvairia junto com a primeira gota de sangue derramado. Rizar lhes contara, antes de partirem, que se tratava de um torneio. Quase impossível para maioria, talvez não tão difícil para eles. Pelo menos o mercador tentaria se certificar disso. Um fato era inegável, os adversários que desafiariam certamente seriam menos poderosos que qualquer um dos generais dos reinos aliados. Como Cavian já havia dito a Narthus uma vez, caso estes fossem um obstáculo para eles, qualquer esperança estaria perdida. Apesar disso, não se tratava de uma tarefa simples e a sutileza importaria tanto quanto o resultado em si.
Rizar escolheu a dedo o adversário que enfrentariam em busca da glória final. Experiente o suficiente para um adversário que trouxesse a confiança dos apostadores, mas também velho o suficiente para que suas pernas não se movessem tão depressa como os demais. Orofos era perigoso de fato, mas talvez o menor entre os temores daquele espetaculoso circo a céu aberto que abrigava desde titãs renegados a dançarinos das lâminas.
Narthus não parecera curioso, aliás, para ele, quanto menos tempo ficassem ali, melhor. Não lhe agradara o fato de ter que confrontar alguém por mera diversão. Foi por isso que fugira das montanhas, mas um homem de princípios não poderia agir em desfavor de seus próprios conselhos, e como orientara Cavian a enfrentar seus medos, ele também deveria enfrentar os seus, era justo não agir de outra forma.
O coliseu ao centro de Javelin, era chamado de o fosso da ascensão. Tão colossal quanto o espetáculo que abrigava a estrutura de paredes retas parecia tentar tocar ao céu. Em sua volta esculturas de corpos imensos formavam seus pilares, algumas já com os rostos estampados de seus campeões. A cada ano os melhores batalhavam pelo título e quatro se passaram desde então. As finais aconteceriam ao final dos doze Munírios de cada ano e eram regadas por vinho e sangue. Eram onde eram feitas as oferendas aos deuses e quando a única regra estabelecida era de enviar os derrotados ao encontro deles. A última cabeça ainda pendurada ao pescoço na ocasião estamparia as estátuas que cercavam o solo das batalhas e as páginas da história.
A carroça finalmente parou e poucos minutos depois a porta se abriu. Rizar havia feito recomendações óbvias para que não conversassem entre si até a volta. Escravos eram escravos afinal, poucos tinham o privilégio de falar com seus donos e aquele seguramente não era o caso. O chão sob seus pés era coberto de pedras que reluziam como ouro e qualquer um que as olhasse não teria dúvidas de que se tratavam de ruínas do reino da luz. Uma mensagem que traria dor a poucos corações naquele momento, já que a maioria estavam enterrados sob aquelas pedras. A única coisa que permanecera foi o templo da antiga deusa Amber, tão imponente quando a arena que se ergueu em sua fronte. Era como se o templo passasse a abençoar o renascimento da cidade, que se erguera pelas mãos tortas daqueles que a levaram ao chão.
O servente que puxava a carroça era um falso escravo como eles, ainda que de um posto maior. Cavian sentiu uma sensação estranha, um frio na espinha que quase o paralisara por um instante. O perfume de jasmim entorpecera sua mente, quando a voz confirmou o que seus instintos insistentemente tentaram o alertar.
- Rizar, a que devo a honra de sua presença? – disse a voz feminina.
É ela, pensou ele, fechando o punho de dedos timidamente trêmulos.
- Minha querida Ravel – exclamou o gnomo tomando a mão da anfitriã e se erguendo na ponta dos pés para beijá-la. – Um homem sem poder usufruir de suas riquezas é tão inútil quando qualquer miserável com todo o tempo do mundo – concluiu com a voz serena.
- Sempre sábio, meu senhor.
- Ainda que essa sabedoria não chegue aos pés de sua beleza, minha senhora – galanteou Rizar, arrancando um pequeno sorriso da regente local.
- Parece que até trouxe suas próprias oferendas – observou Ravel, fazendo com que seus olhos os varressem por alguns segundos.
- Imagino que saiba melhor do que ninguém o que podem fazer por um pouco de luxo – sussurrou Rizar à Ravel, encarando-a com os olhos interessados.
Ravel riu.
- Parecem belos produtos – disse ela, dirigindo o olhar principalmente a Narthus. - Ainda que eu ache difícil que passem da primeira etapa.
- Não teria vindo pessoalmente se não fosse para me certificar que meu ouro seja entregue, minha senhora. Não sou intitulado como rei dos escravos de Tessan por um mero acaso. Inclusive trouxe alguns itens de lá que a deixariam extasiada – dirigiu o olhar ao condutor de outrora, que entendeu o sinal e se deslocou rapidamente à porta do primeiro vagão, abrindo-a logo em seguida.
Quatro homens desceram dele, ostentando armaduras lustrosas e carregando um imenso baú de pedras entalhadas, tão coloridas quanto o próprio arco-íris, que se distribuíam pelas bordas laterais com a maestria que poucos artesãos se permitiriam usufruir. Este foi depositado ao lado de Rizar, que puxou a tampa, revelando seu interior. Eram artefatos de todas cores e tamanhos, com toda riqueza e a magia que somente o maior rei de escravos de Tessan poderia proporcionar.
- Tenho que revelar minha surpresa, meu senhor... – Disse Ravel - Não imaginava tamanho apetite dada a inexperiência no ramo. Talvez não seja tão sábio quanto imaginei que fosse – brincou a anfitriã.
- E talvez eu fique desconfortável em garantir meus ganhos... - rebateu Rizar sorridente - Podem acabar procurando explicações em meu sucesso que retirariam a credibilidade desse magnífico evento, mesmo que isso aconteça contra a minha vontade.
- Ah, meu caro Rizar... – disse Ravel visivelmente confortável com as palavras. – Poderia aconselhá-lo que seria bastante improvável, mas não há dúvidas de que podemos cobrir sua generosa oferta.
- Tenho certeza que sim! – disse Rizar com o mesmo sorriso calmo que o acompanhara até então.
- Me acompanhe, por favor – convidou Ravel, cruzando uma dupla de guardas de lanças empunhadas que guardavam o corredor que dava acesso ao portão principal.
- Com todo o prazer – respondeu o gnomo.
Rizar partiu a acompanhando enquanto o carroceiro se dirigiu aos dois e os guardas voltaram ao vagão de onde tinham saído. A mesma mulher que fizera com que passasse anos naquela masmorra estava diante dele, mas não era o sentimento de vingança que tomara seu coração. Por trás daquele elmo e daquelas máscaras era como se sentisse as mãos geladas tocando seu cérebro, e sua mente parecia estar submersa em um vazio profundo, um mar extenso do mais completo nada. Quando tive a permissão para sair de lá? Se eu não voltar logo mamãe e Yuki morrerão novamente, pensara ele enquanto o sentimento de culpa puxara seu peito ao chão como uma âncora dos robustos navios. Não fosse o puxar das correntes, seria improvável que seu corpo se mexesse por si só.
- Ei, Cavian, está tudo bem? – sussurrou Narthus ao sentir sua resistência a sair dali.
Cavian assentiu com a cabeça, quando finalmente o seguiu.
Sabiam que aguardariam na cela dos desafiantes. A cada rodada, dois deles eram escolhidos em meio às apostas vigorosas. Cavian perdeu Narthus de vista. Havia sido conduzido a um local diferente de onde estava, ainda que não entendesse as razões.
As muralhas abrigavam arquibancadas que se espalhavam como grandes anéis, mas o luxo era uma dádiva partilhada somente pelos detentores do poder em um camarote que se fundia às paredes da arena. As poltronas confortáveis ao olhar se estendiam em fileiras e abrigavam algumas das nobres personalidades daquele novo mundo, muitos deles de ascendência recente buscando se destacar na corrida pelas melhores influências.
De uma cela para outra, Cavian tentava desesperadamente manter seus pensamentos como um grande e calmo lago, por mais que as pedras insistissem em atingir sua superfície. Sentado sobre o chão com as costas apoiada sobre as barras, qualquer um que o visse certamente atribuiria o corpo balançante e ansioso aos gritos que ressoavam entre aquelas paredes. Não eram todos tão treinados como pareciam, e suas vidas, caso ajoelhassem perante a multidão, estariam em mãos desconhecidas, assim como uma moeda jogada ao vento.
Ele não conseguia sentir a presença da multidão, mas ouvia suas vozes em uníssono. Fazia tempo que não lutava contra alguém. Lembrou-se das vezes que desafiara Yuki, ainda que não tivesse tido sucesso em qualquer uma delas. Sempre esteve longe de ser um herdeiro exemplar como sua irmã e ainda assim garantiu que a sua situação se tornasse ainda pior, para ela e para todo o reino. Não que devesse algo aos demais, nunca recebeu apoio de qualquer um deles. Entendível talvez pela necessidade de alguém que representasse o poder que o trono de Aquia sempre transpirou, o que certamente não era seu caso, mas havia formas e formas de se chegar aos mesmos resultados. Até poderia concordar com o fim, mas nunca com a forma.
Na balança da justiça talvez não tivesse qualquer obrigação junto aos Aquirianos, mas não se tratava só de justiça, sabia disso. Foram tantas vezes que Yuki tentara alertá-lo, ainda que achasse na época que sua visão talvez fosse distorcida por meio das injustiças que a atingiram. Desconfiara logo de Yuki, que talvez herdara uma das poucas qualidades de seu pai, a capacidade de analisar os fatos pela lente da razão. Talvez a clareza que sempre faltara em seus pensamentos, a que faltara na decisão que tomara anos atrás. Os pensamentos que vagavam foram dispersados com o soar do gongo.
Não fora chamado na primeira batalha, nem na próxima, até que o portão novamente se abrira.
- Ei... Ei... Você mesmo, imbecil – disse uma voz que se aproximara dele, jogando um escudo e uma espada em sua direção. Cavian conseguiu senti-los antes que chegassem até ele e os segurou no ar firmemente em suas mãos. O Escudo arredondado fora certamente forjado dias atrás ou polido até que as mãos dos ferreiros se cansassem. Pelo menos era o que sua mão lhe dizia, enquanto seus dedos deslizavam sem qualquer atrito pela superfície em busca de brechas. Não havia sido utilizado antes, assim como a espada curta de cabo em couro trançado que agora empunhava em suas mãos. – Seu dono mandou isso, aproveite e morra rápido, seria um desperdício estragar uma boa lâmina como essa – completou o anunciante, enquanto ele finalmente se levantava.
Cavian se manteve calado, amarrando o cinto de couro da bainha em sua cintura e empunhando o escudo em seu braço esquerdo. Acreditava que seria suficiente para o início reservado aos guerreiros de baixa reputação.
Deveria se guiar pelo som, ninguém deveria saber que estava privado de sua visão. Saber onde estava o portão já o ajudava de certa forma. Eram pequenos sinais que buscavam, alertara Rizar por mais de uma vez. Estavam sob olhos perspicazes que não deixariam passar qualquer pequeno indício incomum. Se acabassem com seus oponentes cedo demais, chamariam a atenção que não deveriam, mas se apresentassem dificuldades contra os menos experientes, sua vitória ao fim despertaria ainda mais desconfiança. Anos sem manejar uma lâmina. Se arrependera de não ter relembrado enquanto pode.
Seguiu o homem até que ultrapassasse o portão, quando sentiu os raios de sol o banharem em toda sua impetuosidade. Mais alguns passos ao centro, que levantavam a poeira fina sobre seus pés até que finalmente encontrou quem buscava. Os tecidos finos que se balançavam ao furor das palmas se silenciaram ao soar das trombetas. Ele podia escutar a ranhura da corrente que prendia a bola de ferro pendulante na mão de seu oponente, ávida por sangue e glória.
O coração de quem o encarava estava acelerado e pulsante, até que avançou sobre ele como um leão de encontro à sua presa. Seus movimentos talvez fossem rápidos aos olhares destreinados da multidão, mas não eram tão extraordinários quanto pareciam ser.
O primeiro golpe passou ao lado de seu ombro. Poderia ter se afastado mais se quisesse, mas era necessário manter a situação dentro de um certo limite por mais que seu instinto o tentasse condenar. Em seguida, aproveitando-se da guarda aberta, ele desferiu um soco certeiro no estômago de seu oponente, ainda que sem a força habitual. O golpe foi suficiente para que o homem caísse de joelhos enquanto ele se afastava dando alguns passos para trás. Deveria manter a distância e aplicar somente golpes que tivesse certeza de seu destino, afinal, tinha que cuidar de seu elmo e a melhor forma de fazer isso era evitando qualquer contato próximo.
O homem se levantou e o rodeou com passos rápidos, certamente entendendo que havia sido imprudente da primeira vez. Um erro que provavelmente não cometeria novamente. Jogou o mangual ao chão e sacou a espada presa em sua cintura, mantendo ambas as mãos apertadas entre a guarda de mão e o pomo arredondado, enquanto a ponta da lâmina era apontada a ele, que mantinha a defesa aberta.
As vozes de outrora se calaram esperando pelo manchar da terra pelo vermelho quando o próximo ataque veio com a lâmina de cima para baixo como um martelo. Ele levantou o escudo de superfície arredondada e com um passo lateral fez com que a lâmina deslizasse pelo objeto e acertasse o chão de terra batida. Avançou mais um passo à frente e levantou o joelho de encontro ao corpo do homem, que foi levantado ao por um breve momento, o suficiente para que ele cravasse o escudo ao chão e rolasse para longe, esperando em um breve instante até que o denso corpo se chocasse contra a borda do objeto, atingindo, em um forte impacto, a lateral do tronco da robusta armadura vestida pelo guerreiro. A pressão exercida pelo metal contorcido faria com que a dificuldade de respirar aumentasse. O batimento uma vez vívido não parecia tão vigoroso quanto antes, e o homem ofegante ao fim não conseguiria atacá-lo mesmo no maior de seus anseios. Era um corpo grande demais para funcionar sem os robustos pulmões. Ambos sabiam que o combate havia terminado quando segundos depois o homem se ajoelhou ao chão. Jogou as armas ao lado tentando se desvencilhar da armadura, tentando abrir com as forças que lhe restavam as amarras laterais. Ele novamente se aproximou, pegou o escudo cravado ao chão e o moveu rapidamente contra a face indefesa, estendendo o corpo sobre o chão.
Menos um, pensara ele aliviado ao final do primeiro teste.
Ele se curvou com os braços e palmas abertas, reverenciando a multidão que o aclamava com as palmas e gritos ensurdecedores que voltaram a tomar o espaço. Sabia que não deveria chamar atenção, mas não havia outra saída contra um oponente tão fraco. Um papel egocêntrico e confiante, perfeito para disfarçá-lo entre os atentos espectadores.
Narthus
Narthus respirou aliviado quando ouviu os gritos da multidão e viu Cavian voltando da arena. Estava sentado distante em um dos bancos posicionados no portão ao lado. Além da distância, uma grade de barras largas separava os ambientes. De algum modo os haviam dividido. Até então nenhum daqueles que aguardavam em sua cela haviam sido chamados, o que levava a crer que se tratava de alguma chave prioritária. Provavelmente por seu porte talvez o tivessem colocado entre os mais experientes. Ele percebia os olhares curiosos de seus adversários. Principalmente de um dos gigantes que ali estava, que não pudera reconhecer. Era provavelmente ainda mais jovem do que ele, apesar do tamanho mais avantajado, cerca de pouco mais de um metro mais alto, e provavelmente o único que entrara naquele ambiente por opção. Para a maioria dos sobreviventes entre as montanhas cinzentas, a morte era somente uma passagem, um sinal dos deuses mostrando que não eram fortes o suficiente para que merecessem viver. As batalhas em Taldramond aconteciam a céu aberto, sem multidões numerosas e sem recompensas pelas vitórias, ocorriam simplesmente pela contemplação da força e do sangue. Uma amostra do cotidiano de espetáculos costumeiros aos seus próprios olhos.
Além dele, os outros dois chamavam a atenção. Uma descendente dos seres de orelhas pontiagudas das florestas de Elindir. A mulher misteriosa carregava consigo os cabelos longos e prateados escondidos por um longo capuz. Sua roupa preta não era a que costumavam usar os seres daquelas terras, assim como os dois machados fixados em suas costas. Provavelmente sua mente fora forjada longe dos troncos arroxeados, ainda que aspecto letal não fugisse da natureza de seus irmãos de sangue.
Por último, um senhor de corpo avantajado. Certamente não era um gigante, não era o que a pele humana indicava. Outro mestiço, talvez? Seu corpo era imenso, assim como seus braços que pareciam tão largos quanto as toras de madeira maciça que compunham os bancos ali presentes. O que vestia não poderia ser considerado uma armadura: uma cota de largos anéis de metal que se espalhavam e repousavam sobre seu corpo. Para um homem com aquelas dimensões qualquer impacto não seria incômodo o suficiente, desde que a malha impedisse que as lâminas fizessem seu trabalho. A cabeça lateralmente disforme e as cicatrizes certamente escondidas indicavam que se tratava de um homem que seguramente já havia passado por várias provações, o que o credenciava como uma ameaça potencialmente maior, por mais perigo que os demais pudessem representar.
Cavian havia ido e voltado mais uma vez, fazendo com que sobrassem somente quatro deles. Era mais prudente orientar suas preces para que a luta entre eles acontecesse de forma mais breve possível. Assim, garantiriam que ao menos um deles sobrevivesse. Não confiaria sua vida nas mãos de qualquer um daqueles que os enfrentariam. Eram filhos daquela arena, fariam o que quer que fosse para garantir seus louros. Ninguém arriscaria a vida por menos. Talvez a própria Gaya tenha intervido quando ambos os portões se abriram e o carcereiro chamou seu nome enquanto via Cavian se levantar ao longe.
Cavian
Ambos não se segurariam, haviam prometido um para o outro. Fazia parte do espetáculo. Ao menos naquele combate, Cavian não precisaria tomar os cuidados de antes. Assim, ele sacou a lâmina reluzente como o próprio sol quando percebeu Narthus à sua frente. A diferença aos olhos do público era colossal. Narthus transpirava força física e, apesar de não ter lutado, viera da chave dos campeões, enquanto Cavian se mantinha como o jovem promissor. Não havia como prever o seu resultado por mais que suas intuições os arrastassem. Já haviam visto seres maiores caírem mais rápido, não seria surpresa se o mesmo acontecesse.
Narthus não atacaria, sua natureza o forçava a fazê-lo. Uma provável compensação dos deuses pela dádiva que lhe fora dada. Pequenos sinais, pensou Cavian antes de partir para o ataque frontal e direto. Cavian se certificaria de apagar os rastros. Em Faldram havia tido uma amostra da força de seu amigo, ainda que não soubesse se ele seria capaz de pará-lo. Chegou rapidamente às pernas de Narthus, era um adversário grande, elas seriam provavelmente seu ponto mais fraco. Quando se abaixou e a lâmina começou a fatiar o ar, levantou seu escudo em um reflexo tão rápido quanto um piscar de olhos. O punho de Narthus afundou a superfície arredondada como se um martelo atingisse uma folha de papel. Cavian conseguiu segurar a pressão do impacto enquanto seus pés se arrastam pelo chão de terra batida, tingindo o vento com a poeira alaranjada que se alçava pelo caminho. Rixi estava certa, pensou ele por um instante. Era diferente das batalhas que tivera nas montanhas de Jizu. As lutas entre os dragões sempre eram decididas nos detalhes, como um longo jogo de xadrez, no qual o vencedor era quem sacrificasse menos peões. A teoria era diferente ali. Em qualquer outra situação, um ataque contra um escudo e uma guarda tão aberta representaria uma fácil vitória e Narthus certamente sabia disso, mas o que ele também provavelmente sabia é que não seria possível contra-atacar se seu adversário fosse esmagado antes. Lembrou vagamente da luta de Faldram. Era por isso que Argrim evitava seus ataques. Não era apenas uma questão de utilizar a força do oponente contra ele mesmo, era também pelo simples fato de não conseguir contê-los. O sangue dos filhos de Iscalon que corria em suas veias certamente poupou que seu antebraço tivesse sido quebrado como um graveto seco. Afastou-se para pensar. Prometeu dar tudo de si ali, não poderia ser derrotado tão facilmente. Como um escudo teria utilidade contra aqueles punhos? Provavelmente só atrapalharia sua visão com todo aquele tamanho.
Pense, Cavian, pense, era o que dizia a si mesmo enquanto Narthus apenas o observava. Deveria tentar atacar os flancos, ainda que duvidasse que a tarefa fosse possível. Era como se o corpo de Narthus se mantivesse em paz. Mesmo após seu ataque, o fluxo de energia de seu corpo permanecia fluído e inflexível. Se seus instintos estivessem certos seria impossível que aquela lâmina fizesse qualquer diferença. Ainda assim, teria que tentar, com aquela máscara era tudo que poderia fazer.
Com o escudo aplainado, mas ainda mantendo seu brilho latente, Cavian partiu novamente contra Narthus. Dificilmente conseguiria replicar o que Argrim fez naquele dia. Narthus tomara a iniciativa naquela vez. Com aquela postura reativa, se quisesse surpreendê-lo, teria que criar suas próprias brechas. Chegou novamente diante do gigante acinzentado e inclinou o escudo em direção a seu rosto, fazendo com que a luz do sol cegasse seus olhos, ainda que não fizesse qualquer diferença. O punho de Narthus já havia preparado o ataque e apenas mantivera a direção inicial. O escudo dessa vez foi lançado como uma bala de canhão de encontro às paredes da arena.
A cena teria sido chocante se não fosse o fato de Cavian estar naquele momento pairando no ar. A espada estava empunhada com ambas as mãos enquanto a ponta da lâmina apontava para o ombro de Narthus em um momento de rara certeza. Não havia como desviar, fora mais rápido do que os olhos poderiam ver, comprovando que os anos que se passaram não haviam sido em vão. Provavelmente teria ganhado a batalha se o aço não tivesse se estilhaçado ao alcançar a superfície acinzentada.
A pele dos gigantes era conhecida por sua resistência, mas nunca teria sido capaz de confrontar um ataque tão direto como aquele. Por um momento o corpo de Cavian se manteve sem qualquer defesa. Um oponente daquele tamanho o abraçaria e chocaria seu crânio contra o dele pelo mero prazer de remoldá-lo, mas Narthus esperou que ele recobrasse a firmeza em seus pés. Quando seu braço de apoio tocou o chão, o joelho de Narthus cobriu seu peito. Um golpe que fez com que o corpo de Cavian fosse lançado por metros até que finalmente caísse e se arrastasse pelo leito terroso, até que se chocasse contra o muro de pedras alto que cercava o fosso. O escudo que usara no ataque também estava a poucos metros dali, ou pelo menos o que restara do metal retorcido. Mais uma vez falhou em batalha, apesar do sentimento de ter sido diferente dessa vez. Narthus era, sem dúvida, um adversário formidável e provavelmente naquelas condições estaria bem à frente do desafio que os esperava. Se Rizar esperava que ele se sagrasse vencedor do último desafio, provavelmente estaria extasiado naquele momento.
A multidão se curvou diante dos vencedores, e Narthus mais do que ninguém merecera tal reverência, ainda que fosse daqueles cujos corações já haviam sido definhados pela ganância e poder. Ele pôde perceber a preocupação momentânea de seu companheiro, quando os batimentos do gigante se aceleraram repentinamente e se acalmaram logo em seguida no momento em que se moveu vagarosamente em meio aos poucos escombros que sutilmente o cobriam. Por sorte não desmaiou, ainda que o choque fosse o suficiente para tal. Qualquer sinal de compaixão e seus esforços certamente sucumbiriam.
Narthus
Narthus voltou à cela, em parte aliviado, quando os carcereiros carregaram o corpo de Cavian para a mesma cela de que viera. Por um instante pensou ter ido longe demais na promessa que fizera, mas felizmente tudo havia acabado como planejaram. Muitos achariam que estaria feliz pela vitória, mas ele só comemorava em seus pensamentos o fato de que o amigo finalmente se salvara. Independentemente do que acontecesse com ele, o desejo de Persus continuaria vivo.
Os combates se seguiram e poucos voltavam às celas. O gigante não foi um deles, o que indicava que provavelmente estava morto, já a guerreira das florestas retornava com apenas uma das mãos, segurando o braço pintado de vermelho que escorria como a tinta em uma tela. Dirigiu-se rapidamente a um portão ao fundo, vigiado por alguns guardas que o abriram após a sua solicitação.
Por último, o corpulento homem de outrora também voltou à cela como previra, sem qualquer arranhão que o desabonasse. Andou por algum tempo até que repentinamente se sentou na frente de Narthus.
- Ei, garoto, deixarei o campeão com você – disse o homem com a ronquidão que acompanhava sua voz. - Mas saiba que aquela criatura não respeita as regras como a maioria por aqui. O ouro que ganhei até aqui não vale muito mais que escravos como nós.
- Não se trata do ouro, meu senhor, mas seria inapropriado explicar – disse ele confrontando o olhar do senhor com um sorriso gentil.
O senhor gargalhou.
- Então se trata de um objetivo ainda menos valoroso, meu jovem. Nasci durante a era antiga e já batalhei tantas vezes que me perderia nas contas se ousasse fazê-las. Por isso mesmo sei que a próxima batalha não valerá a pena. Ele não é como seu companheiro escravo. Sua lança rasgará você sem que ao menos chegue perto e estará no chão antes que pense em fazer algo.
- Do modo que fala parece que poucos devam desafiá-los – observou ele.
- Tem razão, talvez sua única vantagem é que ele espera que você desista. É um campeão e nunca perdeu nessa arena. É o que campeões fazem. Não que não acredite em seu potencial, meu jovem, mas já luto aqui há anos e nunca vi um principiante vencer – disse o homem apontando com a cabeça para o saguão vazio. – Escute esse velho aqui e pegue seu ouro, desfrute de alguns de seus prazeres e quando estiver satisfeito retorne para desafiá-los. Só um homem que já viveu o suficiente pode morrer sem arrependimentos – aconselhou.
- Meu pai uma vez me disse que até os maiores guerreiros caem diante da soberba dos homens, meu senhor... Certamente os deuses me darão a força necessária para vencê-lo.
- Os deuses não visitam homens como nós, meu garoto – afirmou o senhor. - Não acredite em qualquer conto de fadas que tenham lhe contado.
- Mostrarei ao senhor que eles estarão ao meu lado nessa tarde.
O homem gargalhou e pigarreou alguém que estivesse escutado uma boa piada.
- Então que sua loucura o abençoe, meu jovem - terminou ele se apoiando em seu ombro e se dirigindo ao portão dos desistentes. – Se os encontrar, peça a eles que não deixem seus serviços na mão de garotos – terminou o senhor antes que finalmente partisse.
Só a grade agora o separava da conclusão do que haviam planejado. No fim, Gaya atendera suas preces e o destino deles e do desejo de Persus repousava sobre suas mãos. Era irônico que a conquista que buscava viesse por aquilo que mais lhe desagradasse. A vida era uma dádiva dos deuses, talvez a mais preciosa de todas elas. Algo que ele sabia antes mesmo de conhecer a sua fé. Não era algo que deveria ser apostado e nem colocado em risco por desejos fúteis. Mas ali estava ele, jogando o jogo que os nobres sempre desejaram que jogasse. Um que tinha o poder de transformar sangue em ouro, morte em glória, desconhecidos em aliados e que naquela tarde tentaria tornar provação em crença.
Narthus
O sol alcançava seu zênite quando as grades finalmente se levantaram. Levou a mão acima do rosto para que ele não o cegasse enquanto o mormaço inundava seus pulmões. Não que o incomodasse, mas se acostumara tanto com o frescor das florestas, que quase podia senti-lo no plano de seus pensamentos. Seu adversário não saíra de uma cela como ele. Atravessou um portão ornamentado com os pequenos arcos entrelaçados, símbolo dos reinos aliados enquanto girava sua lança lustrosa em uma de suas mãos.
Narthus encarou Orofos com olhos que alcançavam a alma. Não havia dúvidas de que o adversário viera das montanhas cinzas assim como ele, ainda que não se tratasse de um gigante. Os ogros viviam dispersos em pequenas tribos e cultivavam certa admiração pelos habitantes de Taldramond. Gigantes baixos de ossos largos eram como alguns os definiam. Era pouco mais baixo que ele, mas assim como ele não necessitava de muita armadura. Apesar disso, cobria o corpo de couro e ossos e um colar de presas pendurado em seu pescoço, ostentando-os como se fossem troféus de guerra.
- Orofos, Orofos, Orofos! - bradava a multidão, quase como se tivessem esquecido que ele também estava ali presente. A memória da vitória parecia não permanecer por muito tempo, pelo menos com os novatos.
Orofos Carp, um dos campeões daquela arena. Derrotou centenas antes de chegar ali e não deixaria que qualquer fedelho colocasse sua posição em risco. A lança em riste apontada para Narthus comprovava que não deixaria brechas para serem exploradas.
Andava lateralmente com uma destreza estranha àqueles seres. Ele não tirava os olhos da ponta da lança de ferro polido que brilhava ao sol. O senhor o havia alertado que ele cairia antes que pudesse revidar. Não poderia descolar seus olhos dele em nenhum momento.
Parecia aguardar que Narthus tomasse a iniciativa e se aproximasse. Provavelmente outros o fariam. Saberiam que as chances seriam maiores contra um oponente com tamanho alcance. Um oponente sem qualquer arma provavelmente seria um alvo ainda mais fácil, mas o óbvio no combate nem sempre era o caminho certo a se tomar. A precaução era necessária e a vantagem naquele momento era de Narthus, já que a multidão que gritara a outrora agora se mantinha calada. Eram o sangue que queriam e Orofos sabia disso. Quando o tempo de espera terminou, Orofos o atacou. A ponta serrilhada passou ao lado de seu peito como um arpão que quase alcançara sua presa. O tempo foi suficiente para que Narthus segurasse a haste da lança com sua mão esquerda. Lisa demais, pensou ele antes que Orofos a puxasse de volta em sua direção. Uma das quatro serras da ponta rasgaram a palma de Narthus como se corressem pelo próprio ar e o sangue pintou o chão da arena com as reverências da multidão.
Trilium, ele pensou. Seria ingênuo dizer que seria imprevisível, era um campeão afinal, o problema é que teria poucas oportunidades de contra-atacá-lo e a profecia do senhor dada naquela cela começara a tomar forma. Ele se afastou para pensar enquanto Orofos o seguiu desferindo novos golpes frontais. Narthus era rápido, mas as paredes da arena o encurralavam. Era preciso desarmá-lo, ainda que não chegasse a nenhuma conclusão de como fazê-lo. Fazia tempo que não via seu próprio sangue. Antes da fuga das montanhas congeladas, somente uma única vez, muitos anos atrás, havia sido Argrim que o salvara de um destino ainda pior. Só aquilo seria suficiente para atordoar seus pensamentos.
Deveria se focar nas lições dadas em meio à floresta. Por anos Argrim o ensinara como utilizar a força de seus inimigos contra eles mesmos, mas isso dificilmente o ajudaria naquele momento. Não se tratava apenas de uma batalha de forças, aquelas lâminas eram perigosas demais para serem subestimadas e era provável que Orofos já tivesse previsto seus próximos passos. Persus, por sua vez, o ensinara que a surpresa sempre seria a melhor maneira de obter vantagem, já que ninguém teria uma resposta imediata para o que acabara de conhecer. Era o caso ali, mas o que seu adversário tinha a certeza que ele não faria? O que todos os outros que foram derrotados não puderam perceber? Essa era a chave.
O próximo ataque viera como os anteriores, se afastar e ser acertado eram suas únicas opções. A parede alcançaria suas costas a qualquer momento, quando finalmente decidiu agir. Lançou seu corpo contra a lança. A ponta perfurou seu ombro e atravessou seu corpo facilmente. Orofos a puxaria como fez antes e desferiria o próximo ataque, mas o metal que havia deslizado por suas mãos a outrora também correria por seu ombro com a mesma facilidade. Se lançou à frente, impedindo que Orofos se distanciasse rápido o suficiente. Seu punho cerrado finalmente alcançou o rosto de Orofos com potência tamanha que fez com que as mãos do campeão se soltassem do cabo de tiras emborrachadas que este empunhava. Ele fez com que a lança completasse seu caminho com o braço que lhe restava, fazendo com que a arma caísse atrás de si e o sangue ainda quente escorresse por seu ombro esquerdo.
Nem a dor certamente anestesiante parecia ser intensa o bastante para incomodá-lo naquele momento. Antes que Orofos recobrasse completamente a consciência, ainda cambaleante, ele desferiu com o mesmo punho mais um golpe, e mais um, e ainda mais outro. A multidão e a nobreza acompanhavam atônitos. Orofos se recusava a cair até que Narthus chocou sua cabeça contra seu crânio. O queixo de Orofos colou em seu próprio peito por um instante antes que o homem finalmente desabasse. Por um momento não houve aplausos, era um campeão, nunca um novato cometera tal façanha. Agiam como se não soubessem o que fazer, até que veio a primeira palma e a arena finalmente explodiu em entusiasmo. Narthus ainda encarava o corpo de Orofos no chão rezando por sua saúde quando os guardas com escudos dourados adentraram a arena.
Alguns dos guardas recolheram o corpo de Orofos, e ainda que houvesse oito deles, tiveram dificuldades para carregá-lo. Ganhara, não sabia como. Quando a lança perfurara seu corpo, por um breve momento teve a impressão de que sua consciência deixara de habitar sua mente, como se ninguém mais fosse capaz de pará-lo. Provavelmente sua vontade de cumprir o que Persus se sacrificou para proteger fez com que suas preces fossem atendidas naquela tarde.
Uma fina mão tocou seu braço, uma jovem moça de vestidos dourados, assim como a armadura dos guardas. Um capuz cobria seu rosto, ainda que soubesse que era provavelmente a pessoa que o guiaria pelo portal de onde saira Orofos minutos atrás. Mesmo a acompanhando, procurou o único sorriso amigo daquela arena que vira o que acabara de fazer e encontrou o rosto aliviado de Rizar. Se a vida se tratasse de um jogo de apostas, o mercador parecia fazer seus palpites com uma maestria invejável. O ilusionista, pelo contrário, manteve a postura. Escravos não riem ou esboçam opiniões, um bom escravo é obediente e fiel, disse Rizar em uma das poucas lições que repassara antes de embarcarem. Seria o suficiente para saírem dali. Estava tudo nas mãos de Rizar agora.
Cavian
Uma noite se passara em Javelin. Cavian soube da vitória de Narthus ainda na noite anterior, quando escutara as conversas entre os guardas. Não dá para acreditar que o novato venceu, dizia um deles, Orofos já era um velho moribundo, dizia um outro. O que não faltavam eram discussões sobre o tema, ainda que as paredes e as grades impedissem que seus ouvidos alcançassem outras vozes. Escutou-os até que suas canecas secassem, enquanto se mantinha acordado. Era como se o perfume de Ravel que sentira a outrora e aquelas barras frias o transportassem para aquela masmorra novamente, mantendo seu corpo em um estado pleno de vigília. Nem o colchão de tecidos macios os convenceriam seus pulsos esfregados incessantemente do contrário.
Viu quando o guarda se aproximou da parede oposta chegando até ele depois de alguns instantes.
- Ei, já pode tirar o elmo se quiser, voltará para casa dentro de algumas horas, seu mestre me incumbiu de buscá-lo - disse o jovem, que trazia em sua voz a ingenuidade de achar que se tratava de algo importante, enquanto tentava encontrar a chave correta no numeroso molho.
Cavian assentiu com a cabeça.
- A propósito, não teria qualquer chance contra aquele bastardo. Nunca havia visto algo como aquilo acontecer. Certamente fora abençoado pelos novos deuses – completou o guarda entusiasmado.
- Novos deuses? – questionou ele.
O guarda gargalhou.
- Se pudesse sair de seu celeiro de pulgas e frequentasse as ruas saberia do que estou falando. Os verdadeiros deuses que decidiram ficar nesse mundo e trazer a tão sonhada paz a nossos povos – completou o guarda finalmente achando o que procurava.
- Dizem que são descendentes diretos dos deuses, é bem provável que tenham vindo a esse mundo com esse propósito – disse ele tentando alimentar a conversa, ainda que não acreditasse em suas próprias palavras. A temerosa visão que Narthus o havia alertado, parecia estar mais próxima da verdade do que ele gostaria que estivesse.
- Até que não é tão burro para um simples pedaço de carne. Agora chega de conversa e vamos, tenho um horário a zelar - finalizou o guarda antes de abrir a porta da cela, estendendo a mão ao corredor para guiá-lo até seu destino.
Narthus
Narthus estava sentado em cima de um dos baús que seriam carregados à carroça que trouxera, agora com ainda mais Bívios em sua fronte. Ostentava em seu ombro um curativo largo, que cruzava o peito e fixava o ombro. Seu braço, àquela altura, já estava são, mas as aparências deveriam caminhar sempre à frente da verdade. Não à toa havia subtraído pra si, a capa adornada que o cobria de forma pouco exitosa até que chegassem no aposento reservado aos vencedores. De tom azulado que lembrava as safiras encontradas nas colinas de entre as florestas élficas e natelurianas, com detalhes dourados, delicadamente trançados, que demarcavam em relevo os mesmos símbolos entalhados ao topo dos portais do poço do qual saíra. Os colares ornamentados que envolviam seu pescoço eram carregados da mais pura prata e grossos o suficiente para que lembrassem das correntes que prendiam as mãos e pés por ali, ainda que ficasse claro seu intuito. Vocês devem aproveitar de tudo que lhes oferecerem, vocês vieram do nada e nunca aproveitaram qualquer dádiva terrena, qualquer pequeno luxo deve ser tratado como o mais raro tesouro, dissera Rizar a ele em outra de suas lições antes de partirem de Tessan.
Ainda que seguisse todas as orientações à risca, um fato ainda o preocupava, seu triunfo, ainda que não se tratasse de um dos Munírios, continuava sendo um feito inédito, tão incrível para um inexperiente escravo, e tão infelizmente chamativo apesar de inevitável.
Observava os detalhes com atenção, até que Cavian apareceu no horizonte. Aparentava estar bem, para seu alívio, ainda que parecesse desconfortável como esperado. Aos poucos se acostumaria, precisava se acostumar, ainda que achasse que tinha ido muitíssimo bem até ali. Parou bem ao seu lado, de pé e sem que qualquer palavra viesse de sua boca. Baús e mais baús eram carregados em sua direção. Parece que ganhariam mais do que vieram procurar naquele dia. Perdera a conta, mas provavelmente mais de vinte deles carregavam um novo vagão, atracado pacientemente entre o primeiro e o último. Não carregariam tal quantia sem qualquer proteção. A comitiva de novos homens comprovara isso. Um pequeno exército composto por guardas da própria cidade em seus lustrosos cavalos encouraçados, que garantiriam que a carga chegasse ao seu destino.
Ravel finalmente se arrastou até eles, uma criatura formidável, ainda que lembrasse a feição dos humanos, sua pele era pálida como os picos nevados, de rosto de traços delicados e levemente alongado, assim como os fios de cabelo ora arroxeados e ora azulados que lhe cobriam os seios expostos. O saiote de tecidos dobrados se arrastava ao chão elegantemente, como se ela deslizasse sobre ele. Não podiam ser vistas pegadas sobre o chão, ainda que fosse difícil se atestar qualquer fato sem que fossem inebriados pelo perfume cada vez mais próximo.
- Não foi fácil fazer com que esse cálice chegasse até aqui, Rizar, fazia muito tempo desde que Bahamut recebeu um pedido, deveria ter mais cuidado com seus desejos - disse Ravel, enquanto abria um pequeno baú sobre as mãos de um dos guardas, revelando o cálice, o último tesouro do portador da luz, o corpo acinzentado não era opaco, pelo contrário, reluzia tanto quanto suas pedras rosadas ou entalhes dourados, uma obra digna da cobiça imoderada de seu criador.
Pertencia a Monlok, um dos dragões antigos, que diziam ser o dono do mais precioso tesouro entre todos os outros. Não à toa, muitos conflitos ocorreram entre as montanhas de Opanum depois de sua morte pelas mãos de Smaglor, o invencível rei Orc, que pereceria alguns anos depois pelas mãos de Baran. Todos acreditavam que poderia haver muito mais do que Aquia teria requisitado em seu nome.
- Para ser sincero, apesar de ter dito que sairia daqui com seu ouro, nunca realmente acreditei que fosse. Havia uma possibilidade improvável que acontecesse, sabe disso tanto quanto eu – disse Rizar caminhando e pegando o cálice em mãos após o servente que o trouxera se ajoelhasse diante dele e o oferecesse às suas mãos. - Orofos já era um veterano de qualquer forma e uma hora ou outra pereceria diante da juventude, mas fique tranquila, minha querida, diga a Bahamut que poderá reavê-lo quanto quiser – sussurrou o gnomo com a mão ao lado da boca. – Na verdade, me questionei sobre sua real existência e a curiosidade de meu sangue associado ao meu vício insanável por antiguidades, além, claro, de minha própria ausência de crença no feito, que acabaram fazendo com que me exacerbasse em minhas improváveis provocações.
Ravel riu.
- É apenas uma sugestão, meu caro – disse a anfitriã. - Mas de fato, talvez eu tenha me deixado levar por suas palavras fáceis e tenha negligenciado a minuciosidade que me é habitual. Esse animal que trouxe certamente se aproveitou do fator surpresa. Sem sua lança, aquele inapto não teria capacidade de pensar em uma saída. Se foi um conselho seu, tenho que reconhecer que foi uma jogada tão improvável quanto brilhante.
Rizar gargalhou.
- Como bem sabe, não sou um perito nas artes da guerra, minha cara Ravel, mas quando dei tal conselho não imaginei que Kusko fosse tão idiota para segui-lo. Por pouco a lança não atravessou seu coração.
- Dusko, meu senhor – disse Narthus em voz baixa.
- Cale a boca! Não lhe dei permissão para falar – esbravejou Rizar, caminhando até Narthus e apoiando a ponta da bengala de madeira adornada sobre o peito nu do gigante. – De agora em diante seu nome será Kusko, entendeu? Se disser mais alguma coisa que me desagrade, vou me certificar de reescrever seu destino e deixar seu corpo estendido naquele fosso – disse o gnomo encarando Narthus nos olhos.
- Sim, meu senhor, peço desculpas, meu senhor – respondeu Narthus abaixando a cabeça, tentando desviar o olhar ainda mais pra baixo, já que Rizar mal alcançara seus joelhos.
- Veja, Ravel, não tenho qualquer segundo de paz – resmungou Rizar transtornado. - Alguns segundos de glória e olhe o resultado na mente deles. Terei muito trabalho a fazer quando voltar – completou.
- Que ele reencontre sua disciplina, meu senhor – observou Ravel, parecendo se satisfazer com a ação. - Como sempre digo, antes perder o pouco ouro que valem do que deixar que se esqueçam de suas almas corrompidas e de suas dívidas de sangue.
- Não haveria palavras mais sábias, minha senhora – disse Rizar retomando o tom cortês. - De qualquer forma, agradeço pela escolta. Os tempos são perigosos e a estrada até aqueles pântanos é longa.
- É o que é oferecido a todos, meu senhor – respondeu Ravel. - Espero que tenha uma boa viagem de volta. Volte sempre que desejar, as portas estarão sempre abertas.
- Com certeza voltarei, assim que as encomendas derem uma folga. Ultimamente nossos governantes tem andado bem ocupados... – disse Rizar retirando o mesmo relógio de sempre de um dos bolsos de seu colete e o fechando logo em seguida. – Agora realmente tenho que ir. Até a próxima, minha cara. Foi um imenso prazer – completou apressado, curvando-se diante de Ravel.
- O prazer foi nosso, meu senhor – disse Ravel, retribuindo-lhe o cumprimento.
Rizar se dirigiu à carroça dando o sinal para que o carroceiro levasse ele e Cavian ao último vagão.
Cavian
Cavian não conversou com o amigo até que certo tempo se passasse. Foi apenas quando passaram da ponte sobre o mar e saíram do último posto de conferência já nas terras escuras de Dargal, que Narthus finalmente tirou o elmo de sua cabeça, assim como ele.
- Conseguimos, meu amigo, nosso primeiro passo finalmente foi dado! – disse Narthus entusiasmado.
- Graças a você, Narthus, é bem provável que o destino fosse diferente por minhas mãos - pontuou ele levemente cabisbaixo, antes de se recompor. - Ouvi dizer que foi uma batalha intensa entre você e aquele tal Orofos.
- Não faça previsões sobre um futuro que sequer aconteceu – repreendeu Narthus. - Daqui alguns dias poderá usar toda a força que lhe pertence. Aliás, aquele golpe com o escudo foi bastante astucioso, acho que inclusive me ajudou a pensar como surpreendê-lo.
Cavian sorriu.
- Posso te perguntar algo?
- Seria estranho se não pudesse – estranhou Narthus, com um leve sorriso ao rosto.
- Por que hesitou naquele lugar? Também não queria lutar com você, mas mesmo contra Orofos você o fez.
Narthus se silenciou por um momento.
- Esqueça, foi só uma curiosidade tola – interrompeu ele.
- São lembranças ruins de tempos ruins, Cavian... – disse Narthus. - Houve uma única vez que a vida se esvaiu por minhas mãos... Ele era tão jovem que provavelmente tivesse as mãos do tamanho das suas. Nos colocaram em uma arena como aquela, ainda que tosca e sem grandes proporções... Eu não havia sequer reagido por alguns minutos enquanto seus punhos fechados me acertavam com toda a raiva que guardava dentro de seus pulmões... Eu sabia que não queria aquilo, mas eles riam do espetáculo, achavam que eu estava brincando contra alguém que não merecia qualquer demonstração de força... mas estavam enganados, ele provavelmente me venceria depois de algumas horas ou até que nos armassem, mas foi quando ele disse que todos sabiam que minha mãe... – pausou Narthus por um momento. - Ele disse que todos sabiam que ela havia morrido por minha causa. Eles me amaldiçoaram em meu nascimento, Cavian, com algo que faria com que eu me tornasse o que eles desejavam. Por um momento eu senti aquilo novamente naquela arena. Algo que fez com que meu pai permanecesse em seu reinado por mais alguns anos até que finalmente descobrissem que eu não partilhava de suas ambições...
- Foi uma má ideia, me desculpe – arrependeu-se ele, ficando alguns segundos em silêncio até que mudasse de assunto. - Preciso te confessar algo... Aquela mulher chamada Ravel com quem Rizar conversou, foi uma das que me manteve preso naquelas masmorras. Mesmo com essa máscara não consegui sequer encará-la. Refleti muito sobre isso no caminho até aqui, e tenho me questionado se terei condições de fazer o que te prometi – revelou o real motivo de sua agonia. - É como se minha mente tivesse se quebrado, Narthus, eu sei que há algo errado, e mesmo assim... Mesmo sabendo, não consigo achar um jeito de consertá-la.
- Tenha paciência, meu amigo, não é como se passassem décadas desde que saiu de lá – orientou Narthus. - Na floresta aprendemos que o tempo pode fazer com que até o solo mais desgastado volte a gerar vida. Ontem fizemos algo que muitos acreditavam ser impossível, garanto que os deuses também o abençoarão quando chegar a hora.
Cavian sorriu novamente.
- Nada o abala, não é mesmo? Espero que algum dia eu possa voltar a pensar assim. Agora já te alerto que se Rixi já te achava invencível, vai ficar impossível quando souber o que aconteceu – brincou ele.
- E você como um bom amigo irá me prometer que esse segredo morrerá com você, não é? – disse Narthus em tom de súplica.
- Seria muito injusto que eu escondesse isso dela. O campeão da arena de Javelin retornou – anunciou ele rindo, ao imitar os hábeis arautos reais. - Direi a ela assim que retornarmos.
- Então temo que terei que voltar àquele fosso e implorar por um destino mais justo.
Ambos riram, enquanto a carroça seguia seu curso. Todo aquele ouro com certeza libertaria mais alguns das pesadas correntes dos reinos aliados, mas além da lâmina que chegaria a suas mãos, aquele cálice despertara sua curiosidade, sabia do que se tratava, pelo formato e pelas palavras de Ravel, não havia qualquer dúvida sobre o que se tratava, mas o que se questionava era por qual razão Rizar se interessaria por aquele objeto. Por que confrontar seu pai ainda que sutilmente? Em mais alguns dias poderia ter suas respostas e saber quanta verdade ainda restaria nas palavras que saíssem da boca do hábil contador de histórias.
A QUIMERA E OS SONHOS ROUBADOS
Cavian
Já era meio de uma tarde chuviscosa quando a carroça atravessara um dos vivos portais de Tessan. Não eram como os de tempos distantes de maneira alguma. Os enfeites convidativos, cuidadosamente aparados de tempos em tempos para dar boas-vindas aos visitantes,com o tempo foram tomados pela natureza voraz, fazendo com que tudo parecesse selvagem, uma floresta de árvores petrificadas que olhava chorosa seus filhos que agora não mais sorriam atrás das máscaras.
Não demorou muito até que chegassem ao fundo do casarão. Um globo reluzente foi apontado pelo condutor à entrada antes que o grande portão se abrisse. Parecia um mecanismo sofisticado para aqueles tempos, mas ali era a oficina das facilidades onde qualquer detalhe parecia importar.
Depois de dias de viagem, os Bívios encontraram no estábulo o seu merecido prêmio. Blocos de feno fresco provavelmente oriundos de Audar. Narthus e Cavian esperariam alguns minutos até que o próprio Rizar viesse buscá-los. Era necessário se certificar de que olhos curiosos não os observassem. Os guardas foram dispensados com bolsas cheias de moedas de ouro, o que manteria suas luxúrias certamente até depois do inverno, que viria depois de alguns meses. A contratação externa tinha o intuito justamente de manter as aparências. Eram nas tavernas regradas de vinho e cerveja que se espalhavam a todos a fama de carrasco esbanjador do rei dos escravos. As mais convincentes línguas trabalhariam ao seu favor naquela noite e nas próximas que viriam, afinal, o álcool e a aparente verdade eram como irmãos tão inseparáveis quanto inquestionáveis.
A porta finalmente se abriu em um rangido típico.
- Parabéns, senhores, tudo saiu melhor do que planejamos – exclamou Rizar não escondendo seu entusiasmo. - Já pedi para que fosse preparada a comida e roupas frescas – continuou o gnomo, jogando as chaves para Narthus.
- Obrigado, Rizar, não consegui verificar com meus próprios olhos, mas imagino que tenhamos conseguido o objeto de nosso interesse, correto? – perguntou o gigante, destrancando rapidamente as algemas que prendiam seus pulsos e pés, indo em sua direção logo em seguida.
- Certamente, amanhã pela manhã ela estará nas mãos de Cavian para procedermos com os testes que ainda serão necessários – respondeu Rizar. - Mas hoje nos dediquemos a festejar. Se pudesse vê-lo, Cavian... O que está em minhas mãos é uma das obras primas mais valiosas de seu povo – completou o gnomo meneando o cálice em suas mãos.
- Sei do que se trata... Só não consigo entender sua fascinação com algo tão fútil, ainda mais sabendo do risco que todos corríamos - repreendeu ele visivelmente transtornado enquanto terminava de retirar o ferro frio de seus pulsos. - Não me parece esperto atrair os olhos de meu pai em um momento como aquele. Se ele viesse pessoalmente confrontá-lo, o que faríamos? Você viu como aquela mulher reagiu.
- Confrontar um ser tão desinteressante como eu, jovem príncipe? – retrucou Rizar. - Assistir uma batalha de escravos sem nenhum propósito? Não parece algo que seu pai faria em qualquer circunstância. Agora sobre atrair os olhos dele, nisso tem razão. Mas veja só, caso se preocupassem com esse cálice inútil, esqueceriam totalmente do que iríamos realmente buscar, não é mesmo? - disse Rizar ao jogar o cálice para suas mãos fazendo com que o pegasse no ar.
- Entendo... – disse Cavian pensativo e aliviado com a resposta. No fim, até ele foi persuadido pela mesma distração.
- Lembre-se de que a arte do ilusionismo não se trata só de magia, meu jovem – disse Rizar. - Agora saiam daí e se arrumem adequadamente. Hoje é um dia especial por aqui e já chegou aos meus ouvidos que a pequenina não vê a hora de revê-los.
Cavian
O quarto era pequeno como a cela da masmorra fria que ainda se mantinha viva em sua mente. Era como se pudesse tocar suas paredes escorregadias se realmente quisesse. A porta de madeira simples havia sido mantida entreaberta para que seus olhos pudessem lembrá-lo que estaria livre caso desejasse. Um hábito que provavelmente o faria companhia pelos dias que ainda lhe restassem.
Seus braços e sua nuca repousavam sobre a grossa parede de cerâmica que o contornava. A banheira ovalada não era grande o suficiente e suas pernas se mantinham dobradas com os joelhos para fora da água amornada. O silêncio absoluto o tomava, um perigoso companheiro que podia sussurrar gentilmente palavras doces sem que pudesse ser notado. Era ali, sozinho, onde as espadas sequer o alcançavam, onde se sentia mais vulnerável.
Seu eu de outrora demonstrara que o otimismo exacerbado caminhava de mãos dadas com a imprudência, mas seu eu de agora apenas parecia mais pessimista do que a realidade talvez lhe cobrasse. Cada passo dado parecia tão pesado. Sempre que parava para refletir e caminhava em busca de respostas, tudo que fazia era se deparar com novas escolhas em um labirinto sem qualquer saída. Um que lhe fazia desejar o destino que lhe fora negado a cada pequeno momento, a verdadeira liberdade de um mundo que não conseguia integrar, uma dádiva que lhe foi dada quando seu coração bateu pela primeira vez e que infelizmente por enquanto havia deixado de lhe pertencer.
Os escolhidos dos deuses eram os únicos a não serem donos de seus próprios destinos, lembrava cada uma das vezes que Yuki lhe alertara sobre seu único futuro possível. Ela aceitara sua condição assim como tentava fazer com que ele aceitasse a dele. Era dele o dever de cuidar de seu povo, o sacrifício de uma vida para salvar milhares. Não parecia uma escolha difícil para qualquer um que fosse sensato o suficiente, ainda mais sabendo que seu pai provavelmente pereceria antes que se fosse. O tratado se encarregaria de tal feito. Poderia corrigir qualquer rumo que fosse tomado se apenas aguardasse de forma paciente por sua vez. Lis ao menos teria alguma chance de viver, provavelmente não da forma que gostaria, mas da forma que fosse possível, afinal, quantos todos os dias não eram obrigados a fazer escolhas muito mais desgostosas? Quantos pereceram naquelas correntes durante o tempo que fazia companhia às suas? Talvez seu orgulho fosse maior do que o destino que sua mãe dissera ser reservado a ele.
Os pensamentos que vagavam em seu corpo imóvel, demonstraram que no fim nunca teve o direito ou as virtudes que o permitissem viver qualquer sonho vazio que sua mente tivesse insistido em lhe lembrar.
Já havia passado do horário combinado quando saiu das águas agora geladas. As roupas simples e pardas de linho já haviam sido dispostas sobre a cama arrumada e ele parou por um momento para treinar o sorriso que tanto agradava os olhares alheios. Sorria, Cavian, sorria, era a única coisa que lhe restara para esconder todas as perguntas que seriam evitadas e todo o peso que só ele deveria carregar.
Cavian
O salão estava enfeitado como nunca antes. O Surmadiano, como chamavam os nativos, era o festejo celebrado desde seus ancestrais para agradecer aos velhos deuses pela prosperidade da cidade verde. Todos se vestiam como filhos da floresta, coroando suas próprias criações com coroas de folhas secas e enfeitando seus rostos com flores e pinturas tão vivas que era possível mergulhar por seus olhos. Os Tessanianos não se apegavam à deusa do sol e do fogo como os Audarianos porque entendiam a importância sem distinção de todos os elementos que criavam aquele mundo, afinal, o sol brilhava para todos sem distinção, assim como o frio que os abraçava ao anoitecer.
A formalidade das estruturas abertas das linhas de produção foi substituída pela leveza proporcionada pelas finas pétalas que se entrelaçavam em painéis multicoloridos. Até Narthus ostentava sua fina coroa que certamente não havia sido feito por seus dedos robustos. A cuidadosa decoração lembrava os portais de entrada da cidade antes da ascensão dos reinos aliados e as crianças pareciam ser sementes nascidas da floresta. Um pequeno vislumbre dos tempos antigos e das boas lembranças.
Rixi estava com um sorriso tão deslumbrante, que era impossível não a notar. Voou até Cavian lhe dando um abraço que mesmo com os braços estendidos mal cobriam seu peito.
- A inesperada saudade daquela que parecia não se importar – disse ele sorridente, enquanto a fada se afastou revirando os olhos.
- Não é porque é tem a cabeça mais dura que a ponta de um martelo que merece partir tão brevemente... Aliás, eu não tinha qualquer dúvida de que voltariam – retrucou a fada.
- Divio disse que ela mal dormiu depois que partimos – revelou Narthus despretensiosamente.
- Cale a boca, grandalhão, ele nem sabe o que viu, aquele careca verde deveria se controlar antes de sair por aí espalhando boatos falsos – resmungou a fada dando os ombros. - A propósito, essa coroa é sua – complementou Rixi, desdobrando uma coroa de palha bastante parecida com a de Narthus de uma pequena bolsa de couro clara que carregava consigo, ainda que parecesse pequena demais para um objeto tão grande.
- Bom, acredito que agora estejamos prontos para festejar a vitória de nosso amigo, Rixi, ele realmente foi incrível como você sempre alertou – disse ele, ajeitando o objeto em sua cabeça, enquanto Narthus certamente o repreendia com um olhar tão profundo que podia vê-lo mesmo sem enxergá-lo.
- Viu, eu sabia... – completou Rixi novamente entusiasmada. – Como foi? Narthus não quis me contar os detalhes.
- É uma longa história que acredito que tenha que ser acompanhada por uma boa bebida – disse ele arrancando um sorriso da pequenina, enquanto Narthus desistia de seu planejamento inicial.
O sorriso genuíno da fada parecia importar mais a Narthus do que incômodo pelas milhões de histórias que ela inventaria após aquela noite.
A bebida não era bebida em si, reservada em tonéis de adonsoneiro, parecia mais com uma água saborizada com algumas ervas levemente amargas, que nada lembravam as bebidas envelhecidas em carvalho, mas que ajudaria a enganar as mentes pré-determinadas a aceitar a imitação como se fossem reais. De qualquer forma, serviriam para acompanhar o festejo que se espalhava em pequenas rodas de músicas, onde as palmas animadas faziam companhia às cantigas que transpiravam alegria. Era como lembrar a eles mesmos de que havia alguma esperança, mesmo sem os banquetes fartos. O que realmente mais importava já estava ali, aqueles que o destino permitiu que estivessem aos seus lados. Sequer importava se por mais um momento ou por mais alguns dias, para todos eles a morte seria igualmente inevitável. Já haviam enfrentado dias difíceis no passado, certamente não como aqueles, mas qualquer tempestade nunca durava pra sempre e assim passariam seus dias até que os céus se acalmassem.
Cavian
Cavian não dormiu no confortável colchão que o aguardava na noite anterior, preferia a companhia, ainda que tivesse dúvidas se teria dormido qualquer uma das noites desde que saiu daquela masmorra. Depois que os pesadelos cessaram, nada mais vinha em sua mente. Uma tela escura e reconfortante de certa forma.
Rizar se apresentara como prometido. Trabalhava com os ponteiros de seu bom e velho relógio, tão metodicamente que às vezes parecia que alguém o controlasse por meio de cordas. Ele pôde sentir ao longe. Uma forte presença vinda do pacote em suas mãos, como se algo o atraísse de certa forma, ainda que de forma sutil.
- Bom dia, meus caros amigos – cumprimentou Rizar. - Essa lâmina pertenceu Aradel, o rei dos Behirs e das tempestades. Acredito que ela os acompanhará em sua jornada com certo treino, é claro – continuou o gnomo abrindo o pacote de tecido cru de alta gramatura que cobria a espada e oferecendo a ele com cuidado para não tocá-la. Uma espada fina e longa, de metal enegrecido e cabo arredondado. Não era robusta como as espadas de grande nome e nem impunha qualquer temor. Os sucos retos em sua lâmina sem curva reforçavam sua aparente fragilidade.
Os dedos de Cavian abraçaram seu cabo e a levantaram das mãos de Rizar com cautela e desde então pôde entender a razão de seu nome. A corrente de energia de seu corpo fluía a ela sem que ele sequer desejasse. Levou sua mão esquerda também ao cabo e a luz azul cobriu as pequenas fendas como uma luz azulada, de cor muito semelhante às das marcas que ressoavam em seu braço. A lâmina apagada finalmente mostrava seu brilho intenso cantando em um zumbido agudo e silencioso como se sua voz estivesse prestes a romper o ar.
Ele tentava controlar a sede do objeto inutilmente, até que em um piscar de olhos estivesse ajoelhado sob sua presença. Cravou-a no chão como se a terra sob seus pés fosse um tecido de seda macio. Sua respiração ofegante, ao soltá-la, refletiu nos olhares preocupados daqueles que o observavam, ainda que a voz da lâmina se calasse e as luzes se apagassem lentamente.
- A rebeldia dessa lâmina combina com você, jovem príncipe – disse Rizar. – Mas talvez seja cedo demais para controlá-la.
- Me dê uma semana, Rizar... – pediu ele, ainda recuperando seu fôlego.
- Pensarei em alguma outra forma, jovem príncipe, não se preocupe... Há inúmeros caminhos na magia, com certeza há algum mais simples para agora – disse Rizar em tom compassivo.
- Me dê o tempo que lhe pedi – implorou ele efusivamente e ainda esgotado. - Você cumpriu sua promessa, me dê a chance de cumprir a minha.
- Por que não espera um tempo até que se acostume, meu jovem? – orientou Rizar. - Não se preocupe com seu juramento, eu farei com que minha palavra com Divio seja cumprida. Se eu não tiver plena certeza de que vocês consigam, tanto ela quanto vocês se tornarão apenas mais corpos empilhados naquele lugar. Se Divio não tivesse a mesma compreensão, já teria atacado aquela fortaleza tempos atrás.
- Rizar, por favor – pediu novamente. - Se eu não conseguir dominá-la no tempo que te prometi... Eu seguirei suas ordens sem questionar – disse ele com a voz embargada. - Para ser sincero, eu também acho que não irei conseguir... Mas se eu quero continuar com isso... Tenho que ao menos provar pra mim que eu ainda posso lutar, entende?
- Está bem... – disse Rizar, concordando, ainda que em tom de negação. - De qualquer forma, é o tempo que ainda temos e só haverá uma única boa chance. Se não conseguir nesse tempo, peço encarecidamente que não interfiram. Eu irei providenciar transporte de vocês até Stormcrow como prometi, independente de seus resultados. Quando a noite da lua vermelha chegar e os generais dos reinos aliados se encontrarem, é quando terão a melhor oportunidade de chegar ao castelo das mil faces.
- É onde está Shasak, não é? – constatou Narthus.
- Sim, onde ele estaria – retrucou Rizar. - Terão os mesmos sete dias para encontrarem os mapeamentos que mencionei antes que ele tenha retornado. Infelizmente, não tenho qualquer contato por lá que possa ajudá-los, então terão que caminhar com suas próprias pernas.
- Quem é esse homem? – questionou ele.
- Um dos generais que hoje governam as cidades controladas pelos reinos aliados, Cavian, assim como Splenze. Dizem que ele acabou com reinos inteiros sozinho em uma única noite. São os rostos de suas vítimas estampados nas paredes que dão nome ao castelo que Rizar citou – completou Rixi. – Bem, pelo menos é o que contam as histórias.
- Uma das muitas verdadeiras, pequenina – disse Rizar. – A fama de Shasak o procede. Garantam que possam chegar no reino das águas antes dele, é tudo que lhe peço. Ele não é como os demais. Ele fará com que implorem para serem mortos antes de fazê-lo e possui olhos e ouvidos por todos os cantos daquela cidade.
- Entendo, tomaremos todo cuidado necessário – disse ele.
- Pois bem, discutiremos depois, quero lhes mostrar outra de nossas salas que tenho certeza que irão gostar – disse Rizar se dirigindo novamente ao portal, enquanto Cavian embrulhava cuidadosamente a espada para segui-lo, junto de seus companheiros.
Rixi
Andaram pelos corredores até que adentrassem a outro dos portais. Não era amplo como o que haviam conhecido, mas ainda assim bastante espaçoso. Eram tantas portas pelo caminho que eles nem saberiam dizer quantos mais poderiam existir. A única certeza era que, por um olhar de fora, seria impossível que aquele casarão comportasse tantos deles.
Tinha algumas arquibancadas laterais de madeira lustrada e aparentemente intocadas que se estendiam por metros acima, com novas portas e globos espalhados por todo teto, uns iluminados e outros opacos, em um simplista salão de apresentações com solo tão jovial que sequer apresentava ranhuras em sua superfície alisada.
Rixi se mantinha boquiaberta, pensando em quantas possibilidades estariam escondidas atrás das outras portas. Sacou novamente sua pequena caderneta, anotando os detalhes e desenhando as formas que ainda estavam vivas em sua cabeça. Divio a havia alertado sobre suas escritas dias atrás, antes que percebesse que se tratavam somente de contos inacabados com um toque irrepreensível de exagero, como este havia pronunciado, acompanhados de desenhos pouco intuitivos para mentes limitadas.
- Acabamos não o usando muito por enquanto com todas as encomendas que acabam ocupando nossas mãos, mas é um dos projetos que temos planejado para nos preparar – apresentou Rizar, orgulhoso, contemplando o local.
- É magnífico, Rizar! – exclamou Narthus. – Esse lugar é realmente uma caixa de utilidades.
Rizar riu.
- Temos que ser criativos, meu caro, já que atualmente não nos resta muito da realidade a nosso favor. Por gentileza, sintam-se à vontade, há uma dispensa com água e mantimentos e banheiros ao fundo caso necessitem – respondeu Rizar apontando os locais com os pequenos dedos. - Há um dormitório acessado pela porta ao lado à esquerda, onde também poderão se hospedar. Estarei observando ao longe e se precisarem de algo bastará que acenem... Ahh!... E antes que me esqueça, pedi para que preparassem algumas iguarias coletadas pela manhã, jovem Rixi, ao menos você poderei agradar – disse o gnomo se referindo certamente aos cipós frescos que cresciam naquela região. Ela certamente sabia do que se tratava quando um espontâneo sorriso tomou seu rosto.
- Não tenha dúvidas que serei implacável em minhas cobranças, meu senhor! – bradou ela confiante, com a voz eloquente, franzindo o cenho, ainda que seu porte a impossibilitasse de gerar qualquer temor.
- Não duvido mais de suas palavras, pequenina, parece ter o estranho poder de torná-las reais – disse Rizar se retirando.
- Está pronto, Narthus? – perguntou Cavian assim que o anfitrião atravessou o portal, depositando o pacote sobre o chão e desdobrando os panos que cobriam o objeto que pretendia domar.
- Ei, que história é essa?... Sou eu que dou o comando por aqui – murmurou ela franzindo o nariz, enquanto Cavian se levantou balançando os braços.
- Me desculpe, minha senhora, ao seu comando então... – disse Narthus a cumprimentando, ainda que parecesse que não tratasse a situação a sério como deveria. Era indiferente pra ela, eram dois cabeças duras, mas não havia dúvidas de que aprenderiam com o tempo.
- Não se canse rápido demais, meu amigo – brincou Cavian enquanto finalmente empunhava a espada ao chão, exibindo seus entalhes azulados.
Sob o sinal da pequenina mão, o príncipe dragão finalmente avançava, fazendo com que a cada lance golpes, os joelhos que o carregavam fossem puxados ao chão pelos pulmões que não conseguiam respirar além de poucos minutos.
Várias horas se seguiram até que seus olhos começassem a se fechar e abrir como janelas abertas ao vento. Não sabia quanto tempo se passara depois que começaram, mas nem mesmo os cipós deliciosamente duvidosos deixados por Rizar conseguiriam mantê-la ali por muito mais tempo. Estendeu seu velho paletó por ali mesmo e adormeceu sobre ele.
Cavian
Os cortes pelo ar correram pela noite e já era manhã quando o linho encharcado pelo suor começou a pesar. Era finalmente hora de descansar. Alguns avanços foram feitos, ainda que pequenos. Sempre a eletricidade fora liberada de seus punhos, reprimi-la era como tentar fazer com que as águas de um rio fluíssem contra a corrente.
Uma espada que ceifara a vida de Guilgon, a calamidade que guardara as montanhas acima das nuvens e de Gaulian, o dragão dourado, durante a era antiga, forjada pelos senhores do fogo e dos relâmpagos na extinta ilha de Essarit, onde os metais e as almas dobradas umas sobre as outras deram origem à lâmina de pouca largura, idealmente projetada para penetrar entre as duras e resistentes escamas que cobriam os imensos corpos dos dragões em sua forma original. Seria uma imensa tolice esperar qualquer facilidade em manejá-la.
Enquanto ele tivera a alma quase esvaída do corpo, Narthus parecia ter acabado de acordar depois de uma longa noite de sono. Mesmo que tentasse, não conseguira presenciar nenhum sinal de cansaço, mesmo que sutil, nenhum bocejo disfarçado, nenhum piscar alongado. Se haveria alguém melhor para acompanhá-lo em toda aquela loucura com certeza não conhecera.
No quarto dia, os avanços já eram significativos. Ele melhorara seus reflexos com a volta do uso de seus poderes e pôde finalmente acompanhar a velocidade dos movimentos do gigante acinzentado. O tempo se estendera o suficiente para que Cavian pudesse batalhar minimamente em condições aceitáveis e pela primeira vez a lâmina acertou Narthus.
Não foi um ataque potente, recebeu um soco em seu elmo, que o jogou para trás enquanto a ponta de sua espada alcançou sutilmente as costelas de Narthus, causando uma inesperada explosão. No momento em que a ponta da lâmina alcançou seu alvo, Cavian não conseguiu segurar o fluxo da corrente e um raio jogou o corpo do gigante contra as arquibancadas, que se partiram como folhas secas. Cavian sequer pensou quando sua mão soltou a espada, correndo rapidamente na direção do amigo que ao longe já sacudia a cabeça.
- Pelos deuses, me desculpe... – esbaforiu ele em tom de desespero se agachando para que pudesse escutar sua voz.
Narthus riu para seu espanto.
- Que belo ataque, meu amigo! Se estivéssemos naquela arena novamente é bem provável que tivéssemos outro resultado – brincou o gigante que olhava para o buraco aberto em seu colete orgulhoso, por onde era visível o pedaço de seu abdômen visivelmente chamuscado, ainda que sua pele fosse provavelmente grossa demais para ser atravessada.
Ele sorriu sem graça, coçando a cabeça ainda preocupado.
- Juro que não tive qualquer intenção...
- Esqueça, Cavian, não foi nada. É sinal de que está conseguindo controlá-la, não é? Antes mal conseguia mantê-la em mãos – disse Narthus lhe estendendo a mão para que pudesse ajudá-lo a se levantar, gesto que ele atendeu prontamente.
Passado o momento de tensão, a espada deixada no chão ainda era ainda estranhamente sentida por ele. Era a mesma energia que se apagava lentamente como na primeira vez. Era diferente da sensação de vê-la. Sentia como se aquela lâmina fizesse parte de seu próprio corpo. Dirigiu-se olhar para ela e estendeu o braço com a palma aberta e, como se pudesse alcançá-la em seus pensamentos, aplicou um pequeno pulso em suas mãos. A espada saiu do chão em que estava deitada e voou em sua direção, rodopiando no ar. Grudou a mão em seu cabo como um imã e ele finalmente sorriu olhando para Narthus como se tivesse achado um tesouro de raro valor.
- Bom, isso já é demais... Saia com isso de perto de mim – brincou Narthus enquanto ele gargalhava ainda incrédulo.
- Espere só ver a cara de Rizar e de Rixi quando verem isso – disse ele cravando a espada no chão.
- Espero que sim, assim poderá vivenciar o que me fez naquela festa – relembrou Narthus, referindo-se às histórias contadas por ele durante o Surmadiano.
Ele riu novamente.
- Sabe, por mais que haja mais dúvidas do que certezas em minha mente nesse momento, eu não vejo como teria chegado até aqui sem vocês – agradeceu ele, sentando sobre o chão para descansar. - Mais uma dívida que carregarei comigo.
- Pelo que me lembre você não pediu para que viéssemos – retrucou Narthus.
- Mas estão aqui, não estão?
- Assim como você – disse Narthus com um sorriso no rosto. - Não me entenda mal, meu caro amigo, mas temos nossos objetivos também. Não viemos até aqui para simplesmente acompanhá-lo em qualquer loucura que se proponha a fazer, seria um desrespeito a nossos próprios propósitos.
- Eu sei disso, mas não havia porque se arriscarem atrás disso, por exemplo – disse ele voltando sua mão à espada e encostando o dorso dos dedos na lâmina fincada ao chão.
- Persus o salvou com algum intuito – disse Narthus se agachando. - Talvez seja para derrubar seu pai do trono ou para que os libertos tenham a esperança de que nem mesmo aqueles que ditam as regras possuem controle sobre tudo... E para ser sincero, isso pra mim pouco importa, mas se há algo real, é que quanto mais se fortalecer maior será sua relevância em qualquer um dos contextos que se apresentarem e ela com certeza importará para o futuro dos povos – pausou por um momento, encarando-o com seriedade. - O que quero dizer é que eu faria isso por você independente dos laços de amizade que hoje partilhamos.
Ele sorriu.
- Entendo... Bom, que fique registrado então que seja lá o que for que tenham em mente, por enquanto tem executado com maestria...
- Acredite em seu propósito, meu amigo – aconselhou Narthus. - A maioria dos seres que conheço por vezes definem seus propósitos como irrelevantes... Mas pequeno ou grande, cada um tem um papel muito maior do que sabe nesse jogo de poder.
- Lembrou de minha mãe falando... ela sempre disse coisas parecidas, mas ela era uma pessoa de fé assim como você. Não quero que me entenda mal, Narthus, mas tudo que aconteceu até hoje só me levou a crer que o único poder real sempre esteve nas mãos dos próprios homens.
- São provações, meu amigo... Nem sempre as entendemos até que elas se findem.
- Acredita que todo esse sofrimento que temos presenciado seja apenas um jogo dos deuses?
- São as injustiças que moldam o caráter dos justos. Não é como se eu desconsiderasse o sofrimento daquelas pessoas... Mas quando a tempestade passar, será por meio delas que passaremos a não cometer os mesmos erros.
- Me desculpe, mas pra mim isso parece só uma desculpa para isentar a fé que possuem.
- Eles nos guiam, Cavian, é esse o papel deles. Se não pudéssemos escolher nossos destinos, seríamos apenas escravos de seus desejos, por mais nobres que fossem. Eles nos deram nossa liberdade de decidir, e com elas algumas responsabilidades. Nenhuma daquelas correntes foram confeccionadas por suas mãos e sim pelas nossas, são homens acorrentando homens para satisfazer seus próprios desejos. Ou você acha mesmo que tudo que tem acontecido até agora foi por mero acaso?
- Ainda não sei em que acreditar, muitas coisas se desmancharam ao vento durante os últimos anos. Fico pensando se um dia, se tudo que estamos fazendo der errado, você deixará de acreditar.
- Acreditarei que foi o papel que teríamos que cumprir para que tudo prospere novamente.
- Haha... Meu deus, você é impossível... – brincou Cavian. - Espero sinceramente que sua crença ainda me faça enxergar o propósito de minha própria existência, meu amigo, porque até agora, desde que decidi fazer algo que realmente importasse, só fui seguido pelo mais desordenado caos.
- O caminho que trilhará fará isso por mim, assim como fez comigo – disse Narthus com um sorriso tão calmo e certo quanto suas palavras.
- Pois bem... Em Aquia, as promessas são guardadas em pequenos tubos de madeira para que não se percam, vou fazer uma dessas para que eu possa cobrá-lo algum dia.
- Esse será nosso pacto de irmãos então – disse Narthus lhe estendendo a mão para que se levantasse. - Espero que daqui a alguns anos nos sentemos à sombra de Duir em uma bela ceia, na qual narraremos os contos esquecidos de Cavian, o guerreiro mais teimoso que meus velhos olhos puderam conhecer.
Ele sorriu, erguendo-se com a ajuda de Narthus.
- Fechado – concordou ele se livrando do pó de suas calças. - Só não espero que essa conversa toda não seja para ganhar tempo para descansar – emendou ironicamente ofegante e com os olhos estreitos enquanto mal se mantinha de pé, apoiando as mãos sobre os joelhos.
- Bom, acho que parte do objetivo foi cumprido... Então acredito que nossa treinadora não se importe se eu repousar por algumas horas enquanto você pensa em como vai arrumar toda essa bagunça – respondeu Narthus enquanto se retirava em direção aos dormitórios para seu alívio.
Ele riu se jogando de costas ao chão, ainda que o rosto por trás da máscara estivesse visivelmente lutando para respirar.
Cavian
Ao primeiro raio de sol do sexto dia, Cavian subia as escadas da mansão em direção à sala principal do casarão na companhia de Narthus e Rixi, onde Rizar ficava quando não estava em uma das salas secretas ou perambulando pelos afazeres que sua reputação exigia. As escadas se contorciam até o topo de seus três andares, com um tapete que parecia contar a história do mundo a cada passo, em desenhos estampados que se juntavam aos grandes quadros emoldurados dispostos ao longo das paredes. As pinturas ao chão pareciam se grudar aos tacos enegrecidos de madeira, de forma lisa o suficiente para que nenhum detalhe ficasse despercebido aos olhos minimamente atentos que se guiassem pelos corrimãos de entalhes finos e circulares.
Ao adentrarem o salão pela porta dupla já aberta, Cavian fitou o anfitrião, que se manteve concentrado lendo com seu monóculo acorrentado à orelha um papiro de folha jovem, até que se assustou com a presença de seus convidados. Não era comum que fossem procurá-lo de qualquer forma.
- Bom dia, meus jovens, pelo sorriso em seus rostos e pelo pouco que pude ver naquela sala – disse ele passando a mão por cima de um globo de vidro que agora mostrava o salão de treinos, vazia e com os remendos pouco efetivos feitos antes daquele dia na estrutura de madeira. - Acredito que tenha alcançado seus objetivos, jovem príncipe, estou correto?
Ele assentiu.
- É exatamente por isso que viemos. Precisamos entender o que deverá ser feito antes que possamos partir – disse ele tomando a frente, com a coragem que quase nunca lhe faltara.
- Hmm... sim... sim – murmurou Rizar. - Peço que inicialmente se acomodem – disse o gnomo apontando para as cadeiras, fazendo com que atendessem o gesto e se sentassem à frente de Rizar. - Apesar de confiar na capacidade de vocês, não é como se não houvesse riscos, dessa forma, é meu dever encontrar formas de minimizá-los. Dominar aquela lâmina era um dos passos lógicos para que estivesse de alguma forma perto do auge de sua boa forma, jovem príncipe, já o outro seria a data de reunião entre os líderes dos povos aliados, o que abriria uma janela essencial para o sucesso de nossas ações – continuou procurando e pegando o mais longo rolo de papel disposto na pilha ao seu lado. - É bem importante que vocês entendam o que exatamente tem que fazer e mais importante ainda, o que não devem fazer – ressaltou, encarando-os.
Desdobrou um pequeno mapa sobre a mesa. A cadeira de Rizar fazia com que parecesse mais alto, ainda que os braços curtos ainda dificultassem suas ações. Rixi estava desaparecida por trás da mesa quando em um movimento de mãos o ilusionista fez com que o estofado se erguesse como o dele, fazendo com que todos os olhos alcançassem o papel marcado com anotações que se estendiam com letras distintas, como se confeccionada por várias mãos.
- Vejam só, essa é toda arquitetura do prédio de Splenze que tenho mapeado nos últimos meses – revelou Rizar, batendo um dedo indicador sobre a mesa com os olhos fixos sobre o mapa. – Nunca foi um trabalho de simples execução, mas apesar de haver guardas por todos os lados, os escravos passam por eles como moscas, ainda que o lugar seja limpo demais para que elas circulem por lá – emendou o gnomo refletindo em voz alta. – Bom... Nessa parte subterrânea é onde são encontradas as celas e provavelmente onde Nuriel estaria presa – apontou ele para um desenho ao lado, repleto de quadrados e corredores que pareciam celas. – Mas é claro que se trata somente de uma teoria reforçada por nossas observações.
- E entendo que também possuem uma teoria de como entraremos lá, correto? – questionou Narthus. – Digo isso porque por mais que tenhamos o trunfo da ausência de Splenze, imagino que a segurança em contrapartida seja reforçada.
- Em teoria teríamos – brincou Rizar, apontando o indicador para Narthus. – Considerando o fato de que seria impossível que ele autorizasse a entrada de quem quer que fosse naquele lugar sem que ele próprio não estivesse lá, com exceção, é claro, da carruagem que levará mantimentos aos seus próprios guardas e prisioneiros. Dessa forma, caso conseguíssemos passar pela portaria eles seriam poucos, ainda que se tratem dos melhores guerreiros que o ouro possa pagar.... Bem, e finalizando... Considerando que tudo ocorra conforme planejamos, terão cerca de meia hora até que o exército disposto na entrada principal descubra que há algo errado, fazendo com que em poucos minutos sejam confinados como sardinhas naquele lugar.
- E assim serei obrigada mais uma vez e ficar aqui sem fazer nada – resmungou a fada franzindo o cenho.
- Pelo contrário, pequenina, é imprescindível que nos utilizemos de nossas melhores ferramentas mágicas, e isso inclui fazer com que vejam exatamente o que queremos – disse Rizar, encarando-a. - Sendo você a única que as conheceria o suficiente para utilizá-las – continuou fazendo com que o semblante fechado da fada fosse tomado pelo sorriso eufórico em um piscar de olhos. – E por tudo isso que já lhes expliquei – disse levantando o tom e ressaltando de forma vagarosa cada palavra, aproximando seu rosto de suas faces. – É importante que libertem somente Nuriel daquele lugar, entenderam? O poder dela nas mãos erradas, caso consigam utilizá-lo, é bastante perigoso para todos nós, ainda que de forma incompleta.
- Divio já havia nos alertado sobre seus dons... – disse Narthus.
- E Splenze fará o possível para ter esse poder em mãos – ressaltou Rizar. - Aquele porão é o templo do culto à maldade, meus jovens... Os escravos escolhidos por Splenze nunca voltaram de lá, e tenho certeza de que não é pelos mesmos motivos que os meus. Independentemente do que possam vir a ver, é importante que sigam o plano. Como eu disse anteriormente, é muito importante que entendam o que está em jogo por aqui.
- Há outros na mesma situação que ela? – questionou ele.
- Talvez sim, talvez não... É algo que nunca tivemos a oportunidade de descobrir. Tudo que sei foi dito a vocês nessa mesa – disse Rizar se recostando sobre o dorso macio de sua cadeira.
- Então, voltando à nossa discussão, depois de todas as etapas vencidas, quais seriam os próximos passos? – questionou o gigante metodicamente envolto aos traços de preocupação.
- Estarei esperando por vocês na estrada auxiliar sul marcada no mapa, que fica próxima à saída para Stormcrow. Terão ouro suficiente para calar todos aqueles que possam eventualmente ajudá-los, assim como prometi, mas ainda assim deverão ser cautelosos, aquela cidade tem olhos e ouvidos em cada beco escuro e muito mais do que seus sentidos poderão perceber. Além disso, nunca, em hipótese alguma, citem qualquer relação comigo. Tanto a carroça quanto o ouro que deixarei com vocês são irrastreáveis, mas tudo o que viram aqui estará vivo e pujante na mente de cada um de vocês. É por isso que fiz questão que conhecessem todas aquelas pessoas, seus filhos e suas paixões, para que pudesse me certificar de que estejam dispostos a arriscar suas vidas para protegê-los. Se certifiquem de que não sejam capturados vivos, é a única coisa que peço a vocês.
- Tem nossa palavra – disse ele prontamente, enquanto todos assentiram em uníssono.
- Sei que sim – sorriu Rizar. – Continuando, Shasak possui dois homens de confiança, um deles foi um mercenário em tempos passados, o que significa que não há nada nesse mundo que mais lhe importe do que o ouro – levantou uma moeda dourada marcada pelos reinos aliados que tirara de um dos bolsos de seu paletó e depositando sobre a mesa. - Então, há alguma chance de que ele se arrisque pelo que eu possa oferecer e pelo que já tem em mãos – referiu-se ao cálice. – Que certamente pode ter se perdido em um dos ataques a mim, pelos próximos dias.
- Não seria mais fácil que ele me entregasse ao meu pai? – retrucou ele.
- Seguramente que sim, caso o deixe acorrentá-lo sem contestação, já que sua cabeça hoje deve ser um dos objetos mais cobiçados entre todos aqueles que possam tomá-la pra si, o que inclusive fizemos questão de reduzir nos últimos dias – brincou o gnomo. - Mas a questão principal não é essa... Sirius sempre foi um apostador e um confronto direto com o filho de Bahamut não parece, pelo menos ao meu ver, como alguém que possui vícios parecidos, uma aposta de riscos aceitáveis... É bem provável que ele queira usá-lo para que você abra um caminho a ele que ele não pode abrir por si só, pelo menos não sem que afrontasse diretamente Shasak. Se você confrontar Garfane diretamente e morrer, ele ficará com o ouro, se Garfane morrer, ele ganha o poder, sem que precise mexer qualquer dedo e com todas as justificativas possíveis para que uma boa história seja contada, essa sim me parece uma aposta bastante promissora, assim como a que ofereci para que resgatassem Nuriel.
Ele assentiu.
- Parece justo – concluiu ele, ainda que já tivesse pensado em algumas complementações.
- Compreendo sua afixação por encontrar a princesa, jovem príncipe, por tudo que já chegou a meus ouvidos, mas não coloque a vida de seus amigos em risco sem ter certeza de que terá os meios para que pelo menos possa tentar protegê-los. O que os aguarda não é um parque de diversões para crianças e Shasak costuma ser bem dedicado com suas vítimas – alertou Rizar.
Ele assentiu novamente antes que fosse interrompido.
- Ei, Rizar, não falei besteiras, ninguém é babá de ninguém aqui... – murmurou Rixi.
- Desculpe, pequenina, dadas as circunstâncias só me pareceu...
- Pareceu errado... – interrompeu novamente a fada. – Estamos juntos nessa cada um por seu motivo... Inclusive você mesmo não aguenta mais todo esse lixo varrido pra debaixo do tapete, não finja que não se importa...
Rizar sorriu, cruzando os pés sobre a mesa e ajeitando o monóculo no rosto.
- Convicções... – pensou por um instante ajeitando os óculos sem hastes sobre o nariz. - Talvez sejam as únicas armas capazes de ignorar as probabilidades, pequenina – finalizou Rizar suspirando ainda que mantivesse o rosto contente. – E é bastante provável que elas tenham nos unido no dia de hoje. Sei que às vezes posso soar um pouco duro, mas se posso me permitir dizer algo para confortá-los – continuou o gnomo aproximando o rosto e encarando seus olhares de todos enquanto depositava as mãos cruzadas agora sobre a mesa. - Realmente acredito que o sucesso possa acompanhá-los... Afinal, assim como os filhos dos primeiros deuses hoje se proclamam seus sucessores, a história sempre pode voltar a se repetir, poderia voltar a se repetir em melhores mãos.
- Que as suas palavras nos acompanhem – agradeceu Narthus.
- E que o espírito da mãe verde guie seus caminhos – complementou Rizar. - Quando chegarem ao fundo daquelas águas nubladas, dê um abraço ao mestre Egen por mim.
Ele assentiu novamente, pensando que talvez pudesse trazer um pouco de paz em seu coração se conseguisse realmente revê-los bem.
- Ei, pequenina, tudo que precisa está na carruagem, lembre-se do que aprendeu naqueles galpões e saberá o que fazer – finalizou Rizar.
Cavian
Já haviam passado do portão principal. Cavian guiava a carroça sozinho com os sussurros de Rixi ao seu ouvido por uma das pedras que posicionara sob o elmo marcado pela guerra que escondia sua face, enquanto a fada transformava Narthus em uma pilha de deliciosos pernis defumados, além dos barris de cerveja quente que completavam a carga de entrega. Tudo devidamente conferido pelos guardas de entrada. Rizar deixara um globo de encantamento preparado, fazendo com que a fada tivesse apenas o trabalho de moldá-la. Eram como os globos de luz que havia admirado logo quando o conheceu e fazia com que Rizar pudesse estar ali sem de fato precisar estar.
- Entrega de suprimentos, senhor – disse ele, puxando as rédeas, cumprimentando o guarda com um aceno com a cabeça, enquanto observava um número menor de guardas do que Rizar tinha estimado. Talvez metade do que esperava, não sabia ao certo, a única certeza era que isso facilitaria as coisas.
Um dos guardas mantinha o olho nele enquanto outros dois verificavam a carga. Havia mais alguns guardando cada trecho do portão, empunhando lanças devidamente lustradas com penas douradas amarradas na base de suas pontas. As armaduras lustrosas também faziam parte do figurino e refletiam os globos de luz dos postes posicionados na estrada que passava à frente.
- Finalizado por aqui – disse um dos guardas mais atrás.
- Estão liberados, podem seguir – autorizou o primeiro.
- Muito obrigado, meu senhor... Cá entre nós, o lote de hoje está inigualável – sussurrou Cavian ao guarda com a mão ao lado da boca, referindo-se aos barris de cerveja – E se ainda me permite sugerir, mate sua sede antes que seus amigos se esbanjem sem você – debochou ele como Rixi o orientara, afinal, era um mercador, e segundo a fada eles sempre se vangloriavam de seus produtos, por piores que fossem.
De qualquer forma, por mais que Cavian desconhecesse as mazelas daquele mundo, não se tratava de uma escolha difícil se comparado à outra opção. Trabalhar como Bívios de carga, carregando toras enegrecidas sob o sol escaldante, parecia ser motivo suficiente para que executassem seus trabalhos com tanta eloquência.
- Apenas siga – ordenou o guarda sem qualquer olhar a ele, que conduzia a carroça aos fundos da casa, ainda mais impressionante que a de Rizar, com vitrais e janelas tão delicados e finos quanto as mais belas esculturas élficas, assim como os arbustos devidamente podados e arredondados sem qualquer rebarba ou a estrada lateral de brita fina que era tão plana quanto as águas de um lago, em uma clara obsessão aos detalhes.
A baixa ameaça de um único guia de cavalos não despertaria qualquer interesse daquele exército. Quando os portões se tornaram pequenos ao fundo a carroça finalmente virou a esquina, estacionando metros depois diante de um único portão de ferro. Nove guardas, Cavian contara pelo caminho. A espada estava no assoalho sob seus pés. Não chegaria a tempo em todos sem Narthus. Havia somente cinco barris para que carregassem. Não o suficiente para distrair todos eles. Ao chegarem a Narthus, por mais distraídos que estivessem, armariam-se rapidamente.
- Posso carregar os pernis se quiserem, demorarei um pouco mais, mas pelo menos não terão que aguentar o cheiro de carne curada em suas luvas... O cheiro acaba perdurando por dias – sugeriu ele aos guardas.
- Que seja – disse um deles recostado em um pilar mais ao fundo. – Nos mantenha confiante de suas boas intenções, caso contrário, suas mãos também farão parte de nosso banquete – ameaçou.
- Posso garantir, meu senhor... É com prazer que faço o que faço... Digo... Vocês são os heróis de nosso povo, sabiam? É uma honra poder servi-los... – gaguejou ele timidamente com a voz que mal saia de seus pulmões.
- Já que gosta de lamber botas, aproveite e carregue também os barris...
- Caso consiga... – riu o outro debochando dos trapos que Cavian vestia e de seu corpo arqueado.
- Ei, onde conseguiu esse elmo, bastardo? – perguntou um outro.
- Meu mestre o deu pra mim – disse ele, enquanto se abaixava para segurar momentaneamente o cabo da espada enquanto fingia amarrar seus sapatos. Já havia testado nos treinos puxá-la depois de um tempo, mas era preciso uma carga residual para que ela respondesse. O trapo grosso cobria seu braço, mas os traços azulados em sua mão poderiam condená-lo.
- Me dê aqui, deixe eu vê-lo – disse o guarda.
- Não posso tirá-lo, meu senhor, é um castigo que recebi por roubar alguns frangos para comer.
Os guardas riram.
- Um ladrão de comidas então, guardando a nossa carroça – zombou o terceiro fazendo com que ele se arrependesse da primeira história que viera em sua mente. Que tipo de mestre faria um ladrão de comidas transportar comidas?, pensou ele.
- Um mestre que quer testar seus escravos, meu senhor. Posso tirar o elmo se quiser, assim como poderia ter roubado todos os itens nesta carroça durante o caminho, mas é exatamente isso que faz este ser meu castigo, meu senhor. Por isso lhe imploro para que não me faça trair os desejos de meu mestre.
- Um escravo penitente... – observou o guarda que havia pedido o elmo, se aproximando. – Entendo, pois bem, só vá logo e deixe tudo organizado – completou o guarda para seu alívio.
Assim que desceu, manteve a postura arqueada, o que ajudava a parecer menor do que era e viu quando um dos guardas deixara o pé para que tropeçasse. Tropeçou caindo como um galho seco sobre a grama, arrancando gargalhadas dos guardas.
- Me desculpe, meu senhor... Eu... Eu não vi – implorou ele.
- Olhe por onde anda, idiota – debochou o quarto cuspindo sobre ele. – Ou suas mãos serão as coisas que menos sentirá falta – ameaçou o guarda rindo logo em seguida.
- Sim, senhor - disse ele se levantando e tirando os tufos de grama e terra que entraram nos buracos do elmo. Bem parecido com o que usara durante a batalha do coliseu, ainda que não ostentasse as garras laterais. Não saberia se o reconheceriam de qualquer forma mesmo sem o adereço, mas riscos precisavam ser minimizados sempre que possíveis, já que em batalhas desiguais, qualquer erro cobraria seu preço na relevância da mesma desigualdade.
Ele subiu na carroça se apoiando contra a cama do vagão, fingindo certa dificuldade para arrastar um dos barris.
- Ei, pessoal, cinco à direita, três à esquerda e um deles mais ao fundo que parece ser o líder. Jogue a lança nessa direção – sussurrou ele apontando um dos pequenos furos na lona para Narthus perto de um dos arcos que a sustentava.
- E quanto ao restante? – questionou a fada.
- Eu cuidarei deles, se Narthus tentar se mover, balançará a carroça demais e chamará a atenção. Aguarde o som do barril ao chão para que eu consiga estar perto o suficiente – disse ele descendo e colocando o barril sobre os ombros.
Cavian caminhou em direção ao portão de entrada da mansão como se o barril estivesse o espremendo contra o chão. Quando chegou em meio à fileira dos guardas, desceu o barril das costas e o som oco da madeira contra as pedras quase escondeu o zunido da lança que saira da carroça pelo rasgo aberto na lona que cobria o vagão no mesmo momento que Cavian estendera a mão. A lança cravou no ombro do guarda principal, jogando e prendendo-o contra a parede, enquanto Cavian viu a tentativa do homem em alcançar algo em sua cintura com a sua mão direita ainda livre. A lâmina que voou do assoalho havia acabado de chegar em suas mãos quando a lançou em um golpe certeiro. O cabo da espada bateu no elmo com força tamanha que foi possível escutar o tintilar do metal contra a porta, fazendo com que o corpo do guarda desfalecesse ainda que a lança cravada na porta o mantivesse de pé.
Menos um.
Os demais sacaram suas espadas enquanto a lâmina voltava em sua mão.
Ele girou agachado no chão para desviar das espadas que o perseguiram. Sua lâmina alcançou o da direita, centelhando contra a armadura de ferro e explodindo logo em seguida, o que fez com que o guarda atingido fosse jogado contra os demais. Já o outro deles, disposto no lado oposto, teve a perna agarrada por seus dedos, que se abraçaram contra o ferro frio, fazendo com que uma descarga densa de energia fluísse pela armadura como as águas de um rio, enquanto o guarda caiu sem qualquer revide.
Menos dois.
Enquanto os demais se levantavam, Cavian partiu contra os outros dois ainda de pé. A primeira lâmina veio por trás do primeiro corpo ainda em queda. Sua visão permitiu que visse todo o ataque, mesmo por trás do corpulento guarda, arqueando o corpo pouco o suficiente para que se desviasse do golpe. Trocou a espada para mão esquerda, e pegou o braço do primeiro guarda com a outra mão, puxando em sua direção e varrendo seu pé de apoio, assim como o guarda havia feito com ele minutos atrás. Com o corpo do guarda ainda no ar, Cavian aplicou uma cotovelada em suas costas, jogando-o contra o chão com violência.
Menos três.
Narthus e Rixi haviam descido da carroça e se puseram entre Cavian e os demais guardas, que se levantavam depois da queda. Somente o primeiro deles que recebera o ataque se mantinha ainda no chão em estado ainda incerto. Os demais partiram na direção deles, com exceção do que correu em direção ao corpo do guarda à frente do portão. Rixi estendeu a palma da mão e o jogou contra parede em um tiro tão invisível quanto potente, um que Persus certamente se orgulharia.
Aos três que sobraram, antes que a primeira lâmina partisse em sua direção, Narthus aplicou uma joelhada que alçou o pesado do corpo do guarda ao ar. O próximo golpe veio em uma girada rápida, aplicando o cotovelo contra o peito de aço, que afundou como uma folha de papel, jogando o segundo deles metros pra trás enquanto o corpo do primeiro guarda finalmente alcançou a grama fofa. Por último, a lâmina que chegou mais perto, mas que Narthus refletiu com o dorso das mãos, jogando-a ao ar. O temor do último guarda pareceu paralisar seus reflexos, fazendo com que olhasse atônito para o rosto de Narthus. O punho fechado do gigante bateu em seu elmo como um martelo, fazendo com que também desmaiasse.
O último guarda à esquerda havia corrido em direção à estrada. Cavian lançou novamente a espada e a lâmina atravessou pelo metal a panturrilha do homem, cravando sua lâmina no gramado em meio ao uivo de dor. A distância era grande demais para que escutassem qualquer ruído enquanto o homem tentava inutilmente estender seu braço limitado pela ombreira em direção à perna imóvel. O guarda alcançou o cabo da pacificadora antes dele, mas assim como ele da primeira vez, desmaiou no mesmo instante.
- Ei, Cavian, o que faremos com eles? – questionou Narthus.
- Temos uma corda no vagão, não temos? – disse ele, tentando sentir os batimentos morosos ainda que latentes dos homens caídos ao chão.
- Alguns bons metros – observou Rixi. – Mas sendo bastante sincera, não acho que temos esse tempo. Pelos seus estados, não deverão acordar por algumas boas horas e certamente não até que voltemos – continuou a fada, pegando um pequeno apito arredondado e uma das pedras de comunicação dispostas na cintura do homem preso à porta.
- Partimos então - disse ele, enquanto Narthus descravou a lança do guarda, coletando as chaves presas na cintura da armadura e encostando o corpo do homem gentilmente ao lado, enquanto ele finalmente abria a silenciosa e peculiar porta de ferro já destrancada.
Cavian
O mapa carregado por Narthus estava incompleto em mais de sua metade, mas o portal da masmorra estava ali marcado em traço robusto em um desenho certamente feito às pressas e sem medidas, mas que contava com elementos que permitiam a distinção e uma orientação clara dos passos. Cada globo de luz era marcado, assim como aberturas laterais e elementos de decoração e pilares.
Já haviam descido as escadas laterais tão retas quanto profundas que terminavam em um portal aberto e mal iluminado. Eram vários pilares esparsos que caminhavam apoiando abóbodas elevadas sobre suas cabeças, tão altas quantos os adonsoneiros fora dali. Celas ao fundo, indicavam as marcações e setas no pedaço de papel, ainda que houvesse outras portas pouco convidativas em seu entorno.
Ninguém aqui também, pensava ele agora preocupado com a ausência de guardas, enquanto se esgueiravam pelas paredes que tateava com os dedos pela superfície úmida, ainda que sem qualquer sinal de mofo. Nunca vira uma masmorra tão imaculada, apesar de não conhecer muitas delas. Pelo menos a que tivera o desprazer de vivenciar parecia mais aterrorizadora, como as das citações dos velhos livros.
Finalmente chegaram a um corredor à direita onde era possível ver as grades entrelaçadas e vazadas. Estas revelavam as silhuetas tímidas das criaturas que se afugentavam assustadas no fundo das celas profundas e espaçosas de portões largos, onde o único odor que se sentia era o do medo.
- Eles estão assustados – observou Rixi no ombro de Narthus, que guardava o mapa em uma bolsa lateral em sua cintura. - Mas Nuriel parece não estar em nenhuma dessas – continuou a fada com os olhos atentos.
- Talvez mais ao fundo... – insistiu ele. - Temos que achá-la rápido, estou com um mal pressentimento sobre esse lugar.
Caminharam por mais alguns metros. Alguns deles pareciam olhá-los com desconfiança. Alguns tão pequenos. Certamente crianças, quem poderia prender crianças?, pensou ele sem conseguir distingui-las. Cavian percebeu uma presença logo à frente e estendeu seu braço no peito de Narthus para que parasse.
Um pequeno ser se revelou nas sombras, ainda que não aparentasse ser qualquer prisioneiro.
Cavian segurou firmemente o cabo da espada ainda sem sacá-la. Estava colada sobre suas costas, em um dos truques que aprendera nos últimos dias de treinamento.
A aparência da criatura era inofensiva, ainda que qualquer instinto devesse ser posto à prova.
- Bilbons, bilbons... – resmungou a criatura em tom de aparente alerta, apontando para onde acabaram de vir.
Tinha quase o dobro do tamanho de Rixi, ainda que isso não parecesse muita coisa. Um focinho de porco comprido e exótico, assim como as orelhas pontudas que se assemelhavam aos seres das florestas. Seus olhos eram esféricos e pouco intimidadores, assim como sua boca larga, que mais parecia a de um sapo. Suas roupas eram bem cortadas e sua coleira era semelhante às utilizadas por outros escravos. Certamente um ser raro a olhos jovens e pouco aventurados.
Narthus e Cavian olhavam para Rixi esperando que talvez ela pudesse decifrar aquelas palavras.
- Ei, não olhe pra mim, não sei o que quer dizer... – respondeu a fada, observando com curiosidade a criatura. – Ei, pequenino, pode nos ajudar?
- Bilbons, bilbons... – continuou a criatura.
- Não sabemos o que quer dizer, poderia nos mostrar? – indagou Rixi.
A criatura apontava para a única coisa que era possível enxergar bem de onde vieram. Uma única porta de faces altas e afunilada em seu topo, com linhas arqueadas na ponta e puxadores esféricos de aço lustrado e claro à altura das mãos humanas. Vermelha como a lua de sangue e mais majestosa do que a da própria entrada principal.
- Há algum perigo atrás daquela porta? Não temos qualquer ideia de abri-la... Eu acho – disse Rixi confusa.
A criatura meneou a cabeça positivamente aparentando estar agoniado.
- Há algo lá, certo? – questionou Rixi mais uma vez se aproximando da criatura, enquanto apoiava a pequena mão em seu próprio queixo de forma interessada.
Bilbons assentiu.
- Quer que a gente saia daqui, certo?
A criatura novamente assentiu.
- Entendo... Veja, estamos procurando uma jovem moça, seu nome é Nuriel, uma moça com asas parecidas com as minhas, só que maiores e penugentas – explicou a fada. - Se conseguirmos tirá-la daqui faremos o que nos pede.
- Bilbons, bilbons... – disse a criatura rapidamente, enquanto corria com passos curtos em direção à mesma porta.
- Ei, forasteiros, o que ele disse é verdade - disse a voz feminina por trás das grades. - Se prezam por suas vidas, saiam imediatamente daqui. O doutor logo logo sairá por aquela porta – continuou apontando para o mesmo lugar que Bilbons indicara à outrora. - Estava sentada e calma com os braços sobre os joelhos. Os cabelos rosados e rebeldes que destoavam da monocromia de suas vestes coladas ao corpo e de sua pele, cinza como os filhos do continente rochoso ou das cavernas das florestas arroxeadas e brilhantes ao luar, ainda que sua estatura humana lhe habilitasse à segunda opção.
- Creio que a pessoa a qual se refere volte apenas daqui a alguns dias – disse ele.
A jovem meneou a cabeça negativamente.
- Não sei como ele os enganou, mas eu mesmo o vi horas atrás e ele continua em seu laboratório. É isso que Bilbons está tentando alertá-los.
Rizar os havia traído? Havia verdade nas palavras de Divio, em relação a isso não havia dúvidas, mas porque Splenze ainda estava ali? Sua mente se embaralhou naquele momento como uma pilha de cartas ao chão.
- Minha senhora, certamente ouviu quem viemos buscar. Sabe me dizer onde ela está? – disse ele sem titubear, voltando rapidamente ao plano original. Já estavam lá, não havia mais nenhum cuidado a ser tomado. Se fugissem sem Nuriel, e se houvesse qualquer pequena possibilidade de um mal-entendido, ela certamente estaria condenada.
- Além daqui - disse a jovem apontando preguiçosamente o dedo na direção em que caminhavam. - Bilbons os levarão até ela, ainda que a essa altura eu ache mais provável que me façam companhia.
- Obrigado, minha senhora – agradeceu ele, ainda que quisesse fazer mais perguntas. Porque ela estava ali? O que haviam feito para estarem em um lugar como aquele?, pensou enquanto hesitou por um breve momento. As ordens de Rizar vinham em sua mente como se o próprio ilusionista as tivesse recitando em seus ouvidos. Somente Nuriel deveria ser libertada, mais ninguém, mais ninguém, repetia para si mesmo.
Andaram por bons metros até que achassem a última cela. Era maior que as demais e as asas brancas podiam ser vistas a uma certa distância. Estava encolhida e deitada sobre um banco de pedras à direita.
- Ei, Nuriel! É você? – sussurrou ele animado. - Viemos buscá-la a pedido de seu pai.
A jovem se levantou imediatamente com os olhos estatelados. Sua aparência era muito similar à de seu pai, na qual nem as sobrancelhas ousavam em se apresentar para enfeitar a face lisa e sedosa.
- Já é tarde demais, os céus cairão sobre eles – alertou a Lumeriana repentinamente.
- Eles quem? – questionou Cavian, do que ela estava falando afinal?
- Meu pai os amaldiçoou quando pediu para que viessem até mim. Eu mesmo vi quando as brasas tomaram o campo abaixo dos olhos vendados pelos desejos velados – continuou Nuriel em palavras que careciam de lógica.
- Espero que possamos entender tudo assim que sairmos desse lugar – disse ele sacando a espada e a energizando antes de atacar a tranca das grades. No momento em que tocara uma das barras o brilho da espada se esvaiu, e o faiscar da espada contra o ferro, fizera com que repelisse a pacificadora em sua própria direção.
Antes que ele pudesse pensar, Narthus agarrou uma delas em cada mão e tentou afastá-las com determinação. As veias saltadas em seus braços desafiavam as barras suficientemente rígidas aos olhares perspicazes.
- É impossível curvar as obras dos artífices... – dizia Nuriel enquanto as barras finalmente cederam e se arquearam.
Ele sorriu ainda que ninguém pudesse enxergá-lo.
Antes que pudessem se animar, os olhos assustados e antes escondidos se espremeram contra as grades.
- Nos salvem, por favor – implorava um deles. Um pequeno e aparentemente jovem ser de cara redonda e pequenas barbatanas que saiam pelas laterais da cabeça.
- Por favor, meu senhor, nos tire daqui, o doutor não gosta de nós, ele... ele... só para quando paramos de chorar, meu senhor – dizia outra prisioneira de voz trêmula, que também trazia a esperança inocente em seu pedido, provavelmente uma nascida naquelas terras, que espremia seu corpo coberto de escaras e os olhos lacrimejados sobre as barras geladas.
Ele infelizmente não pôde enxergar suas faces, mas em sua mente era possível imaginar os olhos esperançosos por uma salvação que certamente nunca viria. Já os tivera certa vez. Um sentimento tão latente em seu íntimo que dilacerava a ferida recém-aberta. Hesitou novamente. Sabia em detalhes quais consequências lhe foram trazidas pelo atendimento dos apelos de seu coração ao invés da razão. Mas era diferente dessa vez. Não se tratava mais dele, e sim de outros que sequer conhecera. Pelos deuses, eram crianças ali, em busca de uma incerta salvação deveria sacrificar sua própria humanidade? Para vencê-los deveria se tornar igual aos seus algozes? Não parecia nem de longe a decisão correta.
Olhou para Narthus por um momento pensando no que dizer, ainda que soubesse que o faria independentemente de qualquer anuência.
- Não procure aprovação, Cavian – disse Narthus prontamente. – Lembra quando disse a você que as batalhas deveriam ser evitadas? Essa não parece ser uma delas. Além do mais, Nuriel está livre como prometemos e não é como se estivéssemos jogando tudo pro ar, se ele eventualmente nos encontrar é ele que estará sozinho conosco.
Ele assentiu.
- Levem as crianças para longe daqui, para onde sequer o destino possam alcançá-las e eu terei o prazer de acompanhá-los – disse a angelical dama se aproximando das barras entreabertas.
- Como se fossemos deixá-las... – ironizou Rixi baixinho, enquanto flutuava no ar. – Ei, Bilbons, onde estão as chaves das celas?
- Somente Splenze as tem, ele pessoalmente nos busca, um a um – respondeu Nuriel.
- Narthus, consegue repetir o que fez aqui? – questionou ele.
- Não será rápido, mas não acho que tenhamos outra opção – respondeu Narthus.
- Não sairemos daqui no tempo planejado, Cavian! – exclamou a fada.
- A informação dada por aquela mulher... O número de guardas abaixo do esperado... Não acho que tenhamos mais um plano seguro.
- Cavian tem razão – afirmou Narthus.
Rixi assentiu.
- Vamos retomar o que temos até agora... - disse ele. – O número de guardas que contabilizamos até o momento não parece um grande desafio, certo? Rixi pode levá-los à carroça e fazer com que Nuriel tome meu lugar. Será difícil que percebam a diferença de tamanho. Ainda assim, caso Splenze saia por aquela porta ou caso os guardas desconfiem de vocês, fora daqui eu e Narthus daremos cobertura para que fujam, depois disso daremos um jeito de sair desse lugar, a não ser que arrumem celas novas – completou brincando.
- Parece bom o suficiente pra mim – respondeu a fada. – Ainda que aquelas histórias ainda me deem calafrios...
- Outra coisa importante – alertou ele. – No mapa, pelo que Rixi comentou no caminho, havia partes ao norte riscadas que parecem inabitadas ou tomadas pela floresta. Acho que pode ser nosso novo ponto de encontro. Há várias coisas mal explicadas por aqui... E bem, acho que precisamos tirar algumas coisas a limpo.
- Olhe, Cavian, sabe que eu seria a primeira a concordar com você – disse Rixi – Mas acho que embora tenham ocorridos contratempos inesperados, não acho que tudo que vimos se trate de um devaneio... De qualquer modo vamos discutir isso depois que sairmos daqui.
Cavian assentiu, tomando a decisão da fada como suficiente para o momento, enquanto Narthus corria de cela em cela, entortando as densas barras de metal somente o suficiente para que pudessem libertá-los.
Rixi voava entre os agora libertados, organizando o grupo com ajuda de Nuriel. Eram em torno de vinte deles, alguns tão jovens que tinha dúvida se sabiam o que se passava ali.
Bilbons correu e se abraçou no pé de Cavian com toda a força que possuíra, fazendo com que ele se abaixasse.
- O que foi, pequenino? Bilbons seu nome, não é? – questionou ele gentilmente.
A criatura assentiu.
- Bilbons, bilbons! – apontou ele, parecendo desesperado para cela da menina de cabelos rosados.
- Não se preocupe, vamos soltá-la também, ela é importante pra você, não é?
Bilbons assentiu novamente.
- Então faremos o seguinte, você também deve saber o caminho para fora daqui. Me ajude a organizar os demais. Não deixaremos ninguém pra trás.
- Bilbons, bilbons – repetia ele, aflito, apontando para a mesma porta de antes.
- Escute só - disse ele se agachando e apoiando a mão sobre o ombro da criatura. - Sei que está aflito com a situação, mas também somos fortes. Sairemos daqui juntos, entendeu? – afirmou ele confiante ao ponto de parecer acalmar a criaturinha afável, que atendeu rapidamente o que lhe fora solicitado.
Narthus chegou à cela da menina com quem haviam conversado.
- Vocês não têm ideia do que estão prestes a enfrentar, não é? – questionou a prisioneira ainda imóvel com o cotovelo sobre a perna dobrada sobre o banco de pedras.
- Não entendi a pergunta, senhora, mas isso não iria mudar nossas decisões, se essa é a dúvida – explicou espremendo os olhos e os lábios ao tentar deformar as barras.
Antes que terminasse foi possível ver o rangido da robusta porta avermelhada.
- Tic tac, o tempo acabou... – disse Mika finalmente se levantando e andando em sua direção. - Se quiserem sair daqui vivos, termine de me tirar daqui - disse a dama enquanto Narthus terminava de abrir mais uma barra. Assim que a abriu, a misteriosa senhorita pulou rapidamente pelo vão em um rolamento tão silencioso quanto seus próprios passos.
- Ratos no laboratório! Faz certo tempo desde a última vez que desfilaram suas patas imundas aqui – bradou a voz pigarreada e rouca de Splenze enquanto ele encarava a criatura humana de cabelos brancos e longos que cobriam parte dos olhos azulados de brilho incomum. Uma massa crescia sobre suas costas e a túnica de detalhes vermelhos e dourados que se arrastava até o chão era a única barreira a contê-la.
- Muito prazer, doutor. Viemos fazer uma pequena festa em seu porão, espero que não se incomode – disse ele enquanto sacava a espada e a lâmina se iluminava em sua mão direita. – Ei, Narthus, termine de libertá-los enquanto o distraio – completou chamando a atenção de Splenze para Narthus.
- Volte para cela, Mika, e prometo que os pouparei – disse Splenze à jovem de cabelos rosados.
- Desculpe, não os conheço, mas só de parecerem partilhar do meu desejo de fechar essa sua boca de palavras vazias, já parece o suficiente pra mim – disse Mika assoprando os cabelos compridos para longe do rosto despreocupadamente.
- Bom, se é assim que deseja, ao menos terá novas companhias pela manhã – disse Splenze gargalhando enquanto a massa em suas costas já havia triplicado de tamanho. – O filho morto de Bahamut, Cavian, não é? Parece bem longe de casa, garoto.
- Foi você que botou isso na minha cabeça, não foi?
Splenze riu.
- Certamente, mas pelo que vejo parece ter gostado – ironizou Splenze, enquanto sua face parecia também borbulhar.
- Ou talvez ela não tenha me atrapalhado o suficiente para que eu não conseguisse chegar até você. Garanto que deve ter achado que eu nunca cruzaria seu caminho novamente.
- Não me leve a mal, garoto, eu queria tê-lo estudado com mais afinco, confesso – a túnica começara a se inchar ao ponto das costuras se forçarem umas contra as outras, fazendo com que inclusive o homem ganhasse certa altura. Era algo parecido com o que acontecia ao seu pai em sua forma original, ainda que duvidasse da semelhança entre as origens. - Conheço muito menos dos dragões do que gostaria, mas seu pai impediu que fosse dissecado como um pequeno rato. Eram dele as ordens para mantê-lo vivo, mas de minha parte deveria agradecer por carregar consigo uma obra prima de minha arte. Talvez nem eu mesmo tivesse a capacidade de replicá-la, foram dias e mais dias de costuras e metais dobrados para que ele se tornasse unicamente sua.
- Faremos com que confesse como retirá-lo – disse ele sem esmorecer. A chave para liberdade estava diante de si e nem mesmo a morte, que o acompanhara por anos naquelas masmorras, o assustaria.
Splenze riu novamente.
- O sangue de seu pai de fato corre em suas veias, garoto, ainda que só confiança não baste. Acha mesmo que um bando de moleques teria qualquer chance contra mim? Continua tão burro quanto na época que tentou fugir do conforto de suas tradições – disse Splenze, enquanto as costuras das túnicas se partiam, revelando o que as histórias desacreditadas da fada já tinham indicado. A cabeça de leão e chifres que se torciam em sua face ainda levemente humana. A língua bífida e comprida que parecia não caber dentro de sua boca. A pelagem espessa e amarronzada cobria os novos braços, seis no total, assim como uma cauda de ferrão brilhante, como a dos escorpiões das cavernas desérticas de Dargal. Um quebra cabeça de seres, grande o suficiente para que fizesse com que Narthus parecesse uma criança. – Te mostrarei o terror dos novos tempos! – bradou Splenze.
Mika
Mika se mantinha atenta ao que Splenze se tornava, já havia visto partes do processo, mas nada como aquilo. Eram ainda formas desajustadas daquilo que carregava em suas veias, daquilo que fez com que ela se tornasse uma versão espelhada de seu criador. Faria com que Iliria fosse vingada, não havia sequer um minuto no qual os planos não se moldavam em sua mente, e de todos eles, nunca nenhum tinha chegado perto do que tinha em mãos agora. Sequer sabia que aquelas barras podiam ser torcidas, nem mesmo os outros seres de antes, inclusive maiores do que aquele homem o fizeram. Aliados poderosos a favor de seu propósito, nada poderia ser mais útil.
- Ei, Vinoliana – disse Mika chamando Rixi, fazendo com que a fada a encarasse surpresa. Certamente poucos conheciam suas linhagens, dentre eles mais raros ainda eram aqueles que conseguiriam diferenciá-los. – Se não saírem daqui agora, em alguns minutos haverá uma legião sobre os portões.
- Quem é você? – questionou Rixi.
- Uma fugitiva como vocês. Apenas se apresse como pedi, Bilbons poderá ajudá-los, certo, Bilbons?
- Bilbons, bilbons – disse a criatura assentindo com a cabeça, antes que partisse correndo com os joelhos que mal se dobravam em direção às escadas, fazendo com que meneasse de um lado para o outro em casa passo como um pêndulo dos velhos relógios.
- É o único que pode sair desse lugar e conhece a cidade com os olhos vendados, se ele os acompanhar certamente não desconfiarão – continuou Mika, olhando a volta sem que encarasse a fada.
- Vai ficar bem? – questionou Rixi a Narthus.
- Achei que eu fosse aquele destinado a estabelecer a nova hierarquia dos reinos – respondeu Narthus, esfregando a mão carinhosamente na cabeça da fada.
Rixi não resmungou daquela vez e nem sorriu, apenas assentiu antes que partisse com olhar onde a preocupação e a convicção se misturavam.
- Narthus, não é? Consegue arrancar essas barras dessa parede? Se conseguir, podemos utilizá-las para deixá-lo vulnerável – disse ela a Narthus, que a encarava com atenção.
- Quantas precisaremos? – questionou o gigante.
- Quantas conseguir, seu amigo não aguentará muito tempo lutando sozinho. Vamos utilizar a distância em nosso favor.
Narthus puxou uma delas contra a força que aplicara com os pés a base, arqueando o corpo e esticando os braços até que o topo de uma delas finalmente cedesse. Uma após a outra foram sendo tiradas e torcidas para que se desvencilhassem das rochas que as prendiam ao chão igualmente rochoso.
Cavian encarou a criatura e após se desviar de alguns golpes, aproximou-se inconscientemente deles. A calda se armava para atacar, enquanto a língua corria de um lado para o outro em balanço. Um predador com olhos fixos em sua presa, ainda que esta o encarasse com rebeldia. Antes que se aproximasse ainda mais, Cavian inesperadamente correu em direção à criatura, enquanto os braços longos contra-atacavam em direção oposta. Pulou como um acrobata por cima do primeiro golpe, enquanto o segundo veio pela esquerda. Antes que pudesse alcançá-lo, o príncipe dragão dobrou seu corpo e girou a espada de forma veloz, fazendo com que lâmina brilhante decepasse alguns dedos da criatura como se passasse por uma camada de tecido macio. Cavian se tornou um pequeno e perigoso adversário, mas antes que pudesse comemorar qualquer vantagem, a cauda de Splenze o atingiu com potência, jogando-o contra a parede de pedras entre as celas como um pequeno inseto.
Splenze avançou sobre ele quando foi interrompido pelas falas de Mika.
- Aquele rosto de senhor deprimido não combinava mesmo com você – ironizou ela franzindo o nariz e circulando o dedo sobre sua face. Na sua outra mão ostentava um pedaço das barras retiradas por Narthus.
- Não se meta se não quiser se machucar – ameaçou Splenze, virando-se contra ela.
Ela gargalhou fervorosamente.
- Já não acha que é meio tarde pra isso? Você já arrancou tudo de mim - esbravejou lentamente enquanto as lágrimas tomavam seus olhos. - Vou fazer com que se afogue em suas mentiras e vou queimar cada pedaço daquilo que é precioso pra você.
Ela avançou em um impulso de fúria enquanto Cavian recobrava suas forças. Ela se movia tão rapidamente quanto o príncipe herdeiro, tão rápida quanto o dançar das sombras. Uma elfa da noite em seu habitat natural em meio às rochas mal iluminadas pelos globos presos às paredes.
Splenze avançou sobre ela, tentando acertá-la com um dos punhos, fazendo com que ela pulasse para trás com seu leve corpo rodopiando uma única vez no ar. A elfa da noite caiu com as pernas flexionadas e o bastão em riste.
Partiu novamente contra Splenze, enquanto o punho da criatura cortou o ar como antes. Apesar de vigoroso, aquele corpo grande parecia atrapalhá-lo de certa forma. Ela saltou novamente sobre o punho de Splenze, desviando do ataque e dando dois passos sobre seu braço antes que saltasse no ar. Estendeu o bastão sobre sua cabeça e acertou em cheio o peitoril coberto pela pelagem agora tingida pelo sangue arroxeado. Mika aterrissou na frente de Splenze, que tentou um pisão enquanto grunhiva enraivecido. Ela novamente rodopiou para trás com as mãos ao chão se afastando.
- Ele é lento nessa forma, só tomem cuidado com a quantidade de ataques – disse ela a Cavian e Narthus sem que desgrudasse os olhos da criatura. Splenze era grande demais para o espaço que estavam, o que o favorecia em alcance. Era necessário limitar seus movimentos. – Ei, moço da máscara, temos que acertar seus calcanhares, assim não poderá se mover. Acha que consegue alcançá-los?
- Posso tentar, mas são muitos braços para lidar – respondeu Cavian ainda um pouco ofegante. O impacto do golpe fora grande o suficiente para que lhe tomasse o ar.
- Iremos em dois então, temos que criar uma distração para que Narthus possa nos ajudar – partiu ela novamente enquanto Cavian a acompanhava pelo lado oposto.
Desviavam dos golpes ainda que não conseguissem qualquer abertura para atacá-lo. Se encurtassem a distância demais, certamente seriam atingidos. Foi quando uma das barras atiradas por Narthus atravessou o braço de Splenze como se uma lança o tivesse perfurado. Dificilmente uma lança em alta velocidade seria parada sem um escudo, e o alvo era grande demais para que errassem, a arma perfeita para um oponente como aquele. O corpulento torso girou na direção do gigante, jogando a cauda contra Mika e depois contra Cavian. Diferente de seus ataques com as mãos, a cauda era corpulenta e veloz o suficiente para acertá-los naquela distância. Mika foi atingida e jogada contra a porta avermelhada. Cavian tentou acertá-lo, mas a superfície da cauda era revestida por uma carapaça dura, assim como a do Basilisco de outrora. Antes que a lâmina terminasse de adentrá-la, a força do golpe que atingira o pulso de Cavian fez com que a pacificadora fosse jogada para longe.
Narthus pegou mais uma barra e a jogou contra Splenze, enquanto a criatura continuava a caminhar em sua direção. A segunda atravessou o mesmo braço atingido anteriormente, que Splenze passou a utilizar como um escudo de carne que o permitiria utilizar os outros cinco restantes.
Narthus tentou atingir a cabeça do monstro, ainda que não tivesse sucesso. Splenze já estava perto o suficiente para que os braços o cobrissem. Foi então que pegou um punhado delas e as jogou contra o corpo do monstro, mas dessa vez sem qualquer altura. As barras de metal atravessaram por baixo das patas de Splenze até que se chocassem contra as pedras.
- O medo parece ter piorado sua mira, meu caro – ironizou Splenze prestes a atacar o gigante, que somente sorriu enquanto revidava o soco de Splenze com outro na mesma direção. Quando os punhos se tocaram, o som oco do ar deslocado ecoou pelo salão. Mais um golpe veio pela esquerda, também parado pela palma do filho das terras cinzentas, e ainda mais um deles avançou pelo outro lado, mas antes que Narthus tentasse se mover, o corpo de Splenze levou um dos joelhos ao chão. Cavian havia ceifado um de seus calcanhares, enquanto Mika acertara uma das barras em seu ombro.
A criatura soltou um urro zangado, tão alto que provavelmente alcançaria as paredes fora daquele lugar. Elevou sua cauda rapidamente em um impacto certeiro contra o teto, fazendo com que as rochas que o compunham caíssem como meteoros ao chão, desabando a estrutura sobre suas cabeças e fazendo com que o salão de cima se revelasse, ainda que timidamente atrás da cortina de pós que se levantara.
Narthus se desvencilhou dos escombros, enquanto Cavian tinha conseguido se deslocar para uma das frestas entre os pilares. Splenze se moveu, arrastando-se forçosamente sobre as pedras. Mika estava ao chão com uma rocha em cima de sua perna esquerda. Uma grande o suficiente para que não pudesse se mover dali.
- Eu te alertei, não foi? – suspirou a criatura, enquanto a decepção acompanhava suas palavras. - Tentei fazer de tudo para que entendesse a importância de minha missão... Mas mesmo diante de meus esforços, você preferiu dia após dia relutar contra esse futuro grandioso que poderíamos alcançar juntos, eu e você, pai e filha, uma pena sua rebeldia a levar ao mesmo destino de nossa querida Iliria – continuou se posicionado à sua frente.
- Não tente completar sua vida vazia com pessoas como nós – respondeu enquanto espremia os olhos tentando puxar a perna sobre a rocha em vão. Sua feição enojada pelas lembranças que reverberavam em sua mente, encarava Splenze com furor. – Ela talvez tenha tentado, mas nunca conseguiu te amar, era só a culpa que mantinha por alguém que pagava as contas. Pensando agora, talvez lá no fundo ela soubesse... A criatura patética que você guardava dentro de si.
Splenze sorriu.
- Ah, minha cara, sinto muito ao dizer que minha amada Zendra ficará comigo por toda a eternidade. Você e sua irmã foram somente consequências infelizes desse amor. Eu realmente me esforcei por ela, mas você tem me desobedecido tanto... Mesmo eu tendo dado tudo o que tem agora – lamentou com a voz pigarreante. - A desobediência sempre tolerei, era a essência primitiva dos seres mais fracos que tentam desesperadamente ascender... Era belo... E me lembrava tanto dela... Era como o início da criação, caótica e imprevisível... Mas a ingratidão... Tsc, tsc... Ela realmente me entristece. Terei que arranjar outra forma de me ajudar, minha querida – disse Splenze apontando o ferrão em sua direção.
- Os ventos estão mudando, não demorará muito para que se junte a mim – confrontou ela.
O ferrão voou em sua direção enquanto seus olhos se fechavam e seu rosto se virava, aceitando o inevitável destino, mas no instante seguinte nada aconteceu. Quando abriu os olhos novamente, era Narthus que estava a sua frente. O ferrão havia atravessado o estômago de seu salvador, enquanto este abraçava a cauda de Splenze com avidez.
As pernas de Splenze que haviam restado cederam. Cavian dilacerou cada tendão que sustentava o corpo colossal.
Splenze tentou puxar o ferrão com força por mais de uma vez, mas Narthus o impedia de se mover. Os socos vieram em sua direção e seu corpo se mantinha como os rochedos das montanhas de onde nascera. Imóvel e inabalável como os filhos daquela terra. Muitos lembrariam do príncipe mestiço que se manteve de pé diante do monstro, enquanto Mika tentava desesperadamente se mover para ajudá-lo, continuando a puxar inutilmente a perna esmagada entre as rochas, até que os socos cessaram como a calmaria depois da intensa tormenta.
Cavian
A lâmina iluminada atravessou o largo pescoço da criatura, ao mesmo tempo que parecia roubar o brilho azulado dos olhos, agora rodopiavam quando jogados ao vento. Naquele pequeno instante, sua mente pareceu ter se apagado por completo. Quando voltou a si e aterrissou ao chão, a cabeça de Splenze rolou sobre o chão enquanto a silhueta de Narthus parecia se apagar a cada segundo.
Ele correu a Narthus enquanto o cheiro de sangue fresco o nocauteava pelo medo.
- O derrotamos, Cavian, eu disse que você conseguiria – observou Narthus contente, sem qualquer abalo em sua voz. No fim era tão corajoso quanto o mentor que o ajudara e por ironia do destino provavelmente partisse da mesma forma.
- Vamos salvá-lo, Narthus, Rixi saberá o que fazer – disse ele enquanto as lágrimas umedeciam a face por trás do elmo. O ferrão abriu um rombo do diâmetro pouco menor que um tonel de carvalho. Seria impossível que sobrevivesse ainda que sua mente implorasse para que a verdade não se apresentasse naquele momento.
- Obrigado, meu amigo... Já fui salvo mais vezes do que pensa, mas até isso parece demais... Talvez eu tenha completado finalmente minha missão – completou Narthus com o sorriso que não abandonara seu rosto.
Mika se mantinha quieta com as mãos nas costas do gigante.
Os braços finalmente se soltaram, ainda que o corpo de Narthus permanecesse de pé. Cavian retirou o ferrão que atravessara seu corpo, jogando-o pra trás enquanto a corpulenta carcaça tombava ao lado. Abraçou o amigo antes que fechasse seus olhos em mais uma morte que aparecera em seu caminho. Nem as vidas salvas naquele dia seriam suficientes para confortá-lo.
Deitou o corpo de Narthus ao lado e fatiou a rocha que prendia o pé de Mika.
- Consegue andar? – disse ele com a voz embargada, enquanto observava o pé de Mika retomar à forma original, como se a elfa da noite conseguisse remoldá-lo.
Mika assentiu.
- Posso cuidar dos guardas – disse Mika. - Sei que seria tola em tentar encontrar algum pagamento para diminuir a dor de vocês, mas ficaria honrada se ao menos eu pudesse ajudá-los a sair daqui para que pudesse devolvê-lo ao seu lar – continuou ela dirigindo seu olhar ao corpo de Narthus.
- Venha conosco, ajude aquelas pessoas a fugirem desse lugar.
- Eu não saio desse lugar desde minha infância, é o único mundo que conheço, Cavian, como alguém como eu poderá ajudá-los?
- Quando estivermos fora daqui, encontrará apenas poucas pessoas dispostas a lutar contra o que Splenze representa. Eu não posso imaginar o que passou, mas se juntar a essa causa talvez impeça que outras pessoas não tenham o mesmo destino que você viria a ter nesse lugar. Narthus... Bem, ele era mais uma pessoa que se foi por acreditar que poderíamos detê-los.
Mika pausou em pensamentos por um momento.
- Que seja, talvez eu possa ter pensado em algo, mas primeiro vamos tentar sair daqui – disse Mika enquanto caminhou até Narthus e puxou o corpo encostado nas pedras.
- Espere... – dizia ele, enquanto Mika erguera o gigante sobre os ombros.
- Sim? – questionou Mika.
- Esqueça – respondeu ele ainda tentando recordar suas lembranças de Osian. Eram criaturas formidáveis, mas salvo engano não eram capazes de tal feito pelo que se lembrava, ainda mais com um pé naquela situação, mas ali não era local para perguntas. Era bem provável que todo aquele barulho tivesse chamado a atenção dos guardas. As entradas estariam sob vigília e certamente a essa altura já haviam descoberto a invasão. Seria bom que pudesse manejar sua espada livremente.
Cavian escalou algumas rochas e subiu até o andar de cima, seguido de Mika. Aproximou-se da porta principal e sua suspeita se confirmou. Expandiu seu campo de visão em um pulso e por um breve momento pode vê-los. Armados, com as espadas desembainhadas e lanças apontadas em direção ao casarão, com os sentidos atentos a qualquer sinal que lhes fosse dado. Não invadiriam o castelo sem permissão, mas tampouco deixariam que alguém saísse de lá.
- Ei, Mika, estão atrás desses portões. Não temos muita saída a não ser confrontá-los. Não pude perceber a carroça, então Rixi e os outros provavelmente estarão esperando ao norte como combinado.
- Eu imaginei, só quis que subíssemos para que garantíssemos que todos estivessem a salvo. Pelo laboratório talvez possamos alcançar os esgotos. É bom que se mantenham atentos à porta, assim podemos passar despercebidos sob seus pés.
Mika
Seus pensamentos ainda reverberavam em sua mente agitada. Narthus sequer a conhecia. Como poderia se sacrificar por ela? Não tinha qualquer obrigação e mesmo assim não hesitou em se colocar à frente da morte. Talvez os contos que lera quando criança não fossem mera ficção. Talvez realmente houvesse alguém como o herói daquelas histórias, alguém que ela pudesse realmente confiar, alguém que ela novamente perdera.
Cavian a acompanhou até o laboratório. As portas grandes finalmente se abriram. Um salão imenso, de jaulas penduradas ao teto com corpos que já não estavam mais ali, assim como os ganchos que desciam como cipós, lunetas presas sobre pés de metal e mesas lotadas de papéis amarelados recheados de anotações, que se espalhavam em pilhas alinhadas sobre grande parte de sua extensão. No meio de tudo aquilo, a parte que mais chamaria atenção a qualquer um que adentrasse aquele lugar. Uma torre cilíndrica de vidro apoiado sobre uma base de metal com cabos que se ligavam à sua base e um conjunto de globos de tomásio que se prendiam à parede encaixados perfeitamente nos buracos redondos e escavados. Ao centro uma mulher de cabelos embranquecidos que pareciam flutuar paralisados no grande bloco de gelo. Nunca imaginou que pudessem manter um pedaço das montanhas congeladas tão longe de sua origem. As mãos unidas pareciam orar pela eternidade e a pele beijada pelo luar e as orelhas longas e afuniladas não negavam sua semelhança com a menina que a observava com admiração, sem que sequer piscasse seus olhos, por alguns longos segundos.
- Há algo que preciso fazer, Cavian – disse ela enquanto olhou à sua volta e finalmente se dirigiu às longas mesas.
Cavian assentiu.
Pegou alguns frascos de vidros contorcidos de soluções esfumaceantes, nas suas mais distintas formas e cores. Precisava ainda de certa quantidade de resina de adonsoneiro, enxofre das terras vulcanizadas, a alma extraída dos óleos enegrecidos e viscosos e o pó das pedras esbranquiçadas das minas. Todos se misturavam na imensa prateleira que se grudava e cobria a parede. Quem não soubesse o que estava procurando certamente se perderia, mas ela procurava na fileira de cores dos frascos de vidro âmbar a tonalidade que se misturaria ao laranja. Correu os olhos por mais de cinco prateleiras até que encontrasse. Pegou um pedaço de corda de cânhamo abaixo de uma das mesas, um globo preso à parede, uma pederneira em cima de uma das mesas e uma caixa de madeira para depositar todos os frascos que carregava consigo. Depositou-a sobre um canto ao fundo e desfiou a corda, embebedando-a em óleo antes de levar as pontas de fios finos e despenteados aos pequenos frascos com alguns dos materiais já misturados.
- Se afaste, por favor – disse ela a Cavian enquanto caminhou novamente em direção à porta, desenrolando o fio em sua mão.
Andaram por alguns metros em direção à porta. Pegou uma pederneira em um de seus bolsos sobre a mesa e faiscou o pavio que acendeu a corda desenrolada. Não demorou poucos segundos até que viesse a explosão. Embaixo da casa de soluções, um fosso de paredes toscas se revelou e de seu fundo mal iluminado se ouvia o chiado das águas lentas, enquanto as narinas eram tomadas pelo odor fúnebre que se espalhara pelo salão. A abertura era grande o suficiente para que descessem sem dificuldade. Cavian se aproximou. Abaixou a cabeça por um momento tentando achar algum vestígio de vida que pudesse lhe orientar.
- Tem certeza que é seguro? – questionou Cavian.
- Até nós alcançarem espero que estejamos longe daqui - disse ela antes que Cavian finalmente saltasse.
Recuou um pouco e, segurando a borda de uma das mesas longas, virou-a sobre o chão. Uma outra mais ao lado fora afastada com a sola de seu pé. Os vidros estilhaçados se misturavam e as soluções instáveis borbulhavam ao se encontrarem uma com as outras. Retirou o globo de sua cintura. Eram instáveis ao impacto e faíscavam em um rápido flash ao se quebrarem. Ela olhou para última vez para a torre de gelo por um segundo a mais.
Descanse, minha mãe, cuide do papai e de Ilíria por mim, pensou antes de atirar o objeto contra o chão encharcado.
A chama subiu em um clarão antes que ela também saltasse. O fogo e a fumaça os encobririam por algumas horas, mas sabia que havia deixado muito mais para trás. Por um momento teve o mesmo desejo do monstro que habitava aquele lugar, mantê-la ali para que pudesse ver seu sorriso sempre que precisasse se reconfortar, era tentador se apegar a única coisa que lhe restara ao seu único abrigo, ainda que tão igualmente doentio. Era como seu pudesse ouvir o desejo de que a deixasse finalmente partir, e por ela o fez.
Cavian
A tubulação que ligava a cidade não era grande o suficiente para que passassem. Cavian se mantinha agachado enquanto parecia ter seus olhos de volta. Os musgos impregnados nas paredes traziam as mesmas lembranças das florestas de Faldram e a vida pujante tornava aquele túnel um longo corredor iluminado, com perfeição tamanha que nem mesmo os olhos dos elfos da noite podiam alcançar. Tanto era assim que mantinha a luz emitida pela pacificadora de tormentas como guia para o caminho de sua recém-aliada. Se por um lado era desconfortável se mover ali, por outro havia a certeza de que nenhum exército de armaduras pesadas conseguiria encontrá-los. Talvez estivessem esperando que saíssem, mas felizmente o número de saídas era provavelmente maior do que o de soldados. Qualquer grupo seria insuficiente para enfrentá-los, mesmo naquelas condições.
Andavam por poucas horas e a distância do furor da batalha era sentida pelas costelas doloridas a cada passo dado. Já haviam passado por mais de vinte bueiros quando Cavian avistou alguma forma de vida na estrada. Eram seres acima de algo. E uma figura pequenina abaixo. Provavelmente a pequena criatura que encontrara naquelas celas. Não via Rixi, mas o eixo por onde andavam era um pouco distante do local onde sua visão se limitava.
- Ei, Mika, acho que estão bem acima de nós – sussurrou ele sorrateiramente.
- Sim, há pouca movimentação, mas consigo escutá-los.
Deslocaram-se até o próximo ponto de subida, um pouco mais longe do que o ponto mais próximo, embainhou a espada e moveu a tampa de ferro arredondada de forma cuidadosa. Precisava se certificar de que tudo estaria bem. Era noite e a baixa luminosidade da estrada facilitaria que se aproximassem sem que fossem percebidos.
Pulou rapidamente para fora, não percebendo qualquer movimentação ao redor. Puxou o corpo de Narthus para fora e o sangue não jorrava mais, provavelmente havia se perdido durante todo o trajeto. Escondeu-o atrás de uma pequena mureta enquanto Mika subia à superfície.
Alguns poucos casebres ainda se mantinham naquela periferia. Provavelmente pertencentes a desertores ou moradores que agora vagavam guiados por aquelas correntes enquanto a selva tomara seus lugares.
- Cavian, consigo vê-los ao longe. Há uma carroça e algumas crianças, a Vinoliana encontra-se sentada acima da lona de uma das carroças e há outra aparentemente mais nova. Há também alguns guardas abaixo perto de um senhor de pouca estatura.
Rizar, pensou Cavian rapidamente. Uma nova armadilha provavelmente. Seus pensamentos ardiam como brasa e a respiração se tornara pesada e intensa, enquanto as dores de outrora se esmaeciam com a pouca razão que ainda habitava sua mente.
- Cavian? – disse Mika sem qualquer resposta.
Cavian olhava fixamente em direção à carroça, ainda que não pudesse vê-la. No próximo instante partiu, a pacificadora de tormentas foi sacada e o zumbido no ar alcançou os ouvidos de seus oponentes somente depois que a lâmina alcançara o pescoço de Rizar.
Os guardas também sacaram suas espadas, ainda que aguardassem oportunidades de confrontar aquele que atacara seu mestre.
- Por que fez isso, Rizar? Nós confiamos em você – disse ele com a voz embargada.
- Ei, Cavian! Não é culpa dele! – interviu Rixi, que saíra voando em sua direção.
- Deixo-o, Rixi, deixe que aja sem pensar, é a única forma com que viveu até hoje. Tomando decisões precipitadas umas atrás das outras – observou Rizar enquanto se mantinha estático, pois um movimento em falso certamente seria fatal.
- Cale a boca, vou arrancar sua cabeça antes que manipule mais alguém. Narthus está morto, sabia? Morto por sua causa, morto porque nos prometeu que Splenze não estaria lá.
- Assim como disse que deveriam salvar apenas Nuriel. Ele se foi também por sua culpa – retrucou o jovem gnomo sem titubear.
- Queria que deixássemos essas crianças lá? Nunca se preocupou, não foi? Aquele teatro que fez lá embaixo foi somente para que fizéssemos o que você queria, afinal, o ilusionismo não se trata só de magia, não é mesmo?
- Agora entendo porque foi parar naquela cela, jovem príncipe, seu entendimento das coisas é muito limitado para que tome atitudes minimamente precisas. Não se trata da vida dessas crianças, há outras tantas naquele lugar e sabe disso. A questão é que a morte de Splenze atrairá toda a atenção para este lugar e há alguma chance de que eles liguem os pontos. De qualquer forma já está feito.
- Escute o que ele diz, Cavian, não fez sentido em um primeiro momento para mim também, mas foi Rizar que nos ajudou a fugir daquele lugar. Os exércitos também cobriram as saídas quando viram que havia algo errado. Eu e Nuriel provavelmente não conseguiríamos proteger todas essas crianças contra todos aqueles soldados.
- Se é verdade o que diz, onde ela está? – disse ele ainda mantendo a lâmina, ainda mais brilhante que o habitual, contra o pescoço do gnomo.
- Junto ao pai dela, como prometido – disse Rizar. – Sei que está abalado, meu jovem, mas se agir sempre com essa falta de sensatez nunca conseguirá confrontar seu pai como deseja. Peço desculpas pelo ocorrido... Splenze de fato não deveria estar naquele lugar e agora será impossível que saibamos seus motivos - disse Rizar finalmente se afastando cuidadosamente com o acalmar dos ânimos.
- Me desculpe, Rixi - disse ele, desabando finalmente de joelhos ao chão – Não pude protegê-lo no fim.
Rixi riu, para seu desespero. O que era aquilo? Ficara louca? Por mais que nada fizesse sentido mais em sua mente estava exausto demais para reagir.
- Você realmente acha que Narthus seria derrotado por um simples general? Narthus é invencível, Cavian, já te disse isso – disse a fada tocando as mãos em ambas as faces de seu elmo levantando sua cabeça. – Onde está seu corpo? Não vá me dizer que não o trouxe com você – perguntou Rixi enquanto ele apontava para o canto de onde Mika vinha, carregando de modo impressionante o corpo do gigante nas costas. Era como se não houvesse esforço mesmo para um corpo tão esguio como aquele.
- Não pude deixar de escutar, mas esse homem deu a vida por mim... Se houver qualquer coisa que posso fazer em seu nome, apenas me diga que o farei sem hesitar – disse Mika, banhada de sangue e restos deteriorados que se grudaram durante o trajeto.
- Não a conheço, senhorita, mas se de fato me ouviu deixe o corpo desse homem deitado naquela carroça por gentileza – disse a fada apontando para uma carroça de carga mais nova e comprida que a anterior. A madeira lustrada quase não se revelara em meio àquela branda luz. - Levaremos ele em nossa partida e você entenderá tudo no caminho, Cavian. Rizar está tudo pronto?
- Como prometido – disse o gnomo com o sorriso no rosto e os braços cruzados atrás das costas de tecidos coloridos que pareciam nunca lhe faltar. - Terão ainda poucas horas até que o aviso chegue às cidades vizinhas. Tomem o caminho para Stormcrow e não parem até que cheguem lá. Os suprimentos chegam sempre pela manhã. Há um carregamento de especiarias lotados no vagão e um compartimento secreto abaixo da cama de madeira para que se escondam. Há também ouro suficiente para que comprem o silêncio e as acomodações necessárias. É tudo que posso fazer por vocês – finalizou Rizar, sinalizando com a cabeça para que os guardas se afastassem da carroça.
- Posso acompanhá-lo? Não tenho para onde ir – perguntou Mika a Rizar.
- Mika, a filha mais velha de Splenze, não é? – Questionou o gnomo.
- Sei que soa um pouco bobo, mas não possuo qualquer ligação com aquele monstro, ele era incapaz de possuir laços com quem quer que fosse...
- Perdão pela indelicadeza, minha jovem, era apenas para me certificar de sua situação – Se desculpou Rizar – Infelizmente, não há qualquer lugar seguro para você nessa cidade. Mesmo que se apresente como a filha desolada, estaria nas mãos dos reinos aliados e eles facilmente extrairiam a verdade de você – Revelou o gnomo franzindo o nariz - Se eu a abrigasse teria que ficar trancafiada por anos em meus aposentos até que fosse novamente seguro sair dessa cidade. Além disso, outros lugares estariam fora do alcance dos recursos que posso dispender no momento até que eu limpe toda essa bagunça. Se esses jovens alcançarem realmente o reino das águas, por mais improvável que isso possa parecer, talvez seja um lugar seguro que valha a pena recomeçar até que um milagre finalmente nos alcance.
- Acho que alguém do seu tamanho ainda deve caber – disse Rixi enquanto Mika assentiu agradecida, assim como ele ainda agachado.
- Rixi, você está prestando atenção no que está falando? – disse ele respirando fundo e se levantando enquanto tentava recobrar parte de sua sanidade.
- Perfeitamente, pode achar que estou louca se quiser, mas não se finja de surpreso quando ele acordar em alguns dias. A própria Gaya o abençoou tempos atrás com os fragmentos que restavam de sua própria alma e como você mesmo viu naquele barco é impossível que ele caia pelas mãos de nós mortais – explicou professoralmente a fada enquanto ele se manteve em silêncio por alguns segundos.
O que as palavras de Rixi queriam dizer? Narthus estava morto, não estava? Ele viu quando a energia de seu corpo se esvaíra, mas de fato algo em sua mente o alertava. Era a mesma sensação que tivera quando olhara pela primeira vez para a espada que largara ao chão. Não havia parado pra pensar até aquele momento em como poderia ter achado o corpo de Narthus sem seus olhos. Uma sensação de vida, talvez? Não via as linhas azuis habituais, mas de alguma forma sabia que ele estava ali. Ainda tinha a lança mencionada por Rixi, aquela atravessada na perna de Narthus durante a fuga, não havia conhecido nenhum gigante, mas era estranho que pudesse se movimentar logo depois. Ele finalmente se acalmou. Rixi poderia ter a mente criativa que fosse, mas não brincaria em uma situação como aquela. Pensava em qual sermão estaria tomando de Narthus naquele momento. Por um momento a experiência vivida até ali tinha dado lugar a uma juventude imprudente, a mesma que o trouxe àquele lugar. Rizar de fato tinha razão, se não fosse por Mika certamente estaria morto. A razão deveria prevalecer sobre qualquer desconfiança que sua mente quebrada pudesse construir. Era o que o ilusionista o alertara. Se não começasse a aprender a diferenciar a realidade do delírio, seria difícil que pudesse chegar a seu pai e aí sim todas as mortes que havia deixado pelo caminho teriam sido em vão.
- Devo desculpas a você, Rizar – disse ele inesperadamente. - Quando percebi que Splenze estava naquele lugar e depois de tudo que aconteceu... Enfim, acho que a única coisa que queria era botar a culpa em alguém.
- Não se preocupe, meu jovem, sei mais do que ninguém que às vezes as aparências se mostram mais perto da verdade do que os próprios fatos. A reunião entre os reinos aliados irá acontecer independente da presença daquele psicopata e a morte dele provavelmente será festejada por muitos que teve a oportunidade de conhecer. Provavelmente entenderão em um primeiro momento como uma retaliação dos libertos, mas aquele local possui tantas pontas soltas quanto pedras ao chão. Farei o que posso para cobrir os rastros antes que possam encontrá-los.
- Obrigado de verdade pela ajuda – completou ele ainda atordoado.
- Não tem por que agradecer, temos os mesmos objetivos, meu jovem, mas deverá entender que nem sempre poderemos seguir cegamente nossos ideais para ganharmos essa guerra. Nosso inimigo não tem regras nem princípios. Eles utilizarão nossas emoções contra nós mesmos e tornarão nossas ações previsíveis o suficiente para que possam nos esmagar como insetos, que é o que exatamente somos para eles.
- Entendo, não questiono a eficiência de seus métodos, mas se perdemos nossa humanidade, como poderemos garantir que não seremos diferentes deles quando isso tudo finalmente acabar? Você conseguiria se encarar sabendo que deixou uma criança morrer na mão dessas pessoas? – questionou sem que qualquer sorriso pudesse alcançar seu rosto.
- Não se trata de sentimentos, Cavian, se trata de entender que todos somos descartáveis. Algumas vidas serão perdidas para que outras prosperem. Eu e você já tivemos uma vida fora dessas correntes. Jogar o jogo deles é garantir que não só essa, como todas as outras gerações que vierem terão o mesmo destino. Espero que o caminho que ainda terá que trilhar o ajude a entender – disse o gnomo dando alguns passos para que pudesse tocar a bengala carinhosamente em sua máscara de ferro, indicando que já era hora de partir.
- Nos vemos em breve! – disse Cavian agachando e estendendo a mão ao ilusionista.
- Espero que ainda nesse mundo, meu jovem – retrucou Rizar, retribuindo o gesto em um aperto de despedida.
A carroça finalmente partiu em meio às brumas, enquanto observavam a cidade verde, agora acorrentada, ser deixada para trás.
MORTE EM FAMÍLIA
Zendra
As feiras de Tessan estavam alvoroçadas naquele dia. Não era comum que o sol se apresentasse daquela forma, mas quando o fazia revelava a beleza da cidade verde. A umidade e o sol formavam arco-íris por todos os cantos como se as folhas das copas dos adonsoneiros se tornassem prismas a serviço daqueles que guardavam qualquer pequeno instante para contemplá-los.
Zendra observava verduras tão frescas que podia se sentir até mesmo o perfume terroso de suas raízes. Era uma mulher reservada e dedicada aos cuidados familiares e naquele dia celebraria o aniversário de sua filha mais nova, Iliria, que completaria cinco anos. Seus longos cabelos brancos realçavam a beleza de sua pele acinzentada, típica dos elfos da noite. Eram tão habilidosos quanto seus irmãos filhos da deusa do sol e as orelhas longas e pontiagudas eram igualmente precisas, o que indicava que a noite também se fascinara pelos primeiros filhos das florestas.
- Veja, senhor... Essas cenouras estão com folhas tão amareladas e murchas que no fim da manhã não valerão nem metade das duas moedas de cobre que vou lhe oferecer por elas – explicava ela apontando para os tubérculos. Sabia dos segredos do plantio, como seu pai lhe ensinara e como seu avô antes dele.
- Pois leve três delas que lhe farei a oferta, minha bela senhora – negociou o senhor mercador, que tentava esconder sua idade avançada com a pintura um pouco tosca dos cabelos brancos, que mais pareciam sujos do que pintados.
- Pois bem, aqui estão – entregou-lhe as moedas com um sorriso gentil.
Planejava fazer um bolo de cenoura naquele dia, o preferido de Iliria, e a qualidade das cenouras não faria tanta falta, ao contrário das poucas moedas que carregava em seus bolsos. Com sorte chegariam ao fim do mês com as que restaram. Depois comprou belos ovos e leite, um galão de óleo de girassóis e um punhado de lenha Audariana, já que as árvores ali eram tão duras quanto o próprio ferro. Apesar de sua inaptidão para a queima, a árvore de tronco largo e crescimento rápido no solo pantanoso e fértil de Tessan, era forte o suficiente para se construir andares que alcançariam os céus e eram tão leves que um tronco inteiro poderia ser carregado em pequenos grupos sem maiores esforços. Um verdadeiro presente dos deuses àqueles que não poderiam se alimentar de suas próprias maçãs.
Zendra voltou para casa com um sorriso no rosto, olhando para o céu de folhas que meneavam com o vento, fazendo com que os raios de sol dançassem como um grupo orquestrado. Balançava levemente sua cesta de palhas amarelas de tom amarronzado, imaginando o belo dia que estaria por vir. Sua produção de ervas em casa auxiliara nas rendas, mas precisava de mais espaço para que pudesse dar um futuro melhor às meninas. Infelizmente, espaço custava mais ouro, que era todo gasto em livros de letras rasas e capas comidas pelo tempo. Eram por meio deles que garantiria que tanto Mika quanto Iliria seguissem os passos dos magos drows de grande nome, em um futuro em que não precisariam mais se preocupar com o prato de comida do dia seguinte. Infelizmente sua formação militar naqueles tempos de paz valiam tanto quanto uma gota de chuva em meio ao mar que circundava as pequenas ilhas daquela cidade.
Ao chegar em casa, percebeu o olho roxo de Mika, sua filha mais velha, mesmo que a pequena tentasse escondê-lo sob os olhos baixos, e a perna enfaixada de Iliria, com um pedaço de pano que havia separado para cobrir a mesa.
- Já disse a vocês que não quero brigas – disse ela rispidamente. - Não veem o que fizeram? Hoje é aniversário de sua irmã, Mika, não deveria ser tão irresponsável – completou em tom firme, enquanto as duas mantinham a cabeça cabisbaixa.
- Não estávamos brigando, mamãe, estávamos treinando – retrucou Mika timidamente. - Papai disse que temos que treinar para ser fortes, que há muitos perigos que ainda precisaremos enfrentar – respondeu ela confiante, ainda que soubesse que provavelmente não existiriam argumentos que pudessem convencê-la.
- Esqueçam isso, seu pai fala besteiras porque viveu os horrores da guerra, mas os tempos são outros e a única preocupação de vocês deve ser aquela pilha de livros ali - disse ela apontando para uma pilha de livros velhos. - A senhorita por um acaso terminou de ler o livro de capa roxa que lhe passei? – questionou ela com o semblante compassivo. Sabia que Faeris enfrentou tempos difíceis, assim como ela, mas treinamento em combate não as levaria a lugar nenhum, uma verdade tão óbvia na situação em que se encontravam, que mais parecia um desejo nostálgico de reviver lembranças tão distantes quanto sua paciência naquele momento.
- Todos, mamãe, até os daquela prateleira e os daquela – respondeu em voz baixa e envergonhada, apontando para os livros que se amontoavam em prateleiras rústicas de madeira grossa já antiga e que dividiam a sala com outras duas cadeiras igualmente desgastadas próximas a uma das poucas janelas. – Peço desculpas por hoje, mas a Ilíria e eu realmente ficamos felizes em poder treinar.
- É, mamãe – disse Ilíria em entusiasmada. – Pedi de presente pra Mi... – dizia ela de forma tão carinhosa, que até os ombros tensos de Zendra cederam enquanto finalmente suspirara.
- Estão façamos o seguinte – disse ao se abaixar e colocar a cesta ao lado, apoiando a mão no ombro de ambas. – Continuem estudando os livros que a mamãe entregar a vocês. Se lerem sempre o dobro do que combinarmos poderão continuar seus treinamentos, desde que me prometam que o farão em casa e com cuidado para que não se machuquem, combinado? – disse ela às pequenas com um sorriso no rosto.
- Combinado! – disseram as duas entusiasmadas retribuindo o sorriso da mãe com um abraço apertado.
Zendra
Zendra finalizava um peixe ao forno com especiarias e ervas frescas, com o bolo já preparado para descansar, quando escutou o ranger da porta e os passos das meninas correndo. No momento seguinte, Faeris chegou com as duas no colo com a terra avermelhada que cobria dos sapatos de couro velho à testa.
- Mamãe, mamãe, papai me trouxe um presente – exclamou Ilíria, mostrando orgulhosa uma simples caixa ornamentada que ostentava em suas mãos.
- Já até imagino o que seja – respondeu Zendra com os olhos ainda no peixe, imaginando que fosse algo que certamente a desagradaria. No último aniversário de Mika, Faeris havia dado uma pequena adaga de chifre de javali a ela, o que havia rendido, além da felicidade da menina, grandes discussões noite afora.
- É um apito de emergência, mamãe – disse Iliria assoprando o objeto, que tinha um cordão fino em prata que parecia ter custado mais do que poderiam pagar. O som era agudo e alternado, como o assobio de um pássaro do campo. – Sempre que eu estiver com medo posso chamar a senhora e o papai! – continuou a pequenina rangendo os deles de felicidade e balançando as pernas alegremente no colo de seu pai.
- Vai incomodar os vizinhos, Faeris – repreendeu ela, mais preocupada com o valor do objeto do que em relação ao barulho em si.
- Meu amor, ele emite som em uma frequência que só nós e os seres da floresta podem ouvir, ou seja, ninguém além de nós aqui por perto – justificou Faeris, balançando as meninas no colo e sorrindo a ela como se suplicasse por uma aprovação.
- Você sabe que não é esse o problema – respondeu ela.
- Ajudei um senhor artesão recém-chegado à cidade a reunir suas mercadorias que haviam caído da carroça, meu amor – justificou-se.
- Hmm... – resmungou ela baixinho enquanto continuava a cozinhar, parecendo não acreditar muito na história, ainda que duvidasse que tivessem qualquer economia para adquirir um objeto daquele. Era sem dúvida um colar bonito. Isso seus olhos não poderiam negar.
- É verdade, Zendra, juro! O animal se assustou com um estouro de um tonel de cerveja perto do eixo central e quase jogou o pequeno senhor para fora. Precisava vê-lo, era baixo como uma criança e com uma roupa de cores bem vivas, um forasteiro como nós, mas certamente um senhor de posses. Quando disse que seria aniversário de nossa filha ele me deu esse colar em agradecimento, disse que havia sido feito por nosso povo tempos atrás. Depois disso foi impossível recusar. Veja essas marcações, Zendra! São Qualinianas com toda certeza – esclareceu Faeris ao descer as meninas ao chão e indo em direção à travessa de peixe, aproximando seu dedo para experimentar o caldo.
- Tire a mão daí ou farei um colar com seus dedos para mim – zangou-se em tom ríspido.
- Mas por que está tão brava, mulher?
- Primeiro, por ter me deixado achar que tínhamos gastado um dinheiro que não possuíamos, segundo, porque você esqueceu de colher as frutas que te pedi, e terceiro, porque encheu de terra as meninas que já estavam de banho tomado – disse ela enquanto esticava o braço para impedir que ele se aproximasse, enquanto experimentava a calda para o bolo.
- Culpado! – disse ele levantando os braços e se afastando em direção a uns panos dobrados na área externa da casa. Depois de limpar o rosto das meninas e o chão, direcionou-se ao tão requisitado banho.
A mesa já estava montada quando se reuniram para o jantar, enquanto o cheiro do ensopado destacava as ervas frescas recém-colhidas. Não oravam aos deuses. Seres venerados por sua indiscutível bondade não teriam permitido que tantas vidas se perdessem antes que decidissem intervir.
- Vamos agradecer por mais esse ano junto de Iliria e que tenhamos meses prósperos para nossa família – agradeceu Zendra brevemente.
- E eu queria agradecer à mamãe e ao papai por toda essa comida – continuou Ilíria.
- E eu pelo olho roxo – brincou Mika.
- E eu por essas moças maravilhosas que alegram meu dia – exclamou Faeris. – Aliás, sua mãe nem havia brigado comigo por isso, então gostaria de agradecer à nossa pequena Mika por lembrá-la – ironizou o marido lançando um olhar entreaberto a ela, enquanto as pequenas riam com o esboço de sorriso da mãe encarando as duas.
- As meninas já conversaram comigo a respeito e estabelecemos algumas regras.
- E quando a senhorita compartilhará suas famosas técnicas especiais para as pequenas? – fez com que as duas arregalassem os olhos de interesse.
- Quando você parar de colocar caraminholas em suas cabeças.
- Mas, meu amor, tempos de paz e de guerra são como as ondas, elas vêm e vão. É importante que as meninas saibam como se defender.
- Antes elas precisam sobreviver, Faeris... Esqueça esse assunto, já foi resolvido.
- Mamãe, você irá nos ensinar? O papai disse que a senhora era uma guerreira exemplar – questionou Mika interessada, enquanto Faeris abaixava a cabeça para se desviar de seus olhares zangados. - Podemos aumentar a meta se a senhora quiser.
- Hmmm... Seu pai inventa coisas demais, mas negociaremos amanhã. Talvez eu saiba de algumas coisas... Mas vocês precisam se alimentar e dormir direito, entenderam? Se não limparem esse prato ou se enrolarem pra dormir, terão que se contentar em treinar em seus sonhos.
- Sim, senhora – respondeu Mika de boca cheia enquanto Ilíria a acompanhava assentindo.
A lua finalmente se pôs e as pequeninas obedeceram às ordens da mãe como nunca antes. Faeris talvez tivesse algum mérito ao encontrar o que as movesse e por isso talvez Zendra estivesse confortável em manter sua postura pacífica naquela noite. Apesar das discordâncias em quase todos seus pensamentos, era clara sua admiração pela simplicidade com que ele enxergava as coisas ao seu redor, uma qualidade essencial para acompanhar a mente metódica que insistia em pressioná-la em qualquer oportunidade que se apresentasse. A leveza que amaciava a dura carcaça enrijecida com a escassez e o tempo.
Zendra
Passaram-se dois dias desde aquele último festejo. Enquanto Zendra tentava comercializar o que colhera pela manhã junto a um dos mercadores da feira central, viu no horizonte duas meninas correndo em direção a ela. Parecem com Mika e Ilíria, pensou ela quando percebera que de fato se tratava das duas. Pediu ao mercador que guardasse suas cestas por um instante e correu em direção a elas.
- Mamãe, mamãe - exclamou Mika esbaforida, levando as mãos aos joelhos buscando o fôlego que lhe faltava, enquanto os olhos marejados acompanhavam sua face assustada. - Um dos amigos do papai nos avisou que ele sofreu um acidente nas minas... E que foi internado no hospital de Asklepios...
- Pelos deuses! – exclamou Zendra levando as mãos à boca. Sabia que tinha que se manter calma por conta das meninas, mas o sentimento em seu coração naquele momento a incomodava, mais do que qualquer peso que aquelas palavras pudessem carregar.
Pegou Ilíria no colo, segurou na mão de Mika e seguiu em direção ao hospital. A estrutura foi a primeira a fornecer aquele tipo de serviço, antigamente reservada aos admiradores dos deuses e usuários das artes místicas que peregrinavam entre os reinos.
Chegando ao amplo saguão, foi direto à atendente, uma moça jovem de cabelo amarrado e olhos amendoados, típico dos Tessanianos, que parecia tentar se organizar entre as pilhas de papéis distribuídos nas bancadas à sua frente.
- Boa tarde... – disse ela até que os olhos da moça finalmente a encarassem. - Meu nome é Zendra, vim ver a condição de meu esposo Faeris, ele deve ter chegado há algumas horas – Continuou Zendra firmemente.
- A senhora pode deixar as crianças aqui no saguão? O doutor Aldini pediu para vê-la assim que chegasse.
Zendra
Depois da orientação dada a ela e agora andando pelos corredores espaçosos e embranquecidos daquele local, Zendra caiu em lágrimas, enxugadas insistentemente pelo dorso de seus punhos. Não tinha mais as crianças ao seu lado para se conter e sabia que algo ruim tinha acontecido. Não havia qualquer fato que pudesse levá-la a pensar o contrário. O trabalho nas minas era arriscado logicamente, mas Faeris era talvez uma das pessoas mais cuidadosas que conhecera, não à toa durara tanto tempo naquelas escavações sem qualquer arranhão que fosse. Ao fim do corredor, ao adentrar na sala ao qual foi dirigida, viu um homem de cabelo branco como o dela, mas seguramente um humano, ainda que sua pele clara e os olhos azulados indicassem que provavelmente se tratasse de um forasteiro como ela. Não era raro ver mercadores Audarianos trazendo alimentos frescos de seus campos planos e ensolarados a Tessan em troca de seu ouro negro.
- Doutor, o que houve? Faeris está bem? – disse ela esbaforida a Aldini.
- Temo que não seja portador das melhores notícias. Fora os membros que não permitiram a sua reconstrução, uma das rochas que se desprendeu acabou atingindo seu crânio, houve tentativa de conter a hemorragia e acabaram havendo complicações que não conseguimos reverter...
- Não, não, não... – repetia ela rapidamente com a voz embargada ao mesmo tempo que levava as mãos ao rosto. – Magia, meu senhor, conseguiremos algum curandeiro próximo daqui, peço somente que o mantenha vivo até lá – suplicou ela enxugando as novas lágrimas rapidamente, agarrando uma das mangas do jaleco branco de Aldini.
- Peço desculpas, minha senhora, nem mesmo a magia pode trazer vidas que já se findaram.
Foi quando Zendra se ajoelhou ao chão. O choro abafado por suas mãos era tão doloroso quanto silencioso, e o desespero em seu coração era tamanho que seria sentido por qualquer um que se aproximasse do corpo que meneava pra frente e para trás, uma dor latente da esperança que se afugentara. Como Faeris poderia partir daquela forma? Sempre foi tão cuidadoso e tão forte. Seria impossível que partisse assim. As perguntas naquele momento inundavam sua mente como se tentassem negar a realidade.
- Sra. Zendra - disse o homem se ajoelhando e apoiando suas mãos sobre seus ombros. - Eu realmente sinto muito, fizemos tudo que podíamos... – disse este com olhos marejados enquanto a encarava.
- Perdoe-me, meu senhor... – disse soluçando enquanto tentava conter as lágrimas. – É que é difícil aceitar...
- Nós é que pedimos desculpas, lamentamos que nosso empenho não tenha sido suficiente... O que está sentindo agora é a mais amarga derrota pra todos nós – continuou Aldini estendendo um pano de algodão azulado às suas mãos. – Sei o quanto a vida pode ser cruel, muito mais do que poderíamos aceitar.
- Não discordo de você, meu senhor... É que é difícil até de pensar nesse momento... Lutamos muito para que nossas filhas não se deparassem com a morte tão cedo como aconteceu conosco... É como se a maldição da morte nos perseguisse – respondeu ela levantando finalmente a face enxugada pelo sedoso tecido.
- Não pense assim, por favor... Você tem muito o que mostrar a elas. Se tem alguma coisa que aprendemos aqui é que a vida sempre encontra um caminho. Veja só, por um acaso do destino, meus pais se intoxicaram com beladona quando preparavam uma de suas novas fórmulas. Os clérigos os viam como blasfemadores e os deixaram morrer sem que pudéssemos fazer nada. A vida boa que tínhamos se foi em dias e ninguém daria qualquer crédito a dois jovens sem qualquer nome em terras tão distantes... Bem, passados alguns meses, meu irmão fundou esse lugar com tudo que havia nos restado em uma barraca de pano que fazia com que só os mais desesperados ousassem se aproximar. Depois de todo esse tempo aqui estou eu trabalhando em algo que prometi a mim mesmo que nunca faria, ou seja, se não fosse pelas mortes deles, todas essas pessoas deixariam de ter a oportunidade de desfrutar de suas novas vidas e de seus novos propósitos... Irônico, não? – disse Aldini com um sorriso ao rosto.
- Não gostaria de tê-los ao seu lado?
- Seria injusto que meu desejo prevalecesse sobre a evolução de tantas vidas, minha senhora. A vida encontrou um novo caminho para mim e com certeza encontrará um novo pra você caso se permita.
Ela assentiu retribuindo o gentil gesto com um sorriso tímido enquanto as lágrimas levavam em cada gota, um pouco mais de sua alma consigo. Não partilhava daquela visão, nem tudo tinha um propósito, era apenas uma das formas que as pessoas encontravam de se confortar, mas entre suas dores e certezas preferiu o silêncio, assim pouparia os demais da cruel realidade.
Mika
Alguns minutos depois, Zendra retornou ao salão, e por mais que tentasse esconder, seus olhos abatidos e inchados sinalizavam a verdade amarga que trouxera consigo. Talvez Ilíria ainda não pudesse entender, mas foi quando Mika percebeu que os abraços acalentadores de seu pai ou as brincadeiras de humor duvidoso deixariam de acompanhá-la a partir dali.
- Seu pai ficará mais uns dias por aqui e mandou um beijo bem grande para vocês duas – disse sua mãe tentando ganhar tempo para que tivesse coragem de alcançar as palavras que precisava.
- Queria vê-lo, mamãe – disse ela com a voz trêmula, já podendo prever a resposta que iria receber.
- Ele não poderá nos receber hoje – respondeu Zendra com um sorriso gentil. – Vamos para casa fazer nossos afazeres enquanto ele descansa e daí prepararemos uma surpresa para quando ele retornar, o que acham?
- Sim, mamãe! – respondeu Ilíria entusiasmada, pulando contente com os punhos cerrados e sorriso ao rosto, enquanto os olhos marejados de Mika encaravam sua mãe.
Naquela troca de olhares nada mais precisou ser dito.
O GÊNIO E O MONSTRO
Mika
Com o tempo, Aldini passou a ser um comprador exclusivo e generoso e a dor de outrora dera lugar a uma dedicação inabalável em um trato que nunca precisou ser escrito entre elas.
Os colares ornados em belas pedras, brincos lustrosos ou os vestidos finos eram recusados um a um, ainda que o coração amargurado de sua mãe aceitasse os ventos mais leves dos cafés ao crepúsculo. Era o mínimo que poderia oferecer a um cliente tão dedicado.
Mika percebeu a afeição de Ilíria pelo homem gentil. Logicamente a irmã mais nova não esquecera de seu pai, por quem chamava todas as noites com o apito que ganhara nos últimos dias que o vira pela última vez, mas Aldini poderia fazê-la rir alguns vezes e talvez isso fosse o suficiente, ainda que seu coração se mantivesse inquieto. Que homem se envolveria com uma forasteira viúva com duas filhas que sequer partilhava de sua ancestralidade?, pensava às vezes. A impureza de seus descendentes, até mesmo naquela cidade, moldada pelas mãos e sangue dos filhos de outros deuses, seria alvo de olhares que falariam muito mais do que qualquer palavra dita.
A mudança para a mansão Broharbay pertencente aos Splenze ocorreu alguns anos depois e agora se revezavam para cuidar do imenso jardim que crescera ao longo do tempo. Mika não se tornou a brilhante dominadora das artes místicas como sua mãe desejara tempos atrás, ainda que conhecesse seus segredos mais profundos. Era pela ciência que havia se apaixonado e fora por meio dela que as plantações podiam crescer mesmo quando as noites se alongavam ou quando o solo se tornara escasso. Descobriu o mesmo segredo pelo qual os Splenze se tornaram tão notáveis. A ciência trazia a escala que faltava à magia. Poderiam viajar por dias sem que se preocupassem ou tratar doenças sem que se exaurissem, mas talvez fosse a independência do poder advindo dos deuses que a fascinara. Um talvez mais poderoso em essência, mas que nunca fizera nada para merecê-la.
Mika foi cedo para o laboratório naquele dia, que possuía paredes que se perdiam no olhar. Era tão extenso quanto o próprio andar superior da mansão e abrigava os maiores avanços que o ouro podia comprar. Aldini dividia a casa com Tari, o primogênito de sua família e o fundador do hospital de Asklepios tempos atrás. O trágico passado criara a ideia de não mais depender dos nômades curandeiros, tão escassos quantos os raios de sol naquele lugar, afinal, a vida em grande parte das vezes não se dava ao luxo de esperar ou de ser concedida aos não merecedores. Foi assim que as carruagens lustrosas passavam cada vez mais sem serem notadas.
Mika ordenava de forma tão concentrada as pilhas de livros dispostas ao chão nas extensas prateleiras do porão, que mal percebeu a chegada da irmã ao local.
- Mika, você chegou a conversar com a mamãe hoje? – questionou Ilíria repentinamente.
- Não, por que? – respondeu secamente sem se desvencilhar da atenção pelas capas à sua frente.
- Peguei ela conversando com Aldini e parece que ele não quer mais que ela vá à feira central.
- Que bobagem, a mamãe sabe se defender melhor do que uma pilha inteira daqueles soldados e o próprio rei tem cumprido o que prometeu – disse ela entregando um livro de capa vermelha intitulado Verdade e mitos sobre a Abutua à Ilíria, para que colocasse junto aos seus pares na estante.
- Não, Mika, não é isso, aquele tom de voz e as coisas que disse à mamãe era como se estivesse com ciúmes de algo, entende? Pelo menos no pouco que consegui escutar...
- Ciúmes da mamãe? Pelos deuses, onde Aldini está com a cabeça? Ela nunca precisou de nada dele, se veio pra cá é porque ela quis – exclamou indignada se voltando finalmente à irmã e esfregando as mãos no macacão confortável de linho azulado.
- Bom, não sei, era só pra verificar se haviam conversado. Achei a mamãe bastante abatida depois disso... Talvez se pudesse falar com ela a respeito, o que acha? Às vezes foi só mesmo um mal-entendido.
- Isso é ridículo, nem cabe a ele decidir se a mamãe vai ou não em algum lugar. Vou conversar com Tari sobre isso, tenho certeza que ele saberá o que fazer.
- Hmm... Se conseguir subir logo, acredito que ainda o encontre tocando aquela viola velha – disse Ilíria sorrindo à irmã, por quem tinha uma fé inabalável. Era sua principal confidente e amiga, uma que nunca falhava quando precisava. Se houvesse alguém que resolveria aquela questão com certeza Ilíria achava que seria ela.
- Termina de organizar pra mim? – disse ela pegando um pequeno conjunto de livros e entregando para Ilíria.
- Todos eles? Sempre arrumamos isso toda semana – resmungou Ilíria franzindo o nariz olhando para as inúmeras pilhas espalhadas ao chão.
- Se preferir enfrentar as feras lá em cima, fique à vontade – disse ela mantendo o braço estendido, quando Ilíria finalmente o pegou de suas mãos com a cabeça cabisbaixa. – Não se esqueça de espaná-los antes! – ordenou ela antes de sair em direção às escadas que levavam ao saguão principal.
Mika
Ilíria estava certa. Escutava o som antes de chegar ao quarto, ainda que não conhecesse a canção. Era lenta e suave, uma encantadora ode à desolação.
Entre os ventos gelados e solitários do norte,
E a terras secas e vermelhas ao sul,
Prefiro o sossego repousado sobre a cidade verde,
Ou a inquietude das feiras dançantes abaixo da boca do sapo,
Sou o viajante errante,
O contador de histórias,
Vivo uma vida nova todo dia,
Mergulhando nas páginas velhas do meu infindável porão...
Esperou que terminasse antes de entrar pela porta entreaberta.
- Olha se não é minha sobrinha preferida! – exclamou Tari entusiasmado sentado em única banqueta ao centro. A extensa janela do sótão de uma das torres dava uma visão da cidade que se assemelhava à dos pássaros que repousavam entre as copas. Tari, diferente de Splenze, nunca lhes dera presentes, mas eram dele os melhores conselhos e ensinamentos. A cada fim de semana dava uma aula particular para as duas sobre o tema que escolhessem e parecia dominá-los com tanta maestria que tinham dúvidas se não tinha o poder de copiar aqueles livros para dentro de sua própria mente.
- Menos, Tari, vim somente pedir um conselho – disse ela visivelmente desconfortável. Não o tratava como um tio como fazia Ilíria, mas sim como um velho amigo.
- Ah, esses jovens, como sempre tão diretos... – murmurou Tari quase para si mesmo. – Diga, minha querida, sou todo ouvidos – disse apoiando as mãos abertas sobre a viola. Tinha um bigode fino levemente ondulado nas pontas, assim como a trança delgada ao final do cabelo raspado ao lado. No entanto, o estilo rebelde era contrastado pelas roupas finas que nunca o abandonavam. Parecia estar sempre pronto prestes a ir ao trabalho mesmo que não fosse.
- Aldini parece ter dito que não permitirá que minha mãe frequente mais as feiras, se possível gostaria que você conversasse com ele a respeito.
- Ele disse mais alguma coisa? Alguma desconfiança, talvez?
- Não sei dizer, mas tenho a teoria de que provavelmente em algum de seus experimentos ele possa ter fundido sua mente com a de um girino – ironizou ela seriamente.
Tari riu.
- Entendo... Se é seu desejo, minha querida, conte comigo, mas Aldini de fato vem agindo estranhamente nos últimos dias. Desde que saiu do hospital para se dedicar àquele laboratório, tem agido estranho... – disse Tari com a cara amarrada. - Acho que as coisas não têm dado certo e talvez isso tenha acabado com a pouca sanidade que lhe restava. Tenho certeza que ele repensará a situação, fique tranquila.
- Bom, era isso, obrigado... – agradeceu ela pensando em outras palavras que pudesse dizer, ainda que não viessem em sua mente.
- Tudo bem, você também deveria descansar, sabia? Está tão ranzinza quanto ele. Duas das mais esplêndidas e incompreensíveis cabeças duras que até hoje não consegui desvendar.
- Bom, se tiver algo que eu possa fazer para retribuir... – respondeu ela cortando o assunto.
- Deixe-me pensar... Ah, sim... Tem algo... Faça com que Ilíria pare de mexer naqueles monstrinhos mecânicos dela – brincou Tari enquanto ria. – Acredita que um dia um explodiu no meu pé? Ela vai acabar se machucando com aquelas coisas.
- Acredite, é melhor que ela passe o tempo com eles. Da última vez que Delimere a colocou de castigo comigo ela falava tanto que quase perfurei meus próprios tímpanos.
Tari riu.
- Essas crianças... – suspirou sorridente. - Talvez seja uma decisão mais sábia de fato – sussurrou ele. – Bom, quando tiver um tempinho e quiser aprender a tocar, me avise – terminou voltando a tocar sua pequena viola de corpo redondo.
Tari
Aparentemente a conversa que tivera com o irmão havia surtido efeito. Zendra voltou a esboçar o sorriso alegre de outrora. Passou grande parte de sua vida fora do exército andando entre aquelas bancas e sobrevivendo um dia de cada vez, tirá-la desse convívio era como pedir para que renegasse parte da sua própria alma.
Só não contavam com o fato de que Zendra ficasse doente algumas semanas depois. Sua respiração fraca e a tosse tingida de vermelho faria com que fosse impossível caminhar durante longos períodos. Tari e Aldini reviravam livros noite após noite para encontrar uma solução. Uma doença inexplicável até mesmo para as mentes mais brilhantes de Tessan.
Zendra não mais se juntava à mesa nos últimos dias e as crianças já haviam repousado quanto se sentaram para jantar já tarde da noite.
- Delimere já disse milhões de vezes que não há necessidade de tanta comida – pediu Tari à governanta ainda com a boca cheia, enquanto saboreava um delicioso javali com maçãs verdes junto ao seu irmão. A carne de javali não era algo fácil de se fazer, ainda mais inteiro e daquele tamanho, que só de cabeça possuía dois palmos. O prato feito por aquelas mãos delicadamente roliças, demonstrava a capacidade da gentil senhora em transformar qualquer coisa que lhe dessem em deliciosas guloseimas que gerariam desejo até mesmo em estômagos já saciados.
- Meu senhor, não se preocupe, as sobras sempre são distribuídas – respondeu Delimere firmemente. A governanta os havia praticamente criado ainda nos campos de Audar, dada a ausência constante de Enrik e Freya, talvez fosse por isso que se sentia à vontade em responder os questionamentos de ambos.
- Pois então os chame à mesa, todos devem ter a oportunidade de saborear tamanha destreza – continuou ele, que apesar do sermão, havia feito Delimere corar as bochechas com o elogio.
- Não exagere, irmão, que diferença faz? A quantidade de comida dada será a mesma - retrucou Aldini. - Você deveria parar de agir como se não gostasse de suas benesses. Já que está tão preocupado, por que não partilha aquilo que tem? Assim tornaria seu discurso mais coerente - apesar de não ser incomum a discussão dos dois entre os mais variados temas, naquele dia Aldini estava mais rabugento que o habitual.
- Há horas que você é bem ignorante. Não vê o quanto multiplicamos os atendimentos nos últimos anos? Como faria isso sem recursos? Me faça o favor de não jogar as frustações dos seus experimentos fracassados em mim – zangou-se. Nunca moveu um dedo por ninguém e agora vem me criticar?, pensou tentando se acalmar. Já havia convidado Aldini várias vezes para se juntar a ele em tempo integral. Eram mãos talentosas demais para serem desperdiçadas junto àqueles vidros de ensaio e anotações que pareciam se acumular ano a ano sem que parecesse chegar a qualquer conclusão. O que seu irmão esperava de tudo aquilo? Aldini parecia ter uma necessidade incontrolada de se autoafirmar que preferia não se intrometer, mas fora no laboratório abaixo de seus pés que haviam desenvolvido as únicas inovações dos últimos anos. Imagina o que poderiam fazer juntos por mais tempo? Por mais que tentasse convencê-lo parecia ser inútil.
- Se está zangado é porque alguma verdade há em minhas falas – gargalhava Aldini. - Enquanto você trata as consequências, eu trarei a solução definitiva para todos os males. Uma que nos tornará deuses em meio aos mortais.
- Não duvido de sua capacidade, meu irmão, e me desculpe pelas palavras duras, mas até você deveria saber a hora de parar. Sei que a situação de Zendra não é nem um pouco fácil de lidar, mas quantos anos você já perdeu? Quantas pessoas já poderia ter ajudado além dela? Se ao menos me deixasse ver seu trabalho, talvez eu consiga ajudá-lo de alguma forma – continuou ele afavelmente.
- Você e seu puritanismo não entenderiam, mas posso fazer um trato, que tal? Você me deixa utilizar seus pacientes terminais e eu te passo todas as conclusões que tenho até agora – disse Aldini em tom esperançoso.
- Não negocio vidas, Aldini, essas suas pesquisas... Elas estão te enlouquecendo e você não está nem percebendo. A partir de agora te ajudarei com as demandas de Zendra e nada mais, não vou financiar esse seu projeto de autodestruição – disse ele voltando à sua calma habitual e engolindo mais um belo pedaço de carne.
- Ficou louco? – esbravejou o irmão com o eco da madeira vindo do golpe de suas mãos e o franzir dos lábios raivosos. Delimere acabara de voltar à sala de jantar, mas voltou para cozinha rapidamente ao ver a cena. – Estou dedicando a minha vida a essa pesquisa enquanto você se esbaldeia nessas festas luxuosas, não me venha agora me dar sermão de que é um irmão preocupado com meu bem-estar – continuou sem que abaixasse o tom. – Posso te dar uma parte, garanto que será o suficiente para que compre seu próprio reino se quiser – disse Aldini em tom mais calmo e com um sorriso ao rosto, entendendo que a proposta dada seria irrecusável.
- Acho que você não me entendeu, irmão, como eu disse, você não percebe que está doente e eu não vou contribuir para que fique mais. Estou apenas fazendo o que nossos pais gostariam que eu fizesse – disse ele de maneira calma ainda mastigando, ignorando completamente a postura agressiva que enfrentava, enquanto levava o guardanapo de pano acetinado à boca, limpando a gordura impregnada em seu bigode. – Espero que entenda, agora comemore nossos avanços e foque nos cuidados à Zendra, tenho certeza que ela irá melhorar – finalizou ele, levantando-se e saindo em direção à porta principal.
Aldini se calou, mas ele ao sair, encarou por um momento os olhos do irmão em chamas. Não importava de qualquer modo. As palavras do velho Enrik nunca se tornaram tão vivas quanto naquele momento: nunca se dê limites para pensar, mas sempre os redobre para agir.
Tari
No silencioso laboratório, a lua já estava em seu auge quando Tari observava algumas amostras em seu microscópio rudimentar. Tinha a estrutura de metal polido, mas era grande demais para pequena lente que ostentava. A banqueta mais alta que o necessário fazia com que tivesse que manter as costas arqueadas. Alguns ajustes precisavam ser feitos, mas poderiam esperar até que encontrassem o que buscavam.
- Venha ver, Aldini, acho que descobri o problema! – chamou ele entusiasmado enquanto mantinha os olhos fixos nas oculares.
- O que foi? – questionou Aldini interessado, enquanto se dirigia depressa em direção ao irmão, equipado com seus óculos de proteção e o jaleco habitual que quase reluzia de tão branco.
- Achávamos que os remédios que demos à Zendra não estavam controlando a infecção, correto? – disse ele extasiado finalmente encarando o irmão.
- Sim, era o que o quadro clínico dela mostrava.
- Pois é, mas os remédios são eficazes sim, eu mesmo os testei várias vezes com seu próprio sangue. Não poderia haver erros em relação a isso, o problema é que a mutação que achávamos ser derivada de uma resposta do próprio organismo dela, na verdade se trata de novas reinfecções em sequência, ainda que isso não explique como ela tem se contaminado novamente mesmo trancafiada naquele quarto.
- É um raciocínio bastante provável – concordou Aldini levando a mão ao queixo.
- Pode ser algo no ar ambiente e seu organismo possuir uma condição específica... Não sei, não faz muito sentido pra mim ainda, mas se descobrirmos a causa podemos finalmente chegar à solução – disse ele entusiasmado. – Sei que está bravo comigo, mas não tive a intenção de magoá-lo ontem à noite. É que às vezes sinto sua falta em Asklepios também. Somos imbatíveis juntos, meu irmão, olhe isso! Quem mais seria capaz de desvendar tantos segredos?
- Tem razão, estou sendo infantil. É que estou cansado também – suspirou Aldini se sentando na banqueta ao lado. – Façamos o seguinte, vamos descansar para que possamos resolver isso amanhã de uma vez por todas, tudo bem? Amanhã o convencerei a me ajudar, mas do jeito certo dessa vez.
- É assim que se fala! – exclamou contente se levantando e dando um abraço no corpo imóvel de Aldini, antes de finalmente se dirigir às escadas.
Era como se tivesse tirado um Bívio das costas. Com Zendra se curando, certamente voltariam a ser como antes, talvez até melhores do que antes. Naquela noite nem a chuva de pensamentos faria com que deixasse de dormir.
Tari
Na manhã seguinte, Tari se deparou com outro banquete. Alguns de seus pacientes estavam sentados à mesa dessa vez. A quantidade de comida era adequada e parecia novamente deliciosa, um guisado desta vez. Os talheres e taças haviam sido colocadas à mesa detalhadamente, com o rigor que só podia ter sido obra de Delimere. Ele imaginou que talvez fosse uma forma de o irmão expressar suas desculpas, já que as palavras nunca foram seu forte.
Cumprimentou todos os pacientes da mesa, um a um.
- Doutor, estamos muito felizes pelo convite – disse um deles, Irina, uma humana magra com cabelos ruivos que possuía uma estatura tão baixa que se não fosse pelos ombros estreitos seria confundida com um anã. Seus olhos mal disfarçavam a fome que sentia naquele momento, já posicionando suas mãos aos talheres. Havia a tratado de uma doença pulmonar que ainda persistia, mas que provavelmente seria curada em breve.
- Realmente, doutor, quando seu irmão nos chamou imaginávamos que fosse uma brincadeira, ele não é muito de dar as caras por aí – disse outro, chamado Bapraz, um Orc dessa vez, bastante pálido. Seu cabelo mesclado entre branco e preto e suas cicatrizes demostravam que se tratava de um senhor vivido, raro entre seres que buscavam os riscos com tanta avidez. Tari o havia atendido meses atrás em face de uma perfuração de estômago que dissera ser de um Calcriote, uma criatura de pelagem parda, três cabeças e chifres pontudos que podia ser encontrada entre as montanhas cinzentas. Não discordou, ainda que parecesse muito mais com um golpe de lança em disputa amigável entre seus irmãos.
- Realmente, Aldini é um homem reservado, mas fico feliz com a presença de todos vocês aqui - disse ele com um sorriso no rosto. - Com certeza será uma atividade que a partir de agora farei com frequência.
- Naquele momento Aldini entrava com uma bandeja de cogumelos frescos para acompanhar. Comportamento estranho de quem sempre esperava comida à mesa, mas haviam débitos a serem pagos e ele sabia disso.
- Chame Delimere e as meninas à mesa, Aldini, vamos partilhar todos juntos essa refeição – disse ele, aproveitando que o irmão ainda estava de pé.
- Ela foi passear com as meninas na feira, meu irmão, mas ela ajudou a preparar tudo antes de ir partir – ressaltou Aldini.
- Fez bem – respondeu ele com um sorriso ao rosto. - Temos que cuidar bem de nossa querida Delimere – disse ele enchendo a tigela de barro funda com uma concha generosa. - Você tem razão, acho que exagerei ontem à noite, mas assim que voltar a recompensarei – completou em tom entusiasmado. O guisado de carne fresca e gosto peculiar, apesar de saboroso ainda que forte, não tinha o tempero da velha senhora, com certeza ela não tinha o ajudado como dissera, ainda que talvez quisesse partilhar os louros do ato gentil.
Todos à mesa se deliciavam com o guisado. Incomuns eram os dias de refeição tão farta. Havia Shirovisia, uma mistura de leite fermentado, rum e especiarias, um pequeno tonel de Hidromel e uma jarra de suco de amora. A mesa forrada de linho branco combinava com as paredes de mármore claro e acetinado das paredes. Se havia algum dom naquela família de camponeses era como fazer um jantar digno de reis.
- Stanson e Bapraz, lembre-se que nessa fase de recuperação não podem beber os alcoólicos – disse ele em tom firme, interrompendo a ação de um rapaz calvo e rechonchudo que havia pego a jarra de Shirovisia para se servir.
- Sem álcool, sem saúde, Doutor – disse Stanson, o jovem elfo perto de seus noventa anos, em tom brincalhão, arrancando a risada de todos da mesa.
- Com certeza, depois que se recuperarem mando entregar dois tonéis para cada um – incentivou ele. - Muito obrigado – apontou a taça ao irmão. – Não imaginava que fosse ter uma manhã tão graciosa.
- Eu que agradeço, irmão, amanhã lhe mostrarei minhas pesquisas a você – respondeu Aldini sorrindo.
- Achei que esse era um pedido de desculpas, estou certo? – questionou.
- Na verdade, é uma despedida – respondeu Aldini, enquanto ele derrubava o garfo de sua mão agora trêmula, enquanto observava os olhares de súplica dos demais, até que o velho Orc chocasse a cabeça contra a mesa.
- O que você fez, Aldini? – desesperou-se.
- Estou me despedindo de tudo que estava me atrapalhando, infelizmente Delimere não estava nos planos, mas infelizmente acabou vendo demais e teve que participar do jantar – disse Aldini saboreando a taça de Hidromel.
Ele vomitou sobre a mesa no instante seguinte e se jogou ao chão tentando se arrastar em direção à cozinha. Seu irmão o acompanhara de perto com a taça em mãos.
- Delimere, Delimere! – gritava desesperado, enquanto sua consciência se esvaia. Sabia que não conseguiria chegar muito longe.
- Ah, Tari, finalmente vamos trabalhar juntos como você sempre quis, não está contente? Finalmente decidi seguir seus conselhos. Inclusive me deparei com seus relatos dos casos no hospital que acho que vão me ajudar a resolver algumas incógnitas que faltavam.
- Seu monstro, seu covarde... Foi você, não foi? – tentava gritar se arrastando em direção ao seu irmão, com lágrimas em seus olhos. Havia negligenciado tantos detalhes, sequer havia tempo para se arrepender.
- Amanhã finalmente te apresentarei meu trabalho, era isso que queria, não é? Você finalmente compreenderá a grandeza de minha obra, meu irmão – dizia Aldini girando a taça e tomando o último gole, enquanto ele tentava cruzar os dedos para puxar a barra de calça de Aldini, até que seus olhos finalmente se apagassem.
Tari
Ao despertar, Tari reconheceu as marcas os brotos de calêndula dourada depositados sobre o tronco amarronzado. Certamente se tratava de uma propriedade da família. Os pés estavam atados e as mãos amarradas e penduradas em um gancho fixado ao teto. A mordaça em sua boca quase o asfixiava de tão apertada e ao olhar para o lado viu aqueles com quem partilhara sua última refeição. Em sua volta, havia vários tubos envidraçados em suas bases metálicas, tão altas que por pouco não alcançavam o teto. Em seu interior, líquidos de cores diversas que reservavam seres incompletos e massas que teriam dificuldades de ser reconhecidas até mesmo por aqueles dotados do conhecimento necessário. Ao chão, fios entrelaçados e mesas metálicas espalhadas em meio às anotações que cobriam as paredes de fórmulas tanto quanto a própria tinta. No laboratório que parecia ter saído de seus piores pesadelos, era bem provável que olhares assustados e gritos abafados partilhassem de suas percepções.
- Senhores e senhoras, bem-vindos, vocês estão aqui hoje para inaugurar uma vida de novos propósitos, que utilizará seus gloriosos corpos enfermos em prol da evolução de nossas espécies... – pausou Aldini por um momento enquanto parecia anotar algo em sua prancheta. - Desde já, caso tenham alguma objeção aos procedimentos, peço que se pronunciem – continuou, escutando os gritos abafados - Bem, muito obrigado pela confiança então... Você será o último, meu querido irmão, assim poderá observar os procedimentos para que possa contribuir com seus sábios conselhos. Pense como se fosse um trabalho de férias. A cada passo de nosso sucesso, poderá pensar nas milhares de vidas salvas, como tenho certeza que você sempre desejou – exclamou Aldini com a satisfação estampada no rosto.
Mesmo na penumbra que ali havia, era possível ver as lágrimas escorrendo em seu rosto sobre sua testa. Não sabia se era dia ou noite ou por quantas horas ou dias havia apagado, mas qualquer esperança que havia em seu coração não havia o acompanhado até ali.
- É bom lembrá-los que me certifiquei que não fossem incomodados durante essa imersiva viagem. Já foi avisado que você, Delimere e os pacientes premiados estarão ausentes por algum período. Como eu disse mesmo?... Ah, sim, em um procedimento experimental - disse novamente com o sarcasmo entre os lábios. – Farei o possível para administrar aquele lugar com toda a dedicação que eu puder oferecer e quando voltar espero que me ajude a cuidar das meninas como sempre fez.
O girar dos volantes na parede pelas mãos de Aldini fazia com que os corpos descessem dos ganchos no teto e posteriormente afixados sobre as mesas enquanto ainda se debatiam em vão. Irina, a pequena moça ruiva de outrora, fora a segunda, e após a substância aplicada em seu braço e o calor irradiado de alguns metais embrasados ao seu redor, transformou-se em um bolo gelatinoso, o qual só era possível distinguir os olhos que pareciam tentar se firmar. A massa se moveu da mesa e caiu ao chão se arrastando sob os aplausos de Aldini.
- Bravo, minha cara, faltam apenas alguns ajustes, mas os avanços já são extraordinários. A partir de hoje aquelas algemas jamais a impedirão com que seja livre.
A massa andava ao chão em direção ao canto escuro enquanto Aldini trocava a luva para os próximos preparativos.
O elfo envelhecera até a morte em segundos e o velho Orc com quem partilhara uma taça de Hidromel estourara a correntes sobre seus punhos. Seu tamanho duplicara em poucos minutos, em uma estatura próxima a dos gigantes. Os dentes afiados se tornaram presas robustas que quase chegava à altura dos olhos, os mesmos em que o medo dera lugar à uma rebelde irracionalidade. Aldini se afastou da mesa rapidamente e quase foi acertado por um dos braços de Bapraz, se é que o Orc ainda estava ali. O avanço cessou segundos depois, quando Aldini ativou o dispositivo de administração de dose afixado em seu peito, fazendo com que desabasse como um animal sedado. O corpo, com a ajuda das correntes e ganchos, foi transferido para uma imensa jaula, claramente preparada para o resultado.
- Adaptação, envelhecimento e giantificação, umas mais bem-sucedidas que outras logicamente, mas de beleza quase inalcançável. É quase como uma orquestra, Tari – disse Aldini meneando as mãos de olhos fechados como um maestro coordenando os invisíveis musicistas, com o andar leve e despreocupado. - Vidas de criaturas tão medíocres servindo com propósitos tão maiores do que qualquer desejo que pudessem ter.
O tintilar das correntes era inútil. Sua respiração pesada indicava que provavelmente mal conseguiria se manter de pé. Mal sentia suas mãos quando seu corpo finalmente desceu ao solo gelado. Seus pés tocaram a superfície com uma dor tão intensa que o forçara a espremer os olhos por um instante. Estava infelizmente mais desperto do que teria desejado. Sabia que havia chegado sua vez e por mais que se tratasse de uma tentação desatinada, era como se ansiasse por sua partida.
- Enfim, é chegada a hora, irmão – disse Aldini arrancando o pano transpassado em sua boca, ainda que seus lábios permanecessem calados. – Esperava ao menos uma palavra de apreço, mas acho que você está tão ansioso pra participar que não quer perder tempo, estou certo? – continuou o irmão erguendo sua face pelo queixo e encarando seus olhos.
- Me mate – sussurrou ele.
- Oi? Não entendi...
- Me mate, por favor, me mate – implorou ele novamente.
Aldini riu.
- E fazer você perder o melhor da festa? Nunca, meu irmão. Veja, esse aqui é um colete que fiz pra você, os detalhes são um pouco longos demais para o momento, mas foi feito como um presente - disse Aldini ostentando um colete de ferro tosco. Tinha uma espessura considerável e por dentro era possível observar várias pequenas agulhas de metal polido. O colete tinha duas partes que se encaixavam por meio de fechos de couro laterais. Nas costas, próximo à nuca, era possível ver um cilindro de metal. Quando Aldini fechou o colete, as pequenas presas metálicas fizeram com que ele urrasse em sofrimento, ainda que o desconforto fosse suavizado momentos depois.
- Agora o fim do espetáculo! – exclamou Aldini puxando uma mangueira e conectando ao colete, beijando em seguida a testa do irmão. – Obrigado por tudo! Tenho certeza que nunca teria chegado até aqui sem você – continuou antes de girar uma pequena alavanca. A mangueira se balançou por um instante até que o fluído preenchesse o vazio. Por um momento um clarão tomou sua mente enquanto a paisagem passava depressa. As palavras que não ousou dizer desapareceram de sua mente como estalos assim como as outras que se sucederam. Uma única palavra se ouvia, Bilbons, Bilbons, ele dizia, atrás das grades da cela vazia.
A HERANÇA DA CALÊNDULA
Cavian
Já fazia algumas horas que haviam partido, e mesmo com a noite escura e o interior mal iluminado da carroça por um pequeno globo de luz preso ao arco superior da lona, não conseguiam dormir. Era o que imploravam os corpos tão exaustos, ainda que o medo tomasse conta até da ponta de seus dedos. Estavam sozinhos rumando ao desconhecido e o temor percorria suas mentes como o próprio ar que respiravam. Para corpos tão mal-acostumados com a liberdade, qualquer possibilidade era maior do que a própria realidade.
- Cavian?... – sussurrou Mika.
- Sim, diga... – respondeu ele rapidamente, abrindo os olhos que balançavam com o solo irregular. Nem se lembrava da última vez que realmente dormira, os pesadelos desapareceram assim como os sonhos, e o deitar ao anoitecer servia apenas para descansar seu corpo às vezes exausto. Qualquer descanso seria negado naquela posição. Estava sentado com os braços apoiados sobre os joelhos dobrados, assim como Mika, ainda que o espaço reduzido não permitisse qualquer tipo de luxo.
- Imaginei que não estivesse dormindo. Me perdoe a intromissão, mas gostaria de saber o que Aldini fez realmente a você – disse Mika apontando para máscara com a esperança de que entendesse.
- Aldini? – questionou ele tentando se recordar do nome.
- É o primeiro nome de... Splenze... É como eu costumava chamá-lo.
- Esqueça, Mika, de qualquer forma já não importa mais... Fizemos o que deveria ser feito e fiz sabendo do que me aguardava...
- Não, não é isso... É que acho que sei como reverter o processo, digo, tirar essa coisa da sua cabeça. Pelo que vi essa estrutura de metal foi afixada na sua coluna, não?
Cavian sorriu.
- Sim, mas pelo que entendi não é tão simples. Quando estive em Faldram logo após ter sido libertado, os próprios curandeiros daquelas florestas disseram que seria impossível retirá-la, está de alguma forma amarrada, não sei explicar... Não consigo também entender os detalhes.
- A estrutura metálica faz com que não possa usar sua magia ou coisa do tipo, correto? E a espada serve para redirecionar o fluxo de energia para a lâmina, não é?
- Sim... – respondeu ele desconfiado, não viu ela conversando com o Rizar em nenhum momento. – Onde escutou isso?
- Não é que eu tenha escutado, mas é um pouco óbvio, talvez? – respondeu espremendo os olhos procurando entender a pergunta. - Mas dou o braço a torcer que se trata de uma solução inteligente para seu problema.
Claramente não era tão óbvio pra ele. Primeiro o pé recuperado rapidamente, depois o alcance de sua audição naquele bueiro, agora aquilo. Nada daquilo poderia ser explicado por sua origem Qualiniana. Mesmos os elfos da noite mais velhos apresentavam sinais do tempo após o tratado.
- Morei tempo suficiente naquela casa, Cavian, e sei que laços de confiança não se criam de uma hora pra outra, mas se me deixar te analisar e fazer algumas perguntas, tenho quase certeza que sua condição pode ser revertida. O problema de se utilizar a magia no seu caso é que seu próprio elmo é feito de uma liga de Trilium, especial de fato, mas como posso dizer?... Seria impossível que tratassem seu caso com magia, entende? Não pelo menos com magia comum. O próprio Aldini provavelmente sabia disso quando o fez. Há muitos usuários experientes que poderiam ajudá-lo em outros casos, já se utilizarmos a ciência bem... Digamos que as possibilidades se restringiriam a alguns estudiosos, que pelo que escutava talvez já tenham até sumido do mapa.
Cavian não sentia alterações da batida de seu coração. Provavelmente falara a verdade, por mais estranho que tudo aquilo parecesse a ele.
- Entendo, o que me intriga é que o próprio Splenze disse que provavelmente não conseguiria reverter a situação.
- Não disse que é fácil, exigirá as ferramentas certas, mas mesmo essa lâmina que utiliza deve limitar suas habilidades. Aquele que derrotou está bem longe de ser conhecido por sua força e ainda assim vimos as consequências. Veja... Longe de mim ter a pretensão de tentar convencê-lo, eu mesma sequer teria vindo se não tivesse me convencido a sair daquele lugar, então já que estou aqui, se eu puder de alguma forma tentar equilibrar as coisas, talvez seja uma forma de ajudar.
- Desculpe a pergunta, mas mesmo sendo tão esperta, nunca desconfiou para quem Splenze trabalhava ou o que fazia ali?
Mika sorriu.
- Estou presa naquele lugar entre os livros e aquelas grades desde minha infância, Cavian, nunca sai de lá pouco tempo depois de minha mãe falecer. Perdi a conta de quantas vezes meus braços foram perfurados e quantos gritos escutei atrás daquela porta vermelha... – suspirou como se as lembranças pesassem o ar que respirava. - Foram anos e anos de corpos empilhados e largados naqueles dutos que atravessamos. Acredito que seja um pouco difícil perceber algumas coisas quando você é mantida viva como um rato de laboratório – respondeu Mika ironicamente.
O coração antes tranquilo agora parecia acelerado e ele pôde sentir a ira crescente em sua voz.
- Desculpe, não foi minha intenção. Só quero entender as coisas. Você parece confiável, só gostaria de me certificar...
- Sem problemas. Não é sua culpa – interrompeu Mika.
- Você pode se transformar como ele?
- Não, é diferente... Meu corpo possui algumas alterações que Aldini chamava de aprimoramentos enyanos, como se fossem vantagens genéticas sem perdas significativas, é como consegui carregar Narthus, por exemplo, sem ter que aumentar de tamanho. O que viu naquela caverna foi fruto dos testes antigos, antes dele começar a utilizar eu e minha irmã para aprimorar seus métodos. Ela era um receptáculo onde as hipóteses eram testadas e eu onde as conclusões satisfatórias eram unidas.
- Sua irmã então...
- Sim, ela se foi, assim como minha mãe antes dela, assim como o próprio irmão de Aldini. Aquele homem, se é que posso referenciá-lo assim, não tinha qualquer obstáculo a nenhum de seus propósitos, Cavian. Foi por isso que chegou onde chegou. Independentemente do que Rizar pense e independente se ele esteja certo ou não, garanto a você que o que fez junto de Narthus trouxe paz a muitas almas que partiram naquele lugar.
Seu coração se alegrou e se confortou de alguma forma, era a primeira vez em muito tempo que se sentia daquela forma.
- Que bom que pensa assim. Realmente peço desculpas por tudo, às vezes sinto que sou paranóico demais.
Mika riu inesperadamente.
- Tem muita coisa que deixei de conhecer, mas me parece que nos tempos atuais, não parece ser possível sobreviver por muito tempo sem que deixemos alguns pedaços de sanidade pelo caminho, não é? Fique tranquilo que tenho coisas mais importantes para me preocupar.
Ele assentiu, pensando no inquestionável fato que Mika acabara de relatar.
- Realmente planeja ir com a gente para o reino das águas?
- Na verdade, por enquanto planejo me manter viva e agradecer Narthus quando ele voltar, sei que vai – respondeu Mika confiante. – Para ser bastante sincera, meu objetivo principal foi realizado no dia de ontem e como minha família toda já se foi, parece que meu leque de opções está bastante restrito no momento – continuou sorrindo ainda que seus olhos buscassem ao chão.
- Por que não se junta a nós? Splenze faz parte de um problema muito maior, não acredito que todas as coisas que fez parem depois de sua morte. Os reinos aliados com certeza acharão alguém para continuar suas pesquisas.
- É provável que tenha razão, mas talvez tenha me acostumado por tempo demais a viver um dia de cada vez, Cavian, quanto menos expectativas criarmos, com menos frustações precisaremos lidar!
Cavian riu.
- É uma forma interessante de se pensar, principalmente na situação em que estamos.
- A única que pode equalizar a balança – finalizou Mika apontando os dedos indicadores a ele.
Mais um sábio conselho de uma dama dos livros. Ele costumava consultar outra delas com certa frequência, mas talvez Mika o poupasse dos puxões de orelha. Onde está você, minha irmã? Espero que bem, pensou.
Cavian
As entradas de Stormcrow pareciam agitadas. Antes que se aproximassem o suficiente, o condutor fez o sinal para que se escondessem e avançou a carroça sobre a vegetação alta e afilada que penteava a base do corpo robusto de madeira. O assoalho extenso da carroça se abria como uma porta ao meio. Era onde o corpo de Narthus e Rixi haviam passado a noite. Por maior que fosse o espaço ocupado pelo gigante cinza, foi possível acomodar todos antes que fosse fechado pelo carroceiro.
Depois de algum tempo, Cavian ampliou seus sentidos e observou a quantidade de carroças paradas e que eram verificadas uma a uma pelos soldados. Ele não sabia qual era a rotina padrão, mas certamente não se tratava de um regime de normalidade. Após a realização da entrega, dependeriam apenas de sua própria sorte. Não havia mais nada em que Rizar pudesse ajudá-los.
Stormcrow era uma civilização caoticamente ajustada. O mercado negro imperava há anos naquela região e talvez propositalmente os corredores estreitos e curvos dificultavam qualquer controle que precisasse ser imposto. Era uma cidade comum totalmente diferente de Fisbia. Somente após a instituição do controle pelos reinos aliados é que foi possível haver alguma segurança que não se desse pelas próprias mãos de seus nômades moradores. Ainda assim, tinha-se a sensação de que o que queriam manter seguro ali era justamente o comércio lucrativo e eticamente questionável que já funcionava ali. Para os habitantes, a proteção superior aos seus negócios era próspera e para os reinos aliados um ouro sem muito esforço.
Rizar havia sido claro, as túnicas e roupas maltrapilhas fariam com que se misturassem aos demais. Nada poderia parecer limpo demais e até mesmo Narthus passaria despercebido em meio à quantidade de forasteiros que circulavam entre os tortuosos corredores. Aliás, ele não havia acordado até então, ainda que Rixi não parecesse preocupada. A fada mesmo mostrara o ferimento que Narthus tivera naquela batalha a ele e a Mika, enquanto a elfa parecia estarrecida ao tocar cuidadosamente no tecido que se recompunha ainda que de forma preguiçosa. O buraco aberto no estômago, bem menor do que havia sido visto dias atrás, havia sido preenchido por estruturas parecidas com raízes. A fraca sensação que sentira entre as paredes daquele túnel em Tessan estava se expandindo dia após dia. Certamente ele voltaria a eles, era somente uma questão de tempo.
A carroça finalmente estacionou. Deveriam desembarcar durante a primeira entrega. A taverna recomendada a ficarem hospedados ficava ao lado. Pequena e reconhecida por sua discrição. Era o que precisariam para coletar as informações necessárias. Nem mesmo um corpo carregado poderia chamar atenção naquele lugar, onde alguns deles poderiam até mesmo serem adquiridos a céu aberto.
Uma senhora de rosto magro e mandíbula afunilada jogava a poeira de um lado para o outro. Talvez por isso o pó parecesse cobrir do chão ao teto de forma tão notória. As estantes ao fundo do balcão tinham em sua maioria garrafas em todos os tons de verde e em formatos tão inusitados quanto curiosos, de pescoços espiralados a bojos que pareciam ter sido achatados pelo tempo, em sua grande maioria quase vazias e só não mais que as mesas que aguardavam no local. Cavian carregava Narthus sobre os ombros com a face longe do alcance de olhos curiosos enquanto Rixi se escondia sob seu manto. Nem o ouro que Rizar os oferecera valia tanto quanto a fada naquele lugar. Seria impossível que passassem despercebidos com o rangido que subia do chão de madeira antiga a cada passo. O peso de Narthus parecia ser maior do que o velho assoalho poderia suportar.
- Pois não? – disse a senhora tossindo logo em seguida, ajeitando os óculos de lente estreita sobre o nariz.
Era manhã e dificilmente alguém procuraria bebida naquele horário.
- Precisamos de um lugar para ficar – disse Mika gentilmente.
- Para esse senhor avantajado só temos o porão. Tem espaço suficiente e alguns colchões velhos – resmungou a senhora provavelmente achando que estivesse sendo carregado depois de uma animada noite de festa.
- A casa serve alguma refeição? – perguntou Mika novamente.
A senhora riu.
- Sim, cerveja quente, minha querida, e algum rum. Já olhou esse lugar? Acha mesmo que tenho cara de cozinheira? – ironizou de forma desbocada.
- Desculpe, minha senhora, não era o que quis dizer...
- Não importa, são duas moedas de cobre por semana. Se seus bolsos estão vazios, sumam já daqui – disse a senhora rispidamente meneando as mãos.
Mika tirou de seu colete uma moeda de ouro.
- Espero que seja o suficiente – ofereceu a moeda à senhora.
- Caso a senhora tenha alguma preferência de refeição apenas me diga que darei um jeito de providenciar. À propósito, me chamo Dolores – apresentou-se novamente a senhora, agora com um largo sorriso no rosto. Ao menos ali o ouro parecia valer mais do que qualquer convicção.
Desceram as escadas até onde deveriam se hospedar, assustando alguns ratos que corriam para se abrigar entre as frestas das tábuas sob o chão. Ao menos não poderiam reclamar de falta de companhia.
- O que faremos agora? - questionou Mika, enquanto o ajudava a acomodar o corpo de Narthus sobre um dos colchões velhos recheados de palha e algodão, onde os tecidos grossos que os cobriam já haviam sido reivindicados pelas traças rechonchudas que corriam desorientadas. Metade das pernas de Narthus ainda havia ficado sobre o chão, ainda que não houvesse nada que pudessem fazer.
- Acharemos um homem que atende pelo nome de Sirius, um dos homens mais próximos de Shasak – explicou ele.
- E ele não nos entregaria por qual razão? - indagou novamente Mika. – Aliás, é bem provável que você sequer chegue até ele usando isso – completou apontando à máscara.
- Se Rizar estiver certo, Sirius teria muito mais a ganhar do que a perder nos ajudando, além dele parecer ser a única porta para encontrar algo em um tempo tão curto e que sequer sabemos onde está – disse retirando o cálice de Monlok de seu bolso.
- Eu realmente pensei muito no caminho, Cavian – disse a fada. - Mas pensando que há certa possibilidade, ou talvez mais do que tenhamos estimado, de que este senhor o venda ao seu próprio pai pelo peso do grandalhão em ouro, e que essa taça bonita e uma promessa de ascensão talvez não sejam exatamente uma proposta tão vistosa se comparada a primeira, sabe quais são as reais chances desse plano dar certo? Eu te respondo: ZERO! - enfatizou a fada enquanto Mika assentia com a cabeça timidamente. – Vamos usar esses cabeções para pensar em algo que ao menos seja mais confiável do que escolher um lado da moeda e jogar pra cima.
- Eu concordo que poderíamos pensar em algo não muito melhor se tivéssemos mais tempo, mas a proposta é bem mais vistosa do que parece, porque tem algo que eu nunca disse a Rizar quanto aceitei esse cálice... A de que eu teria um tesouro muito maior do que qualquer um estaria disposto a pagar por mim.
Rixi gargalhou.
- O que eu perdi enquanto dormia? – desconfiou Rixi.
- O mapa para os tesouros de meu pai – respondeu ele confiante.
- Cavian, vamos lá... Mesmo que tivesse isso em mãos, ninguém seria louco de tentar roubá-los de Aquia ou de qualquer lugar que fosse bem debaixo dos olhos de dele – alertou a fada.
- É parecido com o que estamos tentando fazer aqui, não é? E segundo Rizar, se tem alguém que cogitaria a hipótese esse alguém seria ele – defendeu Cavian.
- Não sei, Cavian, me parece ruim também – interviu Mika com um nariz franzido. - Além disso, não resolveria a questão de que te descubram antes de chegar a ele. É como se andasse com um cartaz de procurado estampado em sua face e a negociação, por mais que ocorra por mim ou por Narthus, dificilmente teria a credibilidade necessária para o que pretende propor.
- Se tiverem alguma outra ideia, sou todo ouvidos. Além disso, eles procuram um homem mascarado e alguém disse que poderia tirar essa coisa de mim – lembrou ele à companheira.
- Há riscos, Cavian... Disse que tenho uma ideia de como retirá-lo, mas colocar mais esse fato no cálculo... Bem, não sei, parece arriscado demais.
- Sim, assim como qualquer coisa que tentarmos – retrucou ele. - Pode ser que você não consiga, pode ser que não consigamos falar com esse homem, pode ser que ele realmente não aceite nos ajudar, mas pensem em tudo que nos trouxe até aqui. Eu mesmo teria todos os motivos para duvidar, assim como vocês, mas se não fizermos o que estiver ao nosso alcance dentro das chances que temos, era melhor que nem tivéssemos saído daquela floresta.
Mika assentiu, enquanto ambos olhavam para Rixi.
- Que seja! – concordou Rixi contrariada. - Mas se tudo der errado, me prometam que irão sumir comigo antes que eu seja leiloada por esses doentes – brincou ela sorrindo com os braços cruzados.
Narthus
Narthus despertou com rostos familiares em frente à sua face, como se esperassem por um milagre. Tinha certeza que seria impossível voltar dessa vez. O toque embrasado do veneno que correu por seu corpo da primeira vez tinha proporções bastante menores do que havia acontecido. Tocou em seu abdômen procurando o buraco que Splenze fizera, mas o lugar fora tomado por uma pele amarronzada que cobrira a ferida e o devolvera ao mundo dos vivos.
- Ei, grandalhão, como está? – questionou Rixi com um sorriso que mal cabia em seu pequeno rosto.
- Acho que bem – disse ele se sentando e analisando o peculiar local em que se encontrava. Era um quarto de madeiras desencontradas. Uma única porta e algumas poucas velas espalhadas no lustre simples preso ao teto. Uma pequena mesa à direita da porta com jarras, o olhar esperançoso de Mika o encarando e de Cavian ao lado, aliviadamente... vivo? Esperava que o amigo também estivesse bem por trás da máscara.
Antes que pudessem continuar, Mika correu em sua direção e o abraçou, enquanto Rixi trocou o semblante alegre pela sobrancelha levantada e os braços cruzados.
O gigante esboçou um sorriso enquanto a fada exibia uma face contrastada com a de segundos atrás, enquanto os olhos de Cavian o haviam privado da diversão.
- Obrigado, Sr. Narthus, muito obrigado mesmo – agradeceu Mika com os olhos marejados enquanto recobrava a postura. – Realmente peço sinceras desculpas pelo que aconteceu.
- Só Narthus, por favor! – disse ele embaraçado. – Não se preocupe, está realmente tudo bem, garanto que faria o mesmo por mim – finalizou ele enquanto seus olhos sorriam.
- Para ser sincera, não sei se faria o que fez naquela situação... - iniciou Mika para surpresa de todos. – Digo... Não me entenda mal, agora sim com certeza – continuou a moça rapidamente negando com a mão e tentando consertar a má impressão. – Acho que estraguei tudo, não é mesmo? Mas não foi isso que quis dizer, é que eu poderia ser uma pessoa ruim, entende? – finalizou enquanto todos gargalharam.
- Pelos deuses! E eu de modo algum gostaria que retribuísse a ação, senhorita – respondeu ele ainda achando graça da situação.
- O.k., o.k. – disse Rixi interrompendo o momento de descontração. – Temos muito trabalho pela frente. A propósito, a nobre moça se chama Mika e ela precisa de algumas coisas para que enfim saibamos o quão estranho pode ser um filhote de dragão – brincou a fada.
- Que boa notícia – exclamou Narthus. - Não achei que fosse possível...
- Pois é, meu nobre amigo, os detalhes são complexos, mas o mais importante é que está de volta entre nós. Assim poderá dividir as incríveis histórias do fantástico mundo de Rixi novamente comigo - revidou Cavian.
Narthus riu novamente.
- Imagino pelo lugar que estamos que já saímos de Tessan, correto? – questionou ele enquanto observava o teto de altura insuficiente.
- Exatamente, em Stormcrow mais precisamente, com apenas alguns dias até que Shasak retorne. Então precisamos nos apressar – alertou Cavian.
- Certamente, apenas digam no que posso ajudar – ofereceu-se.
- Já tem a lista em mente, querida? – questionou a fada à Mika, que parecia estar contando mentalmente tudo o que precisava.
Mika assentiu com a cabeça.
- Então mãos à obra! – ordenou a fada aos presentes, enquanto organizavam o local.
Não demorou muito até que os mapas mal desenhados que Rizar havia entregue a eles cobrissem o chão, assim como a lista de nomes importantes e pontos de fuga. Ainda que carecesse de refinamento, era muito mais informação do que qualquer um ali naquela cidade provavelmente estivesse disposto a fornecer.
Mika
Ainda pela manhã, Dolores trouxe ovos mexidos em um balde de cerâmica e um tonel com carne de javali que provavelmente estivera guardada naquela banha por anos, ao menos era o que o forte cheiro indicava. Os pratos com pedaços faltantes estavam limpos dentro das possibilidades, ainda que tudo aquilo fosse um luxo dificilmente encontrado naquela região. A água fresca e uma pequena jarra de suco de amora completara o cardápio. Pelo menos se dependesse da opinião de Mika, não haveria qualquer comentário que pudesse desaboná-la. A avidez com que comia lembrava a de Cavian quando chegara à floresta e só se envergonhou quando percebeu os olhos risonhos que a encaravam. A cena parecia uma ceia despreocupada de crianças que pareciam brincar de sobreviver.
Após a refeição, Mika e Narthus partiram apressados, a lista era extensa e ia desde tesouras a ervas raras que necessitariam de uma longa procura. Por mais que o olfato de Rixi pudesse facilitar os trabalhos, o risco era alto demais mesmo naquela situação e alguém precisaria ficar para ler os mapas enquanto Cavian permanecesse por ali.
Stormcrow era tão anárquica que até os caminhos feitos pelos roedores pareciam mais organizados. O espaço estreito pelos corredores e os inúmeros becos sem saída tornavam a cidade um labirinto sem fim, um parque de diversão para saqueadores, o que fizera com que levassem somente o suficiente para as aquisições. Deveriam ser precisos com o pouco e precioso tempo que lhes restavam.
Já haviam adquiridos algumas tesouras cegas, uma pedra de amolação e algumas bandejas, além de um par de óculos comprado por Narthus para que ela protegesse seus olhos. A luminosidade não atrapalhava Mika como seus pares. Seus olhos não eram mais como antigamente, mas não teve a coragem de negar o gesto gentil, talvez pela falta de costume de tais atos ou por realmente ter gostado do objeto de lentes redondas e arroxeadas, ela começara a usá-los a partir dali. Estavam vagando pelos corredores atrás dos itens que restavam quando viu um homem esbarrar em Narthus e cair ao chão. O gigante instintivamente se abaixou para ajudá-lo a se levantar, quando ela percebeu o puxar da bolsa na cintura do gigante por outro homem que o transpassara sorrateiramente. Estava firmemente amarrada no cinto de couro, o que certamente indicava que havia sido cortada por qualquer lâmina afiada que fosse capaz de fazer o serviço.
Ela viu que Narthus havia percebido o ato quando este pausou seu movimento por um quase imperceptível momento, antes que ainda assim continuasse o gesto de ajudar o homem ao chão que, para a surpresa dela, deu um tapa na mão estendida.
- Saia para lá, mestiço, não preciso de ajuda de alguém como você – disse Thasdra, o homem que se levantara do chão, batendo em suas vestes para tirar o excesso de pó. Era um humano de meia idade de pouca estatura e barba grisalha, que utilizava vestes acinzentadas e botas exoticamente avermelhadas.
Como se não bastasse, uma pedra do tamanho de uma maçã atingiu a cabeça do gigante, ainda que provavelmente fosse a pedra que tivesse sentido o impacto.
- Essas aberrações não param de aparecer por aqui, a mãe desse deve ter cruzado com um gigante – disse Vid, outro mais jovem de cabelos lisos e escuros que escondiam parcialmente seu rosto achatado. Fora ele que atirara a pedra segundos atrás. – Me dê logo – resmungou ao companheiro ao seu lado.
- Não está comigo – disse Mormund, um terceiro que passou rapidamente procurando em sua capa a sacola de ouro que juraria ter acabado de ter pego em suas mãos.
- Ei, moça, um conselho: não se misture com esse tipo de gente. Eles não passam de bastardos e tentativas de cópias baratas – alertou Thasdra, o senhor mais próximo de pouca estatura e barba grisalha.
- Cala a boca, seu imbecil – retrucou ela com a respiração pesada. – Peçam desculpas os três.
- Está tudo bem, Mika – sussurrou Narthus em seu ouvido, já desacostumado a alguns olhares duvidosos que não o perseguiam mais desde que haviam sumido entre as árvores da floresta.
- Se não fará nada, eu o farei. Não ouviu o que disseram, por acaso?! – esbravejou ela.
Narthus assentiu, ainda que para ele não fizesse a menor diferença. Provavelmente não havia nada que fizesse ou que dissesse que mudaria os perversos pensamentos alheios.
- Que bonitinho – disse Thasdra, enquanto os outros dois pareciam discutir. – Agora entendi, você o adotou como seu bichinho de estimação – zombou o homem olhando para ela em um sorriso malicioso. – Ei, vocês dois, parem de discutir e amarrem o grandalhão aqui. Já sei onde podemos vendê-lo.
- Mormund roubou o ouro, Thasdra – gritou Vid, a alguns metros dali. Vestia por baixo do longo sobretudo tecidos de tom levemente arroxeado que se dobravam uns sobre os outros.
- Já disse que não, por acaso está vendo algo aqui! – murmurou Mormund abrindo o sobretudo e mostrando o interior da capa repleta de bolsos vazios. – Deve ter caído ao chão...
- Ah, sim, isso aqui - disse ela ostentando a corda com algumas pequenas bolsas de couro amarradas, sete no total, uma delas a que Narthus carregara consigo.
- Viu, idiota? – resmungou Mormund para o companheiro ao lado. – Com certeza é uma feiticeira, acabe logo com ela, Thasdra, antes que os arautos cheguem – completou o homem apontando o dedo para a Mika.
Mika riu.
- Magia? Se querem roubar alguém deveriam pelo menos se certificarem de não serem tão lentos – ironizou ela balançando a corda com as bolsas vagarosamente.
- Minha senhora, apenas devolva as bolsas e deixaremos você e seu animalzinho em paz – propôs Thasdra.
- Devolva, Mika - pediu Narthus calmamente.
- Não sejam patéticos – bradou ela, ignorando o pedido. - Peçam desculpas e permitirei com que partam sem maiores problemas. Peço apenas que sejam rápidos porque não temos tempo a perder com idiotas.
Os outros dois homens se aproximaram. Pelos rostos não pareciam estar dispostos a fazer qualquer concessão.
- Bom, demos sua chance, senhorita – disse Thasdra abrindo a sua capa que ostentava algumas adagas, mas antes que pudesse atirá-las, Mika acertou um soco em seu estômago, apagando o homem sobre suas mãos. Os outros dois que mal puderam acompanhar seus movimentos deram as costas para correr quando Mormund teve seus pés limpados do chão e Vid, voltando os olhos para seu companheiro, tomou uma cotovelada na nuca, o que fez com que apagasse e caísse com o rosto ao chão, levantando uma nuvem de areia fina a sua volta.
Outros que passavam por ali, não tomaram qualquer partido. Eram comuns brigas de ruas naquela região e ao fim os mercadores voltaram seus olhos para as mercadorias, evitando confrontar seu olhar.
Foram três ao chão em segundos, provavelmente pensariam que se tratava de alguma guarda dos reinos aliados infiltrada. Ninguém ousaria confrontá-la para ter que lidar com as consequências depois.
- Peço perdão, minha senhora, por tudo que disse – murmurou Vid desesperadamente ainda caído, o único ainda consciente que juntava as mãos e se ajoelhara aos pés de Mika.
- A ele, não a mim – disse ela apontando para Narthus.
- Desculpe, meu senhor... – implorou Vid esfregando o nariz, com as lágrimas que enchiam o rosto empoeirado. - Não foi nossa intenção... Temos amigos mestiços também, sabia?... Se puder nos dar outra chance... No beco da rua doze... Podemos encontrar um serviço para seres talentosos como vocês – disse o homem em lágrimas ainda que o sorriso atormentado em seu rosto revelasse muito mais do que qualquer palavra que tentasse dizer.
- Não foi nada – disse Narthus visivelmente incomodado, enquanto ela retornava ao seu lado.
O homem ficou para trás ajoelhado, provavelmente sem acreditar que ele e seus amigos haviam permanecido vivos. De qualquer forma, ela sentia que o que fora dito ali foi apenas um reflexo do pensamento da maioria, ainda que Narthus não parecesse se importar. Os mestiços eram, em sua maioria, tido como párias fora das cidades comuns. Nenhum homem pode servir a dois reis, dizia um dos ditados antigos. Passou alguns minutos até que Narthus a abordasse novamente.
- Obrigado, mas não faça aquilo novamente, por favor – pediu Narthus enquanto caminhavam.
Narthus carregava um tonel de palha longo sobre as costas, enquanto ela, uma sacola de pano igualmente recheada de compras.
- Você não se incomoda nem um pouco com esses olhares? Eles não têm esse direito, Narthus – disse ela, encarando-o com a cara amarrada.
- Só não importa pra mim, são almas perdidas. Não cabe a nós julgá-las, entende?
- Não tolerarei o que fizeram, independentemente se goste ou não.
- E você acha que elas vão parar com o que você fez? Ignorá-las fará com que o que fazem perca o sentido. Muitos, como viu, não farão nada por medo e o sentimento permanecerá velado em suas mentes. Mantenha-se neutro e eles perceberão que não poderão te machucar e verão que não tem qualquer poder sobre ti, foi uma das lições que meu pai me ensinou logo depois que comecei a morar naquela floresta. Um dia quando não estiverem pensando apenas em sobreviver a cada dia, quem sabe elas não possam ter tempo de amadurecer.
- Bom, até que esse dia chegue, se te insultarem novamente e eu por acaso estiver por perto vou fazer com que caiam ao chão como folhas secas – afirmou ela com convicção, arrancando um esboço sorridente e tímido de Narthus.
Não havia nada ali naquela cidade que merecesse ser salvo. Um mercado de vidas a céu aberto, que se escondia nas sombras mesmo sob o sol, aos olhos daqueles que assistiam vendados o esmagador martelo da indiferença.
Mika
A lua se empunhava cheia naquela noite e o chuvisco fino enchacou lentamente suas vestes antes que ela e Narthus retornassem. Ao descerem as escadas, as paredes estavam cobertas por desenhos de traços simples que pareciam ter saído da mão de crianças. Apesar disso, não foi difícil reconhecer cada um deles. Ela era a única com traços longos ao lado da cabeça circular, ainda que suas orelhas não fossem tão longas. Narthus era o maior dos homens palito com um círculo vistoso em seu centro, Cavian tinha uma caixa quadrada na cabeça e a própria Rixi era a única com traços mais detalhados com asas vistosas e bem tracejadas e uma pequena coroa na cabeça, a líder logicamente do pequeno grupo.
- Como demoraram – resmungou Rixi com um pedaço de calcário em mãos.
- Tivemos alguns contratempos – disse ela enquanto seus olhares se cruzaram com Narthus.
- Bom, que seja. Veja o que eu e Cavian fizemos. Já traçamos o caminho até a taverna da igreja e já descobrimos onde fica o castelo.
- E acho que alguns detalhes de sua entrada também – completou Cavian sem que pudesse ver a arte na parede.
- E nós conseguimos fechar toda a lista – disse Narthus descendo o tonel de palha ao chão. – Espero que esteja preparado, meu amigo.
- Tenho plena confiança nas mãos que darão meus olhos de volta – disse Cavian arrancando um sorriso da elfa da noite.
Era estranho estar ali para ela. Dias atrás estivera sozinha. Agora parecia ter encontrado pessoas que talvez pudesse confiar. De um jeito ou de outro não poderia falhar com eles. Tentava recordar cada detalhe das aulas de Tari e conferira tudo por mais de uma vez. Encarava a situação como uma chance de derrotá-lo novamente. Nunca ninguém desfizera os feitos do monstro por trás do rosto gentil, ainda mais um que ele parecia ter ostentado com tanto orgulho.
Mika
Narthus finalizava os preparativos na mesa de madeira velha cedida por Dolores, fazendo um buraco em sua borda suficientemente grande para acomodar a cabeça de Cavian com a talhadeira e o martelo que haviam comprado nas barracas da cidade. Deveria ser imobilizado adequadamente antes que iniciassem. Mika macerava as ervas em um pequeno pilão improvisado em uma pedra disforme, enquanto Rixi separava as quantidades corretas de acordo com as anotações de Mika na parede perto da porta.
- E esta? – questionou Rixi à Mika, girando as pequenas mãos enquanto o pilão macerava um caldo escuro e espesso disposto no tosco almofariz de pedra.
- Vai naquela seringa – respondeu ela apontando rapidamente para a seringa de bronze tentando não se dispersar. Tudo deveria ser finamente calculado, o chá que preparara tinha em sua mistura mandrágora e artemísia, capazes de tomar a consciência plena do indivíduo em um piscar de olhos. Uma dose errada seria decidir entre o perecimento e a loucura.
- Hmm... Que estranho – fungou a fada estalando os dedos para que o cilindro da agulha viesse até ela e o almofariz entornasse o líquido sobre este. – Tem certamente algumas outras coisas, mas... isso cheira a beladona! – sussurrou Rixi enquanto o êmbolo argolado se rosqueava. – Não sei se prefiro que você saiba o que isso pode fazer – continuou a fada franzindo o cenho.
Era óbvio que não concordaria. Drugard, um dos centauros que a fada conhecera, debateu-se por dias ingerindo por engano um dos ramos da planta até que finalmente partisse. Uma das plantas de uso proibido até mesmo entre os sábios da floresta.
- É apenas em caso de emergência – justificou-se.
- Isso pode matá-lo – retrucou a fada.
- Assim como pode trazê-lo de volta – respondeu ela rapidamente. - Confie em mim, Rixi, não é minha intenção usar isso de qualquer forma.
- É estranho que diga isso tendo se preparado tanto para tal – ironizou Rixi.
Ela respirou fundo por um breve momento disfarçadamente. O silêncio sempre fora um de seus refúgios prediletos e a fada parecia ter o dom de torná-lo distante.
- Cavian perderá muito sangue no processo e nisso... O que quero dizer é que acho que é um fardo pesado pra carregar mesmo para alguém como ele. Se eu não tiver um jeito para ajudá-lo no processo, terei que vê-lo partindo sem poder fazer nada – suspirou ela.
- Não vou interferir na decisão dele, já é crescido o suficiente, mas coça meu nariz o que fato deles possuírem mais confiança em você do que o tempo poderia construir, e, bem... Meu nariz quase sempre está certo – sussurrou Rixi rispidamente ao voar até seu ouvido antes de se afastar, ainda que ela tentasse ignorá-la, afinal, já tinha preocupações demais para o momento.
Ela se aproximou de Cavian, entregando-lhe o chá cuidadosamente em mãos.
- Até logo, meus amigos! – Animou-se o príncipe dragão. De alguma forma estranha parecia ansioso mesmo que ela tivesse reiterado insistentemente os riscos. As razões eram óbvias, mas talvez por ser a única ali a relembrar repetidamente da extensa lista de possíveis contratempos, não conseguia ter o mesmo entusiasmo. A Vinoliana, apesar de tudo, tinha certa razão, mas talvez fosse natural aos homens uma certa falta de dose de realidade, ainda que não conhecesse muitos deles. Agora que entendia as discussões de sua mãe depois de tantos anos, era nostálgico lembrar das divertidas confusões de seu pai. Se estivessem ali com certeza estariam discutindo um em cada um de seus ouvidos e esse saudoso alvoroço ou a lista das abundantes perguntas de Ilíria, eram as únicas coisas que seus ouvidos trocariam pela gloriosa quietude.
- Felizmente não temos um espelho para que se arrependa – brincou Rixi.
Cavian riu.
- Só espero que tenha me desenhado a contento – rebateu Cavian arrancando um raro esboço de sorriso da fada.
Depois de tomar a mistura, Cavian se posicionou de bruços e encaixou sua cabeça no buraco feito por Narthus como ela orientara, e antes que talvez pudesse pensar em algo mais para dizer, as sombras de sua máscara já haviam tomado sua consciência.
As faixas de couro travavam o corpo de Cavian à mesa e se amarravam nas furações vazadas. Quatro globos de tomásio foram afixados alinhadamente acima da mesa com os cordões de metais que haviam trazido. Pegou em suas mãos uma das lâminas finas e enegrecidas, assim como eram todas as obsidianas. Ainda que tivesse provavelmente sido subtraída de algum dos viajantes desavisados que haviam passado perto dali, certamente estava acima das expectativas necessárias para fatiar uma pele tão densa.
Prometi que o apagaria todos os seus feitos, pelo que me lembro pareceu se orgulhar desse, pensou, antes que o primeiro corte afundasse sobre a pele do jovem príncipe dragão.
Cavian
Acordou novamente, mas não estava na taverna. Era o mesmo templo que frequentara durante os sonhos daquela prisão. Estava tudo lá, tão real quanto na primeira vez. Yuki à frente do templo, com os joelhos apoiados no genuflexório, a estátua de Iscalon ao fundo sobre o piso elevado, e finalmente o homem encapuzado quando olhava para trás. A mesma cena que pensava ter sido apagada de sua mente.
Deslocou-se até o homem e antes que pudesse se dirigir a ele, este interviu.
- Ora, ora, se não é a donzela adormecida – ironizou o homem.
- O que faz de volta aqui? - questionou ele.
- Eu de volta? Eu sou o único que sempre estive aqui! Ou você acha que seus pesadelos cessaram graças ao seu grandioso talento em fracassar em tudo que faz?
- Parei de tê-los a algum tempo – disse ele tentando se recordar da última vez que os tivera.
O homem riu, rodeando Cavian em passos lentos.
- Eles bagunçaram nossa mente de tal forma que seria impossível repará-la, ainda mais no tempo que se passou. Sou eu que vivo nesse mundo aqui enquanto você curte a bela realidade lá fora.
- Não acredito em você – retrucou ele.
- Acredite no que quiser – respondeu o homem prontamente. - Para ser sincero até tentei por diversas vezes achar alguma forma de assumir o controle, inclusive capturando os outros de nós que vez ou outra apareciam por aqui, mas depois de tanto tentar parece que viver aqui no seu lugar é o único modo de nos manter vivos por enquanto. A sua mente fraca e ansiosa faria com que colapsassemos em poucos dias.
- Se realmente vive dentro de mim, deveria saber que eu não sou mais aquela pessoa que o encontrou tempos atrás.
- Blá, blá, blá... Pare com essa ladainha, por favor – disse o homem parando de costas para ele enquanto olhava a parte externa do templo. - Apenas foque em nos tirar dessa enrascada que nos colocou. Para que tenha vindo tão fundo é provável que estejamos à beira da morte mais uma vez. Reflito às vezes, sabia?... É como se botassem um cozinheiro para comandar um exército. Reze para que possamos ainda andar caso consigamos voltar.
- Com meus olhos de volta finalmente poderei derrotar meu pai.
O homem gargalhou, virando-se para ele novamente.
- Você? – ironizou o homem apontando o dedo indicador em sua direção por um momento. - Nem em mil anos isso seria possível... Temos muito mais poder aqui do que imagina, mas seria impossível alcançá-lo comigo preso nesse lugar. Até você sabe que essa máscara não fará qualquer diferença.
- Não farei isso sozinho – retrucou ele, ainda que não devesse satisfação a qualquer devaneio.
- Ahhhhh… Agora entendi, vai fazer com que os outros morram no seu lugar. Magnífico! – ironizou o homem batendo palmas efusivamente. - Peço até desculpas por não ter entendido seu plano macabro logo de começo. Confesso que... Bem, parece ser um pouco demais até para mim, sabe, mas não posso dizer que não tenha potencial.
- Cale a boca – vociferou ele. - Se realmente usasse todo esse tempo para pensar, veria que seria impossível que eu o vencesse sozinho, talvez nem mesmo Yuki seja capaz.
O homem gargalhou.
- Por favor, não perca seu tempo se justificando pra mim… Só saiba que farei questão de te atormentar caso fracasse novamente – disse o homem se aproximando. - Ainda vou dar um jeito de trancá-lo em um lugar seguro por aqui e nos tirar dessa vida medíocre que nos colocou - ameaçou.
- Não me interessa o que pensa em fazer, agora preciso só dar um jeito de sair daqui.
- Já que ela te colocou nesse lugar, quem sabe não possa ajudá-lo? Só saiba que quanto mais tempo aqui dentro, menores são as chances de voltar – alertou o homem enquanto Lis se aproximava.
- Vamos? - questionou Lis repentinamente, enquanto entrava pela porta principal. – Estou ansiosa para o nosso passeio – continuou com um sorriso desconcertante.
Como em um estalo, vê-la descolou o pequeno elo que ainda lhe restava com a realidade.
Mika
Mika terminou de tirar a última anilha, costurando o local com a linha de linho que conseguiram. A pele dura dificultava o serviço, mas o cuidado com os cortes milimetricamente medidos era necessário para que voltasse à consciência. Muito sangue fora perdido e qualquer transfusão seria impossível sem uma fonte geneticamente compatível. Já haviam se passado mais de dezoito horas. O efeito do chá de ervas não deveria durar muito mais que aquilo naquele corpo. Pelas suas contas, Cavian já deveria ter despertado, ainda que timidamente.
Narthus rezava em um dos cantos do quarto, enquanto Rixi olhava para o príncipe, apreensiva, encarando a elfa em alguns momentos com a desconfiança de quem lera a verdade em seu olhar. A mão à boca, os pés inquietos. A pressão sobre seus ombros provavelmente era grande o suficiente para que tivesse aquela reação, afinal, foi ela que disse que conseguiria reverter o que Aldini criara, ainda que também alertasse sobre os riscos.
Ela já o havia virado. Os cabelos azulados e marcados com os anos sem que vissem o sol estavam longos o suficiente para cobrir seu rosto que ostentava uma marca de queimadura em seu olho esquerdo.
Os trovões naquela noite eram tão altos que por vezes a impressão era que teriam caído a metros dali. Ela media o pulso de Cavian a cada minuto, mas alguns deles haviam se passado até que a respiração começasse a se espaçar. Era como se corpo dele aos poucos fosse desistindo de lutar.
Ela imediatamente se levantou. A seringa havia sido posicionada na pequena mesa ao lado da cabeceira de onde Cavian estava deitado. Pegou-a rapidamente e ergueu seu braço com o polegar na base do êmbolo. Rixi voou em sua direção ainda que não houvesse tempo suficiente para impedi-la. A agulha de Trilium perfurou o coração de Cavian e no instante seguinte um arco azul se formou no ar e correu serpenteante pelo chão de madeira em trilhas que lembravam as raízes das árvores de tronco largo. Rixi foi jogada para trás com o sopro de ar que se deslocara e a corrente que fluiu pelo corpo metálico da seringa correu por suas mãos, jogando-a contra a parede com tamanha força que seu corpo parecia a ponta de um martelo contra as tábuas de madeira escoradas contra o chão de terra batida.
O clarão também os cegou por um instante. Narthus olhou para Rixi, que balançava a cabeça ainda no ar tentando se reorientar e correu junto a ela pelo chão embrasado. As chamas começaram lentamente a crescer. O ambiente de mofo de certa forma evitara que todo o local se cobrisse de chamas. Narthus a puxou pelo antebraço e a colocou sobre os ombros, enquanto ela parecia ainda um pouco confusa. As queimaduras em suas palmas ardiam em vermelho como o próprio solo sob seus pés.
Rixi apoiou as mãos sobre o chão enquanto entoava algumas palavras. O chão em brasa lentamente se abrandou como se acalmasse com a voz da fada que era acompanhada pelo cântico das faíscas azuladas que exalavam do corpo de Cavian, tão brilhantes quanto as marcas em seu braço.
Narthus a ajeitou sobre o colchão que ainda tinha as marcas das cinzas em sua base. Os olhos do príncipe acima das nuvens se abriram quando as centelhas finalmente cessaram. Seu suspiro de alívio se deu por tantas razões que ela sequer conseguia numerar naquele momento de pensamentos atordoados. Muitos dariam descrédito aos números, mas era muito mais provável que ela sequer fosse capaz de medir as variáveis do extraordinário, que naquele dia, felizmente, estavam ao lado de todos eles.
Cavian
A visão ainda era borrada e a claridade ali era como estar com os olhos voltados ao sol. As cinzas que caiam do teto sobre sua face eram como a neve do anoitecer. Escutava ainda o ruído sutil das asas que batiam aceleradas, da mesma forma quando despertara naquela floresta meses atrás.
- Bem-vindo de volta, vossa alteza – disse a fada com um sorriso no rosto enquanto seus ouvidos confirmavam o que seus olhos ainda não podiam.
Ele se sentou enquanto tentava reorganizar suas ideias.
- Desculpe, ainda estou confuso, mas ainda reconheço sua voz, jovem encrenqueira – respondeu ele à Rixi.
- Parece que dessa vez quem fez toda a bagunça foi você – disse Rixi enquanto ele espremia os olhos para ver Narthus olhando para ele ao fundo.
- Pelos deuses, o que fiz aqui? – espantou-se vendo finalmente toda cena. Mika estava se erguendo apoiada no braço de Narthus o encarando contente e aliviada por seus feitos, enquanto Narthus suspirava como se tivesse acabado de vencer uma longa batalha.
- É bom já separar a quantia para reparar isso. Dolores entrará a qualquer momento por aquela porta furiosa – constatou o gigante ao grupo.
- No meio de toda essa tempestade vai ser fácil encontrar uma desculpa – respondeu Rixi. – Ainda que eu ache que o ouro lhe importe mais do que um chão esfacelado – constatou a fada dirigindo seus olhos retorcidos à Narthus, que a ignorou por um momento caminhando em direção a ele.
- De fato, mas agora todos vocês precisam descansar – disse Narthus enquanto encostava o punho em seu ombro em sinal de boas-vindas antes que se dirigisse ao mapa desenhado na parede. - Nos restam apenas dois dias até que Shasak volte e ainda nem sabemos o que fazer. Amanhã bem cedo sairemos até a taverna chamada O brinde de Tyr. É onde aparentemente se encontram os antigos capas cinzentas – completou, tentando decifrar os pedaços que restaram do mapa.
- Agora perderão tempo procurando por alguém que não existe mais – enfatizou ele sorridente.
- Sim, cabelos azuis são bastante comuns, filhote de dragão – retrucou a fada sarcasticamente. – Agradeça por parecer mais com sua mãe.
Cavian riu contidamente, tentando conter a saudade que sentia das conversas longas, às vezes sem qualquer propósito.
- Não queimei toda essa madeira à toa, Rixi. Agora temos tinta suficiente para meu disfarce – brincou ele enquanto a fada revirava os olhos.
Dolores não apareceu naquela noite como tinham achado. Eles haviam pedido para que ela não os incomodasse e a comida seria suficiente para que fizessem uma farta ceia. Com as moedas que a gerente da taverna recebera, seria bem provável que se mantivesse quieta até mesmo se a taverna tivesse vindo ao chão.
A INVASÃO DO CASTELO DAS MIL FACES
Cavian
Cavian esperava sentado e escorado na parede próximo à porta de entrada. A taverna era uma das maiores que já conhecera e talvez uma das mais luxuosas que vira durante o trajeto. Aliás, não parara de olhar para tudo que pudera. As cores e os detalhes pareciam mais vivos do que nunca e observá-las se tornara um vício pessoal desde que despertara. Um que deveria conter caso quisesse se manter fora de olhares curiosos que os buscassem. A lareira robusta ao centro era engenhosa, mas o que mais chamava a atenção eram os itens que estampavam a parede principal logo acima das estantes do balcão de bebidas, expostos em caixas de madeira e tampos de vidro.
Ele contara sete deles, uma adaga pouco menor que um palmo de cabo trançado amarelo e lâmina com manchas que lembravam o fluxo sinuoso das águas entre as pedras, uma moeda de cobre velha de cantos disformes, com um animal de quatro patas toscamente entalhado na face exposta, na qual a calda grossa e a cabeça chata eram as únicas coisas possíveis de se distinguir, uma besta de madeira velha que ostentava as partes faltantes entregues às batalhas que travara, uma faixa de tecido fino esverdeado sem costuras, um pedaço de tortuoso madeira escovada que mais parecia uma bengala para velhos, uma algema aberta grande o suficiente para a pata de um Bívio, com escritas de letras pequenas marcadas em todo seu entorno e finalmente uma fina corrente de pedras coloridas, que só conseguia ser vista pelo brilho de suas pedras.
O andar superior ostentava uma janela redonda, decorado externamente por uma estrutura de metal polido no formato da lua crescente. Era a coisa mais limpa e lustrosa que vira de tudo que passara diante de seus olhos naquela cidade. Mika não estava muito longe dali. Serviria de retaguarda caso algo acontecesse, enquanto Narthus e Rixi confirmavam as informações repassadas a eles por Rizar indo de encontro ao castelo das mil faces.
Já passavam mais de três horas de espera, enquanto observava os movimentos de seu alvo. Sirius era um homem reservado e jovem com cabelos ondulados tão negros quanto os que o carvão dera a ele. Talvez tivesse sua idade ou um pouco mais, estranhamente incompatível com o cargo que ocupava. Era um dos braços direitos de Shasak, uma façanha incomum, ainda que sua fama lhe precedesse. Os capas cinzentas, grupo de mercenários a qual pertencia, ganharam notoriedade durante os últimos anos antes que se paralisassem suas atividades. Uns diziam que já haviam enchido as burras de dinheiro, outros, que uma equipe tão grande de mercenários havia durado até demais. O certo é que o status que ganharam durante esse período havia lhes rendido fama suficiente para despertar os olhos dos reinos aliados.
A visão periférica que aquela masmorra o havia pago pela estadia lhe dava uma vantagem estratégica. Dentro de uma certa distância, seus olhos poderiam estar onde quisesse e dessa forma poderia acompanhar Sirius sem que fosse percebido, porém, foi prestando atenção demais ao interior da taverna que mal percebeu quando uma carroça de cavalos lustrados estacionara diante da taverna. O veículo era imponente e grande o suficiente para que percebesse que se tratava de alguém do alto escalão do governo vigente. O frio subiu sua espinha repentinamente, mas não havia mais tempo de se esconder. Abaixou a cabeça esperando que quem quer que saísse de lá não o tivesse visto por mais de uma vez.
Um homem calvo desceu primeiro, era Rocan. Pálido como a face da lua e com cicatrizes que mais pareciam riscos entalhados a fogo pelo corpo. Não parecia ter qualquer problema de ostentá-los, visto que usava somente faixas enroladas da cintura até uma altura pouco abaixo dos joelhos, com pontas soltas que desfilavam ao vento. Logo após, Hiden, uma mulher mais baixa e magra de vestido negro colado ao corpo, de mesma cor de seu curto cabelo que cobria a testa de forma alinhada e que contornava seu afunilado rosto. Os olhos opacos e esbranquiçados eram de alguma forma assustadores, assim como parte de sua face de pele sedosa que parecia ter sido coberta pela morte. Em suas costas havia uma foice de lâmina longa, maior que a própria portadora.
Ambos adentraram a porta enquanto alguns guardas cercavam a carruagem. Eram as mesmas armaduras que Cavian teria visto em Javelin caso tivesse seus olhos consigo na época.
- Que surpresa vê-los por aqui! – exclamou Sirius sentado à mesa, com uma das pernas apoiada sobre a cadeira de madeira ao lado, enquanto uma moeda de ouro dançava entre os dedos de sua mão direita, tatuada com um grande número sete, com curvas alinhadas e bem tingidas. Ao redor havia algumas mesas rodeadas de pessoas, das quais não era possível distinguir os visitantes.
- Os tempos estão conturbados, meu caro, e uma nova remessa de porcos estão pra chegar – disse Rocan.
- Não é muito inteligente tratar subordinados com tanto desdém – retrucou Sirius sem que o sorriso gentil lhe fugisse ao rosto.
Rocan gargalhou, um som alto e estridente que ecoou pelas paredes da taverna.
- Subordinados? Onde nesse seu cérebro imbecil achou que houvesse alguma hierarquia entre eu e eles? São só animais à espera de um glorioso abate – enfatizou Rocan com a língua à mostra, deslizando o polegar sobre o pescoço pálido, enquanto apoiava uma das pernas sobre a cadeira mais próxima de si. – Sempre que acabo pensando sobre o assunto, vejo que o dom de transformá-los foi me dado pelos enterrados e velhos deuses para que ao menos tivessem alguma serventia, não acha? Não há nada nesse mundo em que eu seja tão bom – vangloriou-se exibindo seus dentes longos e afunilados.
- Se os acha que são tão inúteis deveria achar uma forma melhor de guardar suas carroças, não? – ironizou Sirius, apontando para fora da taverna.
- E você de guardar sua língua dentro da boca – retrucou Rocan, encarando-o.
Sirius riu desviando o olhar pra baixo.
- Me desculpe, a ironia é um velho hábito – disse Sirius voltando a encará-lo enquanto se ajeitava na cadeira de forma apropriada. - Sentem-se, pedirei que lhes sirvam uma bebida – finalizou fazendo um sinal com suas mãos.
- Vou ser direta, Sirius, viemos buscar a carga a mando de Pinkini, nada mais – revelou Hiden, recusando o convite.
- Sim, já está separada no saguão de entrada do castelo. Os guardas já estão orientados – respondeu Sirius enquanto o garçom franzino de mãos trêmulas chegava aos dois. Serviu os copos com um vinho azulado das terras sombreadas do oeste e os deixou à mesa, quando ao retornar a jarra à bandeja, bateu sua base no primeiro copo. O líquido caiu na direção de Hiden ao mesmo tempo em que ela sacou a foice de suas costas. O rapaz apenas fechou os olhos e teria sua cabeça ao chão se não fosse pelo bastão daquele que parecia uma tartaruga humanoide. Tratava-se de Pagmo, o conselheiro, que também integrava o grupo de mercenários.
- Como ousa parar meu ataque, seu verme? – esbravejou Hiden enquanto as palavras cortantes fizeram com que todos se levantassem agitados.
O instinto do rapaz fora mais rápido que seus próprios pensamentos, naquele momento seus passos apressados e amedrontados tentavam alcançar a porta de acesso à cozinha quando Hiden arrancou uma adaga da cintura com a outra mão e a jogou contra o sortudo rapaz. Pela segunda vez os deuses pareceram abençoá-lo quando uma outra adaga a interceptou, fazendo com que a lâmina de Hiden deslizasse e rodopiasse sobre o chão até que adormecesse. Um homem pequeno ao fundo, com uma cicatriz que ia da bochecha aos lábios e olhos desalinhados. Ainda assim, não era mais o que chamava atenção. Escorado na parede, tinha pequenas adagas de obsidiana, com um exótico cabo macio de capim dourado com fios alinhados como pincéis, que flutuavam ao seu redor como zeladoras fiéis. Bork, o encantador de navalhas, mais um dos integrantes do antigo grupo.
- Ei, ei, senhores, o que é isso? Estamos do mesmo lado aqui - exclamou Sirius estendendo as palmas das mãos de modo conciliador. - Não faz nenhum sentido discutirmos por coisas tão banais, não acham?
- Mande aquele pirralho voltar pra cá e receber seu castigo que podemos esquecer esqueceremos isso – ordenou Hiden.
- E daí não teríamos quem nos servisse... – ponderou Sirius.
- Traga-o aqui ou arranco a cabeça dessa tartaruga desforme – insistiu Hiden mantendo a foice tensionada contra o bastão. Era impressionante que o fizesse com somente uma das mãos. Pagmo era quase o dobro de seu tamanho e parecia se esforçar de alguma forma para segurá-la. Apesar disso, quando a cadeira arrastou seus pés sobre o chão de madeira e a camisa farfalhou no ar, Sirius apareceu ao lado da senhorita de palavras ameaçadoras, e com o movimento rápido de mãos pressionou a lâmina sobre o pescoço pálido de Hiden.
- Senhorita Hiden... Tsc, tsc, tsc... – disse Sirius meneando a cabeça. - Eu costumo ser gentil com meus convidados, mas se insultar minha família novamente temo que não poderemos contemplar o belo espetáculo do amanhecer – ameaçou lentamente. - Então peço encarecidamente que se retire de nossa humilde casa.
- Vamos, Hiden, ele tem razão - interviu Rocan, enquanto os olhos ferozes da dama de vestes enegrecidas encaravam Sirius com avidez. - Não foram essas as ordens que recebemos, e além disso estamos atrasados.
A foice finalmente foi recolhida ao mesmo tempo em que lâmina se distanciava do pescoço da visitante.
- Teve sua chance, filho das sombras... A dor da morte seria menor pra eles do que o futuro que acabou de criar por suas mãos – respondeu Hiden calmamente com o retorno de sua inexpressiva face, ainda que sua postura de alguma forma parecesse por si só ameaçadora. A desolação que a fazia companhia como a sombra que acompanhava os pequenos pés parecia ter o poder de abafar qualquer esperançoso coração que se aproximasse, e ele poderia senti-la mesmo sem qualquer poder.
- Ficamos à disposição - respondeu Sirius com um sorriso ao rosto, cortejando ambos enquanto se retiravam.
A preocupação de Cavian aumentara significativamente. Não tivera ainda como experimentar a extensão de seus poderes, mas caso algo desse errado já seriam quatro adversários formidáveis para lidar. Os demais pareciam jovens ou de pouca vivência. Era pelo menos o que alertavam os ansiosos batimentos que só se acalmaram quando as portas da carroça se fecharam.
Aguardou até que trote dos cavalos não fossem mais escutados e depois de mais alguns minutos finalmente adentrou ao estabelecimento.
- Hoje o dia está certamente bastante agitado – cisse Sirius logo que ele entrou pela porta enquanto servia uma bebida perto do balcão sem que sequer lhe dirigisse os olhos. – Chegou antes deles e veio depois... Anda devagar demais para um estômago que deveria estar sedento... Esperou que se fossem e não hesitou para entrar em nossa nobre taverna, muitas particularidades para um forasteiro tão jovem... Espero que não seja tolo o suficiente para achar que sairá ileso ao tentar algo por aqui, meu nobre amigo – alertou o líder do grupo, andando em direção à mesa e se sentando novamente na cadeira de madeira rústica.
- Desculpe pela falsa impressão, mas não estou com eles, foi apenas uma infeliz coincidência – respondeu ele se aproximando. Estava surpreso, não era só ele que os observava, afinal. - Gostaria de conversar a sós com você, se me permite. É algo importante – solicitou ele serenamente.
- Certamente um viajante – afirmou Sirius contorcendo os lábios e balançando o dedo indicador em sua direção, enquanto andava ao seu redor até que se posicionasse ao seu lado esquerdo. – Essa cidade tem olhos e ouvidos por todos os lados, meu caro. Acredite, é melhor que sejam os nossos – finalizou olhando em direção à porta, quanto a moeda de outrora dançou novamente em suas mãos. Quando esta chegou ao dedo mindinho do ladino, a mão do Sirius alcançou seu ombro.
- É realmente importante que essa conversa seja particular – continuou ele, sem hesitar.
- Bom, já que tanto insiste, sem problemas... Samine, se certifique que ninguém entre por aquela porta, por gentileza – pediu Sirius à exuberante quarta integrante que ele só conseguiu perceber depois de ter entrado, enquanto o anfitrião se virava e andava até a cadeira que havia se sentado minutos atrás. Samine estava despreocupadamente sentada sobre uma das vigas de madeira acima de suas cabeças, por onde alguns gatos, em maioria de cores mescladas, também se empoleiravam. Tinha panos leves e colados cobrindo o atlético corpo e brincos redondos sobre os cabelos longos e amarrados que brilhavam quanto o olhar que o encarava. Profundos olhos amarelados e desconcertantes, que pareciam desnudá-lo.
- Pronto - disse Sirius estendendo a mão a ele para que se sentasse. – O que trouxe pra mim?
- Preciso de algo que está dentro do castelo desta cidade.
Sirius gargalhou.
- É sério? – disse Sirius olhando para Bork, que levantou as mãos, expressando que também não fazia ideia do que se passava por ali. – Passou todo aquele tempo ali sentado pra dizer isso? Veja bem, meu caro, uma coisa é não conhecer essas terras e mesmo assim ter a coragem de vir até aqui, o que por si só já seria uma burrice, outra coisa, o que é provavelmente bem mais burro, é vir aqui zombar ainda de seus filhos... Massss... Como sou um homem de bom coração e não guardo ressentimentos, a não ser que estes não possam ser trocados por ouro, deixe essa bolsa comigo, com essas belas mãos e beba um bom drinque como cortesia da casa. Assim todos aqui vão fingir que essas palavras não saíram de sua boca e poderá partir em segurança, o que acha?
- Meu nome é Cavian, o príncipe herdeiro de Aquia.
Sirius revirou os olhos, enquanto batia a inquieta moeda sobre a mesa.
- Nem aquela senhorita que saíra daqui voltara dos mortos, meu amigo. Não entendo muito sobre o mundo mágico, mas acho que seria impossível para você – zombou Sirius silenciosamente como se contasse um segredo.
- Como vai perceber, essa é somente mais uma mentira contada por meu pai – disse ele, levantando a manga de sua camisa branca de tecido simples, que revelava as marcas em seu braço, fazendo com que as sobrancelhas surpresas de Sirius se arqueassem.
- Hmm... Curioso, admito... Então o filho morto do poderoso Bahamut veio até mim? Dentre todas as opções que muito provavelmente te entregariam ao seu pai... Por qual motivo especificamente? – continuou Sirius, pegando a moeda sobre a mesa e guardando-a em um dos bolsos, antes que esfregasse o queixo de modo pensativo.
- Preciso de algumas informações que estão de posse de Shasak – revelou.
- Bom, como posso dizer... – disse Sirius dando um gole na caneca a sua frente. - Primeiramente, meu amigo, como já adiantei a você, não passou por sua cabeça nem por um segundo, que talvez fosse mais interessante que eu lhe entregasse e resgatasse uma bela recompensa caso seja quem diz ser?
- Com certeza, a não ser que eu tivesse algo a oferecer muito mais valioso do que minha cabeça.
- Que seria?
- O acesso aos tesouros de Aquia.
Sirius riu, colocando os cotovelos sobre a mesa, cruzando as impacientes mãos.
- Isso está cada vez melhor... Porque agora poderá duvidar de mim também e eu e você poderemos brincar em um jogo da verdade. Sabia, que por acaso ou não, eu conheço a história do único homem que roubou seu suposto pai?
- Assim como deve saber das imensuráveis riquezas guardadas em nosso reino imagino.
- Justo... E também sei que seria impossível que fosse pego nas condições atuais, fazendo com que novamente tenhamos um impasse, já que um ouro que não pode ser pego não vale mais do que qualquer mão vazia – observou Sirius, rapidamente.
- Talvez, mas se até segundos antes achava que eu estava morto, é provável que saiba menos do que gostaria sobre a verdade e o futuro desse mundo – disse ele enquanto desdobrava a manga sobre seu braço.
- Só para constar e para que fique bem claro, que ainda acho que está louco, mas lhe darei a chance de mudar minha opinião – disse Sirius levantando ambas as mãos e abrindo os braços em um gesto de surpresa, quando em seguida fez um sinal com a mão direita como se pedisse para que o aguardasse. – Bem...Se o que diz é verdade... Tenho algumas perguntas simples que com certeza saberá responder, já que vem de onde diz vir e cresceu onde disse crescer. Caso responda todas corretamente, avaliarei sua proposta, ainda que minha recusa certamente o levaria às mãos de seu pai... E tudo mais que isso possa trazer de problemas, masss... será bem pior caso não responda, já que fará com que perca sua língua para que pare de espalhar mentiras, o que acha? – ameaçou Sirius desembainhando uma pequena adaga lustrada que retirara de sua cintura, colocando-a sobre a mesa, estática e com a ponta virada em sua direção.
Ele assentiu, ainda que duvidasse que alguém pudesse saber qualquer informação relevante sobre Aquia que ele não pudesse responder.
- Interessante – animou-se Sirius esfregando as mãos, como se preparasse para um jogo de cartas. – Certo... Então primeiro gostaria que me dissesse quais eram os nomes dos generais dragões durante a grande guerra.
- Bahamut, Tiamat, Splenen, Gaulian, Nefista, Monlok, Ramiak e Falise – respondeu ele sem hesitar. Os nomes dos generais eram lembrados sempre que se podia durante as aulas, ainda que evitassem entrar em detalhes sobre seus feitos. Era história antiga e reservada aos conselheiros do reino. Para ele então, seria impossível esquecê-los, já que suas grandiosas estátuas habitavam o florido jardim acima das nuvens, que contemplava toda manhã pela janela de seu quarto em Rozan.
- Correto, meu caro! – respondeu Sirius visivelmente animado. – Mas essa, convenhamos que não era tão difícil assim, não é mesmo? Vamos pensar nessa próxima - disse Sirius claramente fingindo pensar por alguns segundos. - Ah, claro... Qual era o nome de seu grande general nesse período?
- Nymo... - respondeu Cavian, agora desconfiado. Será que já teria caído em mais uma das armadilhas de seu pai? Tentava verificar alguma outra presença perto dali, ainda que seu alcance fosse limitado. Ninguém poderia saber tanto de Aquia a esse ponto. Os nomes do alto escalão de Aquia eram extremamente reservados, e talvez só descrito em escritas ainda mais reservadas, de pessoas próximas a seu pai...
- Esplêndido! – exclamou Sirius. - Somente um real cidadão Aquiriano provavelmente saberia responder essa, mas agora... Vamos ver se de fato fazia parte da realeza – disse Sirius aproximando o rosto. - Ou seja, se realmente é filho de quem diz ser... Bom, lá vai, a última pergunta é... – continuou balançando as mãos em instantes de suspense. - Qual o caminho secreto nas montanhas para o acesso ao reino?
Caminho secreto? Que caminho secreto era esse? O único caminho existente eram as escadarias principais, pensou ele em desespero, que pergunta era aquela? Ninguém permitiria a construção de qualquer outro acesso. Tanto era que até hoje somente os gigantes haviam conseguido atacar Aquia escalando externamente as montanhas de Jizu durante dias. Foram os únicos povos que chegaram a Aquia desde então. Os segundos que passaram pareciam horas. Tudo acabaria por uma informação que nunca tivera acesso.
- Pelo visto terá que cumprir sua parte do trato, príncipe dragão – disse Sirius passando o dedo no fio da faca que acabara de pegar sobre a mesa.
- Infelizmente não tenho essa resposta – respondeu ele cabisbaixo. Não era cumprir a promessa que fizera que o incomodava e sim o fato de que se aquele homem não acreditasse nele, não havia nenhuma outra opção de plano que parecesse minimamente viável. Não arriscaria a vida de mais ninguém em uma ideia suicida. Não novamente.
Com o som da faca cravando no carvalho redondo que compunha a mesa, Sirius se levantou.
- Seria incrível se tivesse alguma, não é mesmo? – respondeu Sirius enquanto ele olhava confuso. – Sim, sim... Essa está correta também – completou como se tivesse perdido uma valiosa aposta enquanto todos riam. – Me diga, o que você pretende roubar de Shasak mesmo?
- O mapa para o reino das águas.
- Hmm... – resmungou Sirius, balançando a cabeça positivamente. - Tenho que alertá-lo que é um plano arriscado, meu nobre amigo. Talvez nem Shasak tenha as repostas que procura.
Cavian assentiu.
- As informações que tenho são diferentes das suas e os motivos que me movem também.
Sirius sorriu.
- Olhe para sua volta, Cavian – disse Sirius abrindo os braços. - Esse mundo está condenado! Você tenta salvar algo que já morreu quando deveria estar se divertindo até que ele chegue ao fim. Acredite, não costumo ser cordial com todos, mas viva por aqui e poderá esquecer de seu pai pra sempre, garanto isso a você. Quer uma nova identidade? Pelo que traz consigo, posso providenciá-la pra você, o que acha? – ofereceu Sirius, enquanto ele pensava que talvez fosse tudo o que quisesse tempos atrás.
- O cálice por sua ajuda, é o que posso oferecer – disse ele por fim. - Como você mesmo disse, de nada valerá saber onde os tesouros estão se eu me esconder entre as brumas.
- Provavelmente. Mas espero que seu pai não viva mais do que eu ou qualquer um daqui, e particularmente somos brilhantemente bons em aguardar os momentos certos.
Nem viu quando Samine tinha descido dos pilares acima. Só a percebeu novamente quando esta se encaminhou silenciosamente a Sirius sem que deixasse de encará-lo e sussurrou algo no ouvido do homem que o interrogava, arrancando-lhe um sorriso de canto de boca.
- Já que recusou a minha primeira oferta, tenho uma segunda. Que tal eu pegar o que guarda consigo e torturá-lo até saber o que preciso? Se eu o matasse dentro dessas paredes ninguém sequer saberia. Até mesmo aquela menina que o observa de longe também estaria condenada - disse Sirius se referindo a Mika.
- Você acabou de enfrentar meu pai por sua família, não acho que se arriscaria por tão pouco – retrucou ele confiante. Estava óbvio que Sirius era um negociador, e por isso tentaria conseguir o que quer pelo menor preço que conseguisse. As discussões que sempre tentara evitar com sua irmã nunca haviam sido tão saudosas quanto naquele momento.
Sirius riu desviando seus olhos e dedilhando seus dedos sobre a mesa antes que parasse.
- Tem razão, é um bom observador... Pois bem, farei o que me pediu, mas com algumas condições. A primeira delas é de que meu nome ou de ninguém aqui será mencionado em uma eventual captura e para isso nosso amigo Pagmo preparou um pequeno dispositivo que carregará em seu pulso e que será controlado por mim - revelou Sirius enquanto ele pegava no ar a pulseira jogada pelo homem tartaruga. – Não se preocupe, seu alcance é curto, assim que estiver longe de mim poderá tirá-la de seu braço, ou seja, depois de eu me certificar de que fugiram daquele lugar e que suas palavras não valham mais do que as minhas. Se alguém ficar pra trás, eu mesmo irei matá-los como meu álibi e se tentar interferir terá o mesmo destino – continuou Sirius apontando para o relógio. - O segundo ponto é que deverá obedecer a todas as minhas ordens durante todo o trajeto... Nada de improvisos, heroísmos ou qualquer coisa que tire de sua cabeça, entendido?
Cavian assentiu.
- Por fim, depois que achar o que quer, sairá de lá por conta própria, nosso trato se acaba assim que tiver o que quer em mãos. Te darei alguns bons minutos até que eu finja correr atrás de você, mas terá que se virar sozinho com o que encontrar por lá.
- Tem minha palavra – prometeu ele, lembrando-se das palavras de Rizar.
- Ótimo... Já que finalizamos as formalidades, o que tem pra mim? – questionou Sirius.
Cavian arrancou um pedaço de couro desenhado em carvão que trouxera em seu bolso. Lá estavam as indicações de monumentos importantes de Aquia, e um caminho entre as montanhas para uma caverna. A montanha de Jizu era repleta de fendas e buracos que terminavam no coração da própria montanha. Vários labirintos sem fim entre o frio intenso e a completa escuridão.
- Hmm... – murmurou Sirius, observando o mapa. – O caminho é bem descrito, príncipe, e não acho que mentiria em sua situação, afinal, cumprem sempre suas promessas, não é mesmo? Mas o que de fato protege os tesouros dos dragões depois de seu exército? – questionou Sirius.
- A alma do deus dos ares e um encantamento. As portas do tesouro do céu levarão a glória para os merecedores e a ruína da loucura para os traiçoeiros, assim basicamente só é possível acessar o tesouro dos dragões com os pedaços dos tesouros dos próprios dragões.
- Então terei que roubar seu pai para que depois possa roubá-lo novamente? – brincou Sirius, meneando as mãos.
- Ou ter um dos pedaços de seu tesouro – completou ele, tirando da sacola o cálice de Monlok e o colocando sobre a mesa.
- Pelos deuses! – espantou-se Sirius fixando seus olhos sobre o cálice e o pegando em suas mãos. – É magnífico - completou admirando o objeto.
- O rapaz carrega a verdade, meu irmão, lembra-se da missão de Opanum anos atrás? – questionou Pagmo.
- Como se fosse ontem – respondeu Sirius. – Já vi muita coisa nessa vida, príncipe dragão, mas aqueles gritos de dor entre as risadas de seus próprios irmãos deixariam qualquer um sem dormir por uns dias.
- Essa é a razão dos anéis em suas mãos. Era o que garantiria que nenhum outro pudesse tomá-los – disse Cavian retomando seu argumento.
- Entendo, não deve ter se precavido por pegar esse cálice de lá, não é mesmo? Só um louco entregaria a chave a um desconhecido como eu sem qualquer garantia. Com isso em mãos e com o mapa que me deu, eu posso simplesmente esperar, e como disse antes, sou muito bom em esperar.
- Se ajudar eu e meus amigos a encontrarmos aquilo que viemos buscar e eu conseguir derrubar meu pai de onde está, poderá pegá-los antes que seus joelhos fiquem ranhentos. Achei que seria garantia suficiente.
- Meu pescoço pelo inalcançável tesouro dos dragões? Me parece uma aposta justa – concordou sorrindo. – Lembre-se de suas palavras se chegar até lá, príncipe, e caso não chegue, prometo que farei um brinde em seu nome. Amanhã à noite às sete horas, na torre do relógio acontecerá uma cerimônia para a chegada da lua vermelha. Coloque a pulseira que te forneci e te encontrarei na multidão. Não será uma tarefa fácil de qualquer forma. Aquele castelo é o brinquedinho de Shasak. É um labirinto de ratoeiras sem fim. Esse mapa que me entregou é um caminho reto perto do que encontrarão por lá.
- Facilidade é certamente algo que não esperaríamos encontrar. De qualquer forma agradeço por ter aceitado, garanto a você que farei de tudo para que novas vidas não sejam levadas pelas mãos de meu pai.
Sirius gargalhou.
- Meu caro, não me entenda mal, não é nosso interesse. O rapaz que viu sair vivo daqui seria bem menos útil morto, entende? Mas foque em seu objetivo. Caso você chegue apenas perto de suas ambições já terá valido a pena pelo espetáculo que irá nos proporcionar.
Cavian estava extasiado antes de deixar tudo aquilo para trás. Poucos minutos atrás tinha perdido tudo e agora tinha seu plano principal e único em andamento. A pulseira era certamente algo preocupante, mas de certa forma era esperado que exigissem algumas garantias. Eles também não o conheciam e poderiam pensar inclusive que se tratava de um teste. Pelo menos é o que teria pensado no lugar deles. Ainda assim, se encontrarem em meio a uma multidão parecia ser pouco inteligente caso tivessem a intenção de capturá-lo. Olhos e ouvidos por toda parte, primeiro Rizar, depois Sirius o alertara. Começava a ficar cada vez mais paranoico. Ninguém tinha como saber deles ali. Mesmo que de alguma forma os encontrassem, por qual razão esperariam? Talvez fossem só boatos que encontraram em sua mente uma moradia apropriada. Por precaução, deu o sinal com a cabeça para que Mika se mantivesse distante enquanto voltassem, assim esperavam garantir de que não fossem seguidos.
Cavian
A festa da lua vermelha parecia mais um ritual do que uma festa em si. Em qualquer outra época o astro nunca estaria tão próximo de ser tocado e as lendas diziam que durante sua aparição os deuses costumavam se misturar entre os mortais, espalhando suas bênçãos aos devotos e a ruína aos descrentes. Talvez por isso a quantidade de velas em suas diferentes formas e cores chamassem a atenção. Por amor ou por medo, venerá-los naquela noite era garantir que a próxima estação fosse próspera. Também era de alguma forma um meio de dizer que acreditavam em tudo que o tratado havia estabelecido e que lutariam para que o sacrifício deles não tivesse sido em vão. Mesmo naquela terra tão castigada, onde trapaceiros e assassinos criavam raízes, a fé parecia encontrar seus caminhos enquanto a chama da esperança por dias melhores se mantivesse acesa.
Cavian caminhava à frente dos demais, se esgueirando pela fervorosa multidão. Esta certamente despistara qualquer um que quisessem percebê-los como um grupo, mas por outro lado faria com que mais difícil perceberem que estavam sendo seguidos.
- Como esperava, foi difícil encontrá-los – disse Sirius repentinamente ao seu lado, com uma máscara de pano enrolado e acinzentado que deixava somente seus olhos expostos. – Venham comigo.
- O que estamos fazendo? - questionou ele enquanto seguia Sirius, ainda que o barulho das conversas abafasse a maior parte de sua voz.
- Despistando seus seguidores. Havia alguém seguindo vocês. Samine avisou quando um deles desapareceu ao longe em um dos telhados, mas infelizmente naquelas condições seria impossível capturá-lo. Depois de lá, ela os seguiu até a taverna que estão hospedados, mas não houve qualquer sinal de qualquer um deles.
- Uma coincidência provavelmente – observou ele, pensando em como não pode perceber a presença daquela mulher. Certamente havia caminhos ali naquele lugar que desconhecera.
- Elas costumam ser raras por aqui. De qualquer forma, mantenha a promessa que fizera. Se encontrarem você, eu não pensarei duas vezes em deixá-los sozinhos. Não sou seu guarda, sou apenas um guia.
- Não se preocupe - disse ele quando finalmente chegaram a um beco vazio, onde somente um homem sentado ao chão os aguardava. Pelo tamanho parecia o menor deles, o homem das lâminas dançantes.
- Senhoras e senhores, sejam bem-vindos à excursão ao castelo das mil faces. Podem não perceber agora, mas ao fundo há uma porta secreta.
- Haveria alguma razão para que um dos acessos ao castelo não fosse protegida? – questionou Mika rapidamente.
- Bela pergunta, senhorita. Não se trata de um acesso, e sim de vários deles espalhados pela cidade. É como poder se teletransportar para onde quiser, desde que tenha seu molho de chaves. Aliás, ouso dizer que seria impossível para um exército se organizar entre corredores tão estreitos.
- Então imagino que saiba o caminho seguro – continuou Mika.
- Felizmente não há nenhum, mas digamos que sou um bom observador – disse Sirius revelando uma adaga em suas mãos como em um número de mágica. O cabo parecia ser composto de um pano embebido em algum composto espesso que refletia ainda que de forma tímida a luz que o atingia. Segurando-a pela lâmina, tirou um isqueiro de madeira lisa e lustrosa de seu bolso e acendeu o objeto que se transformara em uma pequena tocha, atirando-a logo em seguida pelo corredor escuro que se apresentava à frente deles. Os zunidos das setas cortando o ar pareciam segui-la. Até que a lâmina finalmente cravou em seu destino, iluminando timidamente o corredor ao fundo. - Vejam o som do rearme – observou Sirius com a mão em concha próxima a um dos ouvidos enquanto os cliques eram abafados pelas densas paredes. - Temos em torno de nove segundos para atravessar o corredor até o próximo ponto seguro. Sigam sempre minhas instruções. O improviso é o caminho da morte nesse lugar. Não façam nada sem ter certeza e gravem tudo o que fizeram até aqui. Será o caminho de volta mais rápido – finalizou ele se desvencilhando do pano que cobria seu rosto e o guardando em uma bolsa de couro em sua cintura.
Ele assentiu, assim como Mika e Narthus. Até mesmo Rixi havia concordado, ainda que ninguém pudesse vê-la dentro daquele bolso.
- Obrigado, Bork, confira os arredores, por favor, conforme combinamos. Estarão de volta em algumas horas - agradeceu Sirius ao homem de baixa estatura.
Boa sorte, disse Bork com um sinal de mãos que ninguém além de Sirius pareceu ter entendido. Antes que o mesmo Bork atirasse uma de suas adagas pelo corredor, a qual Sirius seguiu como se fosse sua própria sombra.
A mesma adaga voltou pelo corredor como um bumerangue.
Bork estendeu a mão novamente enquanto Mika assentiu, correndo atrás da adaga exatamente como Sirius havia feito até o fim do corredor.
- Siga, vou cobrir a retaguarda – disse Narthus.
Cavian assentiu antes que partisse em direção à próxima adaga atirada.
Cavian
As armadilhas se repetiram tantas vezes que Cavian já havia se esquecido de algumas delas durante o caminho. A única certeza que havia em sua mente naquele momento era que seria impossível entrar naquele castelo sozinho. Sirius era pra eles como uma tocha em uma sala escura. Os corredores vazios se cruzavam em caminhos impossíveis de serem seguidos sem um mapa em mãos. Quando as estreitas paredes finalmente se alargaram, Sirius levantou o punho fechado acima do ombro para que todos parassem ali. Era possível não notar os rostos que pareciam estar saindo da parede de rochas. Seus olhos ainda tentavam desvendá-los. Pareciam esculpidos nos tons monocromáticos daquelas paredes, mas eram tão reais que qualquer equipe de bons artesãos demoraria séculos para cobrissem todas elas.
Mika levou a mão a um dos rostos, tocando delicamente a superfície rochosa. A face da mulher jovem de cabelos levemente ondulados, com olhos fechados e o semblante sério, por algum momento a fez lembrar de Ilíria. Já fazia tantos anos... Talvez fosse como sua irmã estivesse agora.
- Não se enganem, são reais... – alertou Sirius atraindo a atenção de todos. – Desde que criou esse lugar, Shasak faz questão de arrancar os rostos de suas vítimas. Como veem, ainda restam muitos espaços para os nossos - sorriu sarcasticamente.
- Como aceitam trabalhar pra esse tipo de gente? – questionou ele, ainda nauseado com a descoberta. Já vira muitas mortes sob seus olhos, mas ali era como se divertissem com ela, em um jogo sádico e aterrorizante.
Sirius riu.
- Ah, não me venha com moralismos, eu não tenho a esperança que cultivam em suas mentes e nem nasci pra viver como vocês. Viveu bons anos no luxo, caro príncipe, sinto muito lhe informar que não é a realidade de nenhum de nós por aqui.
- Se todos parassem de aceitar o que é imposto a vocês, as coisas talvez não estivessem como estão.
- Ah, sim, esqueci que você irá nos salvar de seu glorioso pai. Até que aconteça, estarei sentado naquela taverna tomando uma boa cerveja. Agora pare de discursar e se concentre no que viemos fazer. Esses corredores estão repletos de soldados de elite de Shasak, treinados exatamente para batalhas nessas condições. Se ficarem desatentos vão acabar com uma lança cravada em seus estômagos.
- Alguma ideia de onde podemos encontrar as informações que queremos? - questionou Narthus.
- Pela importância, acredito que em seu escritório. Fica a alguns bons metros daqui - respondeu Sirius, enquanto pelos corredores curvos e agora iluminados, ouviu passos ao longe e colocou o dedo indicador em frente a boca em sinal de silêncio, pedindo com a outra mão para que se dirigissem na outra direção.
- É apenas um deles, Sirius, inclusive desacelerou o passo nesse instante – sussurrou ele enquanto Sirius prestava atenção no som dos passos que se aproximavam.
Quando estes cessaram, Sirius correu na direção do homem sacando sua adaga do cinto de couro amarrado em sua cintura. Pulou para cima do guarda de forma rápida e com uma das mãos presas na base de seu elmo, girou sobre ele, fazendo com que a cabeça do guarda se inclinasse para trás até que a base quase tocasse as costas.
Estava prestes a cravar pequena lâmina na fresta que se formara entre o elmo e o peitoral da pesada armadura, quando Cavian, com um sinal de mãos, fez com que a adaga de Sirius voasse em direção à parede. Cavian deu um soco contra a armadura que a afundou, fazendo com que o homem desmaiasse sobre seu corpo, enquanto Sirius dava uma cambalhota pra trás aterrissando sobre o chão.
Assim que Cavian depositou o corpo do homem na parede, Sirius veio correndo em sua direção em passos pesados.
- Ei, seu principezinho de merda, o que acha que está fazendo? – esbravejou Sirius, colocando o antebraço contra seu pescoço e o pressionando contra a parede.
- Você ia matá-lo. Não viemos aqui pra isso – retrucou ele sem reagir encarando os olhos raivosos. Narthus veio na direção deles e parou no momento em que Sirius recuou.
- O que vai fazer quando ele acordar e dizer para os quatro cantos que estamos aqui? Ein? Vai voltar aqui e pedir por favor?... – resmungou Sirius.
- Ele não irá acordar até que a gente já tenha saído daqui – afirmou ele, ainda que não houvesse plena certeza.
- Só há uma forma de garantir isso e eu não vou arriscar minha pele nem um milímetro a mais para que você brinque de herói por aqui, eu mesmo o alertei antes de virmos pra cá – continuou Sirius apontando e balançando o dedo indicador em sua direção.
- Nem sabemos quem ele é ou se merece esse destino.
Sirius riu.
- Você é mesmo maluco, não é?! Todos que estão aqui merecem, dragão, consegue entender isso? – vociferou Sirius novamente - Se não seria impossível que estivessem nesse lugar. Agora se você se meter outra vez em meus assuntos, desaparecerei por esses corredores e terá que se virar sozinho por aqui, entendeu?
Cavian assentiu.
- Ótimo – disse Sirius. – Apenas siga o que combinamos. Nesse lugar nossa última preocupação são esses soldados. Temos pouco tempo até que perceberam a ausência deste aqui - disse Sirius arrastando o corpo para a entrada do corredor por onde vieram. - Eles trocam de ronda a cada vinte minutos. Vamos apressar o passo para que cheguemos à sala antes disso, porque depois virão como um enxame de abelhas.
- E o que faremos quando chegarmos lá? – questionou ele.
- Só os apaguem o mais rápido possível da forma que conseguirem – ironizou Sirius o encarando. - Não há nada que possamos fazer em relação ao alerta, mas se acharmos os mapas rapidamente, conseguirão chegar no corredor pelo qual viemos antes que os reforços cheguem até vocês.
- Sem problemas – disse Mika. – Só vamos logo, depois de todos aqueles buracos e armas brotando das paredes a sensação que tenho é que algo irá nos atingir a qualquer momento.
Sirius riu.
- Não duvide de sua intuição, senhorita. A percepção de insegurança nos traz o medo. Caso este não possua o poder de nos impedir, então ele nos encorajará ao limite até que finalmente possa nos abater quando abaixarmos a guarda. É exatamente por isso que não há nada aqui. Lembrem-se que tudo se trata de um grande jogo.
Cavian
Caminharam bastante até que chegassem em um corredor longo e reto. Tinha o chão coberto de mármore claro e manchas amarronzadas que se dispersavam como raízes. Os pilares de mesmo tom eram tão reluzentes que davam a impressão de que estavam em um quarto de espelhos esbranquiçados. Os guardas estavam lá, ao fundo, como estátuas, com suas armaduras bem cortadas e as lanças apoiadas sobre o chão. Sirius esgueirou seu rosto até que pudesse vê-los.
- São dois deles, mas pode haver mais. Fiquem aí enquanto abro caminho – sussurrou Sirius, antes que saísse em direção ao corredor.
Os guardas não se mexeram até que se aproximasse, mas no meio do caminho Sirius parara.
- Senhores, por que tantos de vocês por aqui hoje? Aqueles animais não chegariam aqui nem se quisessem – disse Sirius, desviando o olhar para o alto ao perceber que havia mais deles em alguns buracos altos nas paredes laterais. Estavam escondidos, mas mesmo com a intenção de esconder os canos das armas com o mesmo tom rajado das paredes e do chão, havia uma sutil diferença de tonalidade criada pelo metal das linhas que se movimentavam levemente no ar por meio do pequeno tremor de suas mãos. Contara seis deles, mas provavelmente haveria mais um mirando sua nuca. Seria impossível que abatesse os guardas da porta sem se colocar em uma posição arriscada.
- Mestre Sirius, são ordens irrevogáveis até que ele volte – disse o guarda à esquerda da porta. Era menor que o do outro lado, mas falava como seu líder.
Sirius gargalhou.
- Se esqueceram quem manda aqui nesse lugar em sua ausência? Apenas descansem, homens, vão beber uma bela cerveja enquanto eu revejo alguns papéis que ele me pediu.
- Sem exceções, mestre Sirius. Como disse, estamos no mais alto nível de alerta, nem o senhor nem o mestre Garfane pode revogá-las.
- Senhores... - disse Sirius se aproximando, até que ambas as lanças fossem apontadas em sua direção.
- É nosso último aviso, mestre Sirius. Não gostaríamos de ter que justificar tal ato - disse novamente o guarda.
- Tudo bem, tudo bem... Sem problemas - disse Sirius levantando as mãos. Duas esferas deslizaram ao chão, que explodiram em uma fumaça acinzentada que cobrira em um instante tanto Sirius quanto os guardas.
Os tiros soaram das paredes contra a fumaça, enquanto todos entraram no salão. Os sons não só serviram para que os guardas não escutassem seus passos, mas também para alertar suas posições.
Cavian entrou primeiro, sentindo a presença do guarda logo acima de sua cabeça. A lâmina foi jogada ao alto, rodopiante, fazendo com que a arma fosse serrada ao meio enquanto Narthus tomou a frente.
Ao abrir o sobretudo, Rixi finalmente se revelou. A fada abriu os braços e um clarão de luz se espalhou pelo salão, enquanto o claro mármore o intensificava. A lâmina voltou para suas mãos quando correu e pulou sobre Narthus, pegando impulso em seu ombro esquerdo. Não sabia se funcionaria, mas no ar expandiu o alcance de sua visão até sentir a presença dos guardas e de suas armas. Foi quando se concentrou em cada uma delas, tentando puxá-las para junto de si e como se respondessem ao seu chamado, todas elas pularam uma a uma ao centro do salão, fazendo com que eco do tintilar do metal se espalhasse pelo ar logo após de ter aterrissado ao chão. A fadiga tomou seu corpo por completo em um instante, mas era algo que teria que lidar mais tarde.
Rixi já havia voltado ao refúgio seguro do bolso de Narthus quando a fumaça aos poucos se dispersou. Era possível ver que os projéteis atirados atingiram as armaduras dos guerreiros caídos, enquanto Sirius limpava as mãos de poeira.
- Bravo! – exclamou Sirius. – Não esperava nada menos de nós para ser sincero. Mesmo sem qualquer planejamento, tudo deu certo ao final – continuou em frente à porta principal. Era grande o suficiente para que um gigante passasse por ela, e em seu corpo metálico que mais lembrava um cofre havia um único volante lateral e havia volantes pequenos e grandes, hastes interligando os corpos metálicos e uma única fechadura.
Ele percebeu quando os guardas mais próximos sumiram de sua visão.
- Eles vão avisá-los, Sirius, não pude detê-los por trás daquelas proteções – alertou ele.
- Não é como se mudasse nossa situação, cuidarei deles depois – disse Sirius se virando na direção da porta e passando a mão em sua superfície como se a analisasse. Vasculhou um de seus bolsos e arrancou um pequeno molho de varetas metálicas, com a qual tentara realizar a abertura. Espremendo o ouvido sobre a porta de tempos em tempos.
- Cavian, Mika está guardando a entrada. Deveria ser eu lá atrás – sussurrou Narthus a ele.
- Acho que tem se preocupado demais com ela – respondeu ele com um sorriso debochado, enquanto Narthus franzia o cenho. – Já viu o que ela pode fazer, e alguém precisará vigiar aquela saída de qualquer forma. É a única maneira de sairmos deste lugar.
- Acho que anda convivendo muito com nossa pequena amiga – respondeu Narthus apontando para dentro de suas vestes enquanto tomava um soco de Rixi.
- Ei, consegui! – disse Sirius, enquanto puderam escutar o rangido das travas de metal, que se abriram em harmonia. Esperou que os sons cessassem para que empurrasse a porta cautelosamente.
O escritório tinha estantes e baús por toda parte e vários papéis espalhados pela extensa mesa. Muitos deles com anotações corridas, quase indistinguíveis.
- Onde ele esconderia essas anotações? – questionou Sirius em voz alta. – Narthus, não é? Fique com as estantes, eu ficarei com os baús e Cavian cuida da mesa.
Narthus assentiu, assim como ele, que partiu apressado para achar o que buscavam.
Narthus tentava manter tudo no lugar, enquanto Sirius revirava os baús sobre o chão. Os olhos de todos corriam tão rápido sobre aqueles papéis amarelados que seria impossível que pudessem ler qualquer coisa que estivesse escrita ali. Apesar disso, ele viu Sirius encarando alguns deles por mais tempo do que parecia ser adequado. Viu quando colocara alguns deles nos bolsos. Não faria sentido que nos traísse agora, pensava ele de maneira inquieta.
Cavian puxou uma das gavetas e viu uma pequena caixa do tamanho de um livro. Tinha um corpo de madeira rústico com detalhes ásperos e cinzentos que pareciam com a casca de uma paineira. Ele a colocou sobre a mesa e abriu o trinco. Sirius se movimentou quando ouviu o som da batida na mesa e tentou impedir que ele o abrisse. Jogou seu corpo contra o dele enquanto a capa se abria em espinhos finos como agulhas que cresceram e dançaram em sua direção como se o perseguissem. Percebeu quanto alguns deles arranharam ainda que levemente a mão de Sirius.
- Por que fez isso? – questionou ele.
- Porque consegui ser mais burro do que você – disse Sirius meneando a mão com uma expressão de quem tomara uma martelada em seus dedos.
- Sua mão... – alertou ele a Sirius, apontando para a lesão na mão direita do ladino que rapidamente se arroxeara.
- Veneno... Provavelmente um dos bons. A boa notícia é que o achou, príncipe. Os mapas devem ser esses – disse Sirius apertando os olhos, abrindo os papéis dobrados dentro da caixa, revelando o que parecia um mapa de pontos com coordenadas, cada um deles com metragens que pareciam indicar a profundidade de cada passagem até pontos maiores que pareciam ser o fim de caminhos, que possivelmente eram os pontos que buscavam. A marca dos três riscos de pontas invertidas e circulares que lembravam a ponta de um tridente eram o símbolo principal de Darkwaters, estava localizada de forma pequena ao canto. Provavelmente poucos se lembrariam do povo já esquecido pelo tempo, mas ele nunca esqueceria dos estudos que habitavam semanalmente sua rotina, a composição de seus exércitos, seus hábitos e estilos de ataque, os Aquirianos eram detalhistas o suficiente para lembrar de cada brasão e de cada batalha perdida, assim nenhuma derrota era absoluta e mesmo em tempos de paz estariam sempre preparados para a guerra – A má é que provavelmente terei que acompanhá-los na volta – disse Sirius se ajoelhando no chão. Rasgou um pedaço de sua manga e o dividiu em dois, o maior deles torceu sobre o antebraço. - Levem-me à taverna, por favor, garantirei que saiam a salvo de lá. Samine talvez saiba o que fazer com isso – continuou se apoiando sobre a mesa e cortando um único espinho da caixa com uma adaga, enrolou sobre o pano que sobrara e o colocou em um dos bolsos de couro logo em seguida.
Cavian dobrou os mapas e colocou em um dos bolsos.
- O que acha que está fazendo? Sim, aproveite e deixe um anúncio para onde vão – ironizou Sirius. – Anote ou grave as coordenadas e revire tudo. Deixe que percam tempo tentando descobrir o que vieram buscar.
- Aquilo em seus bolsos então...
– Sim, datas e informes de carregamentos, informações problemáticas o suficiente para confundi-los – respondeu Sirius, enquanto ele encarava as entradas do mapa. Como gravaria aquilo?, pensou ele tentando entalhar os números em sua cabeça. Foi aí que procurou na mesa uma caneta tinteiro e escrevera no seu antebraço o mais rápido que conseguia. Enquanto Narthus seguira o conselho e derrubava as estantes ao chão.
- Ei, grandalhão, consegue me dar uma mão? – perguntou Sirius a Narthus, fazendo com que o ajudasse a se levantar, já um pouco ofegante, enquanto ele jogava os mapas de volta em meio aos demais documentos.
- Pessoal, estão chegando – gritou Mika da entrada.
- Vamos depressa, pelo mesmo caminho – ordenou Sirius, quando todos começaram a correr, menos ele. O caminhar lento do guia os atrasaria e Narthus não pensou duas vezes em jogá-lo sobre suas próprias costas.
Era visível que não estava bem, seus olhos antes ágeis pareciam ter dificuldades até para enxergar e o suor escorria pelo rosto como se estivesse ao fim de uma maratona.
Cavian
Agora era Mika que tomava a frente. Parecia de todas as pessoas ali a mais segura do trajeto de volta naquele momento. Haviam passado por alguns corredores e tinha certeza que estavam próximos, mas antes que chegassem ao destino, a companheira parou repentinamente e Cavian pôde entender a razão. Mika tinha bons ouvidos como ele e escutara os vários passos coordenados ao longe. Era sem dúvidas uma numerosa legião.
- Siriusss... – chamou uma voz rouca lentamente. – Onde está você?
- Merda, agora isso? - resmungou Sirius em um estalo momentâneo de lucidez, em uma mistura de surpresa e medo. – Ei, me escutem. Temos que voltar.
- Mas estamos quase na bifurcação... – questionou Mika.
- É bem pior que os enfrentem, acredite em mim – retrucou Sirius.
- Você mesmo disse que não saberíamos como voltar por outro caminho – disse Narthus relembrando as palavras de algum tempo atrás.
- Eles ainda não sabem onde estamos, quando nos virem, ele guiará o exército por todos os corredores. Enquanto estão divididos ainda temos chance, mas não contra ele e não aqui.
- Se conseguirmos derrotá-lo, poderemos seguir por onde viemos – disse ele confiante.
- Ei, dragão, você viu o que aconteceu comigo. Tempo é a única coisa que eles precisam. Só sigam o que digo, não sei quanto tempo vou aguentar acordado e nem vivo.
Cavian assentiu.
Voltaram pelo caminho de onde vieram. Não sabiam quanto tempo levaria para chegar a outro ponto daquele círculo. As paredes se curvavam levemente ao horizonte, até que chegaram a outra saída. Era surpreendente. Os exércitos parados na frente da bifurcação pareciam estátuas. Os escudos longos fechavam o caminho em frente, assim poderiam cobrir três acessos e usar a força total contra o inimigo. Além disso, ainda impediam com que qualquer um avançasse no círculo, fazendo com que o exército que vinha por trás os emboscasse de qualquer maneira.
- Siriussss... Sei que está aqui... – escutaram novamente a voz ainda que mais distante dessa vez.
O caminho pelas costas fechado, o da frente com guardas a sua espera. Não parecia muito possível fazer qualquer coisa se não lutar. Tentara seguir o plano de Sirius da primeira vez, mas não restavam mais saídas além daquela.
- Joguem meu corpo aqui e avancem, tentem enfrentá-los de alguma forma somente para que alcancem a saída. Se conseguirem chegar àqueles corredores, eles não os seguirão. Vou tentar ganhar algum tempo aqui atrás.
- Não seja louco, Sirius, antes nem queria lutar contra ele com todos nós agora quer ir sozinho nesse estado – questionou ele.
Sirius gargalhou.
- Quem falou em lutar? Não vão conseguir me tirar daqui de qualquer forma. Se sobreviverem, apenas cumpra sua promessa dragão.
- Não vamos te deixar aqui - decidiu ele. – Rixi, consegue derrubá-los com sua magia? Se ao menos se desiquilibrarem e tenham que se escorar uns sobre os outros, farei com que meu ataque atinja mais deles.
- Posso tentar – disse Rixi saindo do paletó de Narthus, que para surpresa de Sirius, por um instante achou que se tratasse de alguma alucinação, ainda que não tivesse descartado a ideia por completo.
- Assim que eu atacar, corram pelo corredor de saída, o.k.? – ordenou ele confiante.
- E as armadilhas? – perguntou Rixi.
- Acho que podemos lidar com elas... - disse Mika levantando a mão. – Algumas delas são bem parecidas e seria impossível que circulassem por aqui sem um padrão...
Sirius riu novamente.
- Senhores, senhoras e agora criaturas mágicas, foi um prazer conhecê-los – exclamou Sirius sadicamente. - Por mais que essa moça tenha certa razão, por um momento fui louco o suficiente para achar que haveria esperança pra vocês.
- Bom, então vamos – disse ele ignorando as últimas palavras ditas. Já havia duvidado de Mika uma vez, não cometeria o mesmo erro outra vez.
Rixi voou à frente e estendeu a palma de sua mão. Tinha que ser um tiro certeiro. Mas antes que a fada pudesse agir, um delicado grow de gelo apareceu pela direita do corredor. Era pequenino e voava em uma trajetória aparentemente sem qualquer pretensão. É ela, pensou Cavian, antes que o pequeno pássaro virasse em direção deles e se transformasse em uma parede de gelo em um instante, fazendo com que o exército ficasse para trás da estrutura esfumaceante que se formara. O barulho abafado das pontas das lanças se atirando inutilmente contra o muro congelado era um suspiro de esperança, e ele abaixou as mãos de Rixi um momento antes de Yuki se revelar, chegando pelo mesmo corredor utilizado pelo pássaro instantes atrás.
- Difícil encontrá-lo, faísca, você tem andado por alguns lugares bem inusitados – brincou Yuki.
- Quem é essa? – questionou Rixi.
- A irmã desse rapaz assustado – respondeu Yuki, enquanto com um movimento de mãos criava mais um dos pássaros, dessa vez lançado contra eles. O pássaro passou por cima do ombro de Rixi, lançando-se contra as costas de todos na direção do outro exército que se aproximava.
- Ataquem! – ordenou o homem ao fundo, que agora se tornara visível aos olhos.
Era quase tão grande quanto Narthus e tinha orelhas pontudas para trás como a de cães. Os olhos pequenos e redondos também lembravam a de um animal feroz, assim como os dentes tortos que fechavam em sua mandíbula larga. Garfane, outro dos imediatos de Shasak.
Cavian não viu o sorriso que Sirius deu de encontro à morte e o estendido dedo do meio de sua mão direita em direção a Garfane, pouco depois que as cordas das bestas se relaxaram e uma saraivada de setas voou em suas direções. Sirius adormeceu antes mesmo que elas os atingissem e que uma nova parede de gelo fizesse com que fossem cravadas como dardos em um grande alvo de madeira. Pela transparente barreira gélida, ainda era possível ver a silhueta de seus algozes que corriam ávidos pelo confronto que não existiria.
- Vamos sair desse lugar – disse Yuki, correndo agora na direção de onde viera enquanto todos a seguiram sem hesitar.
O DERRADEIRO FOGO DE KERRADUM
Cavian
A porta por onde saíram desembocava em uma densa floresta. Como havia algumas delas em torno dali, Cavian não saberia dizer onde realmente estavam. Yuki estava viva e o sentimento era uma mistura de alegria e temor. Ainda que a felicidade tentasse tomar seu coração, era bem provável que sua irmã não reagisse da melhor forma a todos os acontecimentos desde que se viram pela última vez. Além disso, o estado de Sirius era totalmente desconhecido. Estivera desacordado desde então sobre os ombros de Narthus, ainda que sua respiração mesmo que tímida lhe trouxesse certo alívio.
- Ele disse para que o levássemos àquela taverna... Talvez se a gente conseguisse voltar para pelo menos deixá-lo lá... - observou ele exausto, recuperando o fôlego, enquanto arrancava de seu pulso o dispositivo entregue por Sirius e jogava ao chão.
- Não sei quem ele é, Ian, e nem o que significa pra vocês, mas isso é impossível – constatou Yuki observando o entorno da floresta, enquanto tateava o solo esfregando um pouco de terra entre os dedos. - A essa altura, a cidade toda deve estar tomada. Nossas cabeças devem estar valendo nosso peso em ouro, o que naquela cidade significa andar com um painel luminoso na cabeça. Além do mais, o líder de um dos exércitos pareceu reconhecê-lo. É bem provável que seja um dos lugares onde irão procurá-lo – disse Mika se aproximando de Sirius.
- E Tessan? Digo, se chegarmos rápido, se conseguirmos os materiais certos, provavelmente Mika conseguirá tratá-lo... Não é, Mika? – disse ele rapidamente, enquanto sua respiração se acelerava. A culpa que o perseguia parecia ter voltado a corroê-lo por dentro.
- Me desculpe, Cavian, mas o estado dele é grave e o veneno está se espalhando rápido demais – alertou Mika, depois de soltar seu pulso e analisar o corpo desfalecido e os olhos inexpressivos sobre os ombros de Narthus. Retirou também a seringa de cobre de sua bolsa, a mesma que havia queimado suas mãos dias atrás, para coletar uma amostra do sangue de Sirius.
- Quanto a isso, não se preocupe, vou deixar as coisas um pouco mais lentas. – disse Yuki se aproximando de Narthus. – Deite-o, por favor – pediu novamente, enquanto o gigante atendia o pedido sem hesitar. Posicionou a palma de sua mão sobre o peito de Sirius e uma onda de frio correu pelo corpo desacordado, fazendo com que os lábios do ladino se arroxeassem e a pele se tornasse pálida.
- Entendo, é provável que nos dê algum tempo – observou Mika, enquanto levava uma das mãos ao queixo.
- Você é algum tipo de curandeira? – perguntou Yuki ao se levantar.
Mika assentiu.
- Se me disser que pode reverter seu estado, conheço um lugar não muito longe daqui onde estaríamos seguros... Caso não seja possível, teríamos que tentar algo a mais uns três dias completos à frente, mas a um risco considerável já que estaríamos sendo procurados dia após dia.
- Pessoal, este é o fragmento do espinho que o atingiu quando estávamos lá – interrompeu Narthus, sacando de um dos bolsos de Sirius o espinho retirado da caixa, desembrulhando-o do pedaço de pano com cuidado. - Provavelmente pode ser importante para acharmos uma cura.
- Deixei-me ver – segurou Mika em mãos, observando-o sobre todos os ângulos. Em um instante, Mika raspou o dedo na ponta do mesmo espinho para o desespero de todos ali. Narthus arrancou o pedaço de suas mãos com um tapa com o dorso de sua mão, jogando-o para dentro da mata.
- Ei, Mika, o que fez? – irritou-se o gigante segurando seus ombros, enquanto sua postura pacífica deu lugar a uma expressão atordoada que até então nunca haviam conhecido.
Mika sorriu.
- Ei, senhor Narthus – disse Mika dando tapas em um dos antebraços do gigante, enquanto sorria visivelmente embaraçada. - Não se preocupem, não é como se ele pudesse me afetar. Acreditem, já passei por vários testes no passado, ainda que este pareça ser especial – observou ela, enquanto apertava os olhos por um momento. - Talvez meu corpo com o tempo certo possa ser capaz de criar um antídoto. Até mesmo os melhores mestres dependeriam de um certo tempo até verificar do que se trata.
- Parece uma mistura... – constatou Rixi, fungando com o nariz inquieto.
- Exato, o que torna tudo ainda pior. Se eu estiver certa, teríamos que somente mantê-lo vivo até o fim do processo – constatou Mika confiante.
- Quanto tempo? – perguntou Yuki.
- Um... Dois dias talvez...
- Torça para que esteja certa, porque te darei o tempo que precisa – disse a princesa, dando um longo assobio para mata, fazendo com que o som ecoasse a alguns metros à frente.
Não demorou muito até que o craquelar das folhas secas fosse escutado e alguns Bívios surgissem entre árvores de folhas finas e copas alongadas. Animais robustos que garantiriam que seus pés descansassem por mais algumas horas e dias.
- Yuki... – sussurrou ele.
- Teremos tempo pra conversar... Me ajude e ficar atento a qualquer sinal de perigo – pediu Yuki em tom aparentemente compassivo, antes que subissem sobre as corpulentas criaturas.
Cavian
As próximas horas se passaram em silêncio e calmaria, sem qualquer tempo de descanso, sem qualquer som das histórias que costumavam acompanhar as noites de fogueira armada. Sirius seguia sob cuidados de Yuki e Mika e a caverna para qual Yuki os guiou parecia mais com um buraco vazio entre as pedras amontoadas. Provavelmente haveria várias delas por ali, ainda que muitas não levassem a lugar nenhum. Os Bívios se dispersaram sob o comando de Yuki, logo após terem sido libertos das poucas bolsas de couro amarradas em suas largas costas. Não era uma trilha confortável. A escuridão era somente iluminada pelas pequenas tochas que a princesa trouxera consigo, mas a proximidade das paredes que pareciam querer engoli-los fazia com que a luz encontrasse dificuldades de se dispersar. Ainda assim, a pior situação com certeza era de Narthus, o último da fila indiana manteria as costas arqueadas ainda por tempo desconhecido, mas era provável que preferisse a situação do que a de encarar mercenários à procura da morte.
Yuki os guiou com certo domínio entre corredores tão dispersos, que por vezes se dividiam não em uma vez só, mas em várias trajetórias que se assemelhavam a túneis de um formigueiro. Percebera algumas marcações na parede, runas antigas que provavelmente indicavam o caminho para aqueles que pudessem lê-las. Provavelmente o castelo que saíram dias atrás trazia certa semelhança com aquele lugar e era possível entender a razão do incidente de Kerradum, a fortaleza impenetrável dos herdeiros de Trodor, ter gerado tanta perplexidade aos ainda livres. Se conseguiram o domínio sobre a velha montanha, tinha se tornado somente uma questão de tempo para todos os demais povos.
Depois de uma longa caminhada, pareciam ter encontrado o local que procuravam. O corredor se abriu em um grande salão de pilares rústicos, adornados pelas mesmas runas vistas pelo caminho, ainda que não pudesse diferenciá-las. Aquelas maiores e mais vívidas pareciam sinais de alerta. Dali era possível ver outros túneis que tomavam a parede por qual saíram e que desembocavam um ao lado do outro. Suas cabeças estavam longe novamente do teto, o que trazia certo conforto assim como o horizonte sem fim à sua frente. As ruínas do antigo vilarejo de Darruin.
- Chegamos! – disse Yuki apagando sua tocha com um único sopro, guardando-a na bolsa que carregava consigo. - Há um pequeno salão por ali – completou apontando o dedo. O local era estranhamente iluminado pelas luminárias que se replicavam entre a imensidão de pilares. Cavian viu que a chama vinha de pequenas pedras, o que indicava que alguém cuidava daquele lugar, ainda que toda aquela claridade fosse estranha para seres que gostassem de se esconder nas sombras dos corações das montanhas.
- Quem vive por aqui? – disse Rixi acompanhando o caminhar da princesa de cabelos prateados, em um misto de preocupação e curiosidade.
Montanhas como aquela pareciam muitos maiores do que eram descritas nos livros. Eram anões, não eram? Por que precisariam de tanto espaço?, questionava a fada a si mesma.
- Poucos... – respondeu Yuki prontamente.
- Poucos perigosos? Ou poucos com os quais não devemos nos importar? – indagou novamente a fada.
- Bom... Anões são criaturas reativas, minha sugestão é que sejam gentis mesmo que eles pareçam rudes. O eco das pedras já deve tê-los avisado que estamos aqui. Eles virão nos encontrar em algum momento – terminou Yuki antes que entrassem no portal já aberto. De alguma forma não foi o que a fada teria gostado de escutar.
Uma mesa longa e bancos de pedra decoravam o local empoeirado pelo tempo, assim como os barris amontoados na parede ao fundo. Ao menos se estivessem cheios, a sede não seria mais uma ameaça. À direita, um portal ainda maior revelava o que parecia ser um auditório de mezaninos altos, dispostos nas laterais e que assim como os pilares de antes, pareciam ter suas estruturas unidas à própria montanha. O balcão ao centro que se unia ao chão parecia mais como uma mesa de sacrifício, bem parecida com a que Narthus fugira no passado, ainda que fosse significativamente mais alta e larga.
- Deixe-o ali, por favor – apontou Yuki para a mesma mesa, olhando para Narthus, que depositara o corpo de Sirius com certo receio, tentando afastar os pensamentos que tentavam atormentá-lo naquele momento. – Se acomodem, pessoal. Nas bolsas que trouxeram, há comida suficiente e os barris estão cheios – disse ela chacoalhando levemente um deles. - Não há nada que possamos fazer a não ser aguardar – disse Yuki depositando a bolsa grande de couro trançado que carregava consigo e se dirigindo ao portão maior apressadamente. – Por favor, Mika, quando estiver pronto, coloque-o naquela pequena abertura, bata na porta e em hipótese alguma deixe que alguém entre na sala. Não seria seguro pra ele ou pra vocês – alertou antes que caminhasse para dentro do auditório e puxasse ambas as folhas dos altos portões de ferro lá, trancando ela e Sirius no local.
Talvez por ter salvado a vida de todos ali, ninguém ousara questioná-la. De alguma forma sua voz passara a confiança de alguém que sabia algum caminho, diferente do que estavam tentando fazer até ali. Depois de alguns instantes foi possível entender o motivo do alerta, quando uma densa camada de gelo cobrira o portão. O que quer que tenha feito lá dentro parecia muito mais intenso do que fizera na floresta.
- Que bela surpresa, Cavian, pelo visto a sensatez fazia parte de alguma outra linhagem de sua família que você infelizmente não herdou – brincou Rixi, esperando sua reação, que parecia ter seus pensamentos muito distantes dali. – Ei, surdo – insistiu a fada estalando os dedos perto de seus ouvidos.
- Desculpe, Rixi... – disse ele recobrando a consciência. - Com tudo isso acontecendo não estou conseguindo processar muito bem as coisas – justificou-se finalmente se sentando à mesa.
O que falaria para Yuki? Desculpas não seriam suficientes provavelmente. Além disso, seu desejo em ter Lis por perto foi o estopim de tudo que acontecera no passado, um que ele parecia estar repetindo. A conversa que teriam seria tudo, menos tranquila.
- Encontrou sua irmã, vamos salvar aquele moço boca aberta que tenho dúvidas se merece ser salvo. O último sentimento que deveria ter era preocupação. – constatou Rixi, que se sentava sobre a mesa com as pernas cruzadas, uma sobre a outra, com a mão apoiando o queixo e o cotovelo sobre um dos joelhos, enquanto olhava diretamente para ele. - Aliás, na melhor das hipóteses, se não fosse ela, provavelmente estaríamos com rostos estampados naquele castelo.
- Rixi tem razão, Cavian – disse Narthus se sentando ao seu lado. – Não é comum que tenhamos algo de bom para comemorar nos tempos atuais. Agora sabe onde está sua irmã, e o mais importante, sabe que ela está bem – consolou o gigante dando leves batidas em seu ombro.
- Não é isso... Deixei pra lá... – disse ele observando Mika trazendo algumas canecas cheias em mãos.
- Peguei o líquido daqueles barris, Yuki disse que poderíamos pegar e o cheiro não parecia ruim – disse Mika.
- Você quer dizer essa cerveja em suas mãos? – questionou Cavian, levantando-se para ajudar suas mãos ocupadas.
- Isso! Obrigado, não lembrava do nome – agradeceu Mika, depositando as canecas sobre a mesa, três no total.
- Como assim? Não sabe o que é? – questionou ele surpreso. Como alguém daquela idade não conhecia tantas coisas e ao mesmo tempo conhecesse tantas outras?
- Sei sim, só faz algum tempo desde a última vez que a vi. Não é como se passássemos fome, mas desde a morte de minha mãe e do sumiço dos demais, pão e água era as únicas coisas que nos foram servidas por anos e não costumava bebê-la quando criança.
- Percebi quando bebeu quase a jarra inteira do suco daquela taverna – ironizou Rixi.
Mika riu.
- De fato, era um sabor tão incomum e tão bom que não consegui me segurar. – respondeu ela.
- E você como está? – perguntou ele, referindo-se ao seu estado de saúde. Assim como ela havia prometido, o veneno não a havia afetado de forma alguma.
- Melhor impossível. Tenho que testar algumas coisas, mas tenho certeza que daremos um jeito – disse Mika entusiasmada. Ele nunca a vira daquele jeito, parecia que os acontecimentos recentes a trouxeram além da cicatriz nas mãos, algum resquício de esperança que parecia ter sido guardado em um lugar bem distante de suas emoções.
- Que bom! – disse ele tomando um dos copos da mesa finalmente para si. - Sobre Yuki, o que posso dizer é que ela tem a rara habilidade de sempre saber o caminho certo das coisas. Um do qual Rixi já havia constatado que não herdei... – refletiu o príncipe dragão, tomando um grande gole de cerveja quente.
- De fato – disse a fada inexpressiva, enquanto percebia que Mika havia trazido consigo uma tigela menor, um tipo de concha pequena de pedra cinza que parecia ser adequada para suas pequenas mãos.
Muita gentileza para quem somente a tratou mal até então...Estranho, julgou a fada em seus pensamentos.
- Bom, agora falta pouco, não? O mais importante é que estamos cada vez mais perto de nos levantarmos contra quem importa – disse Narthus com um sorriso no rosto e olhos cabisbaixos tentando escondê-lo. - Os deuses nos abençoaram hoje!
- Os deuses mandaram a irmã de Cavian nos encontrar? Sério? – ironizou a fada com os olhos estatelados e com uma voz mais grossa remendando Narthus. - Seria tão mais fácil se acabassem com todos esses que se colocam em seus lugares, não? Da próxima vez que conversar com eles diga que dei a dica.
- Desculpe, Rixi, não quis irritá-la, Rixi, é que...
- Se não quer já deveria ter parado por aqui. Use esse seu corpo grande para prestar atenção no que vem por aquela porta – disse Rixi apontando para a abertura por onde entraram.
Cavian
Narthus era como um cão de guarda na porta escorado no batente de rochas, com meio corpo dentro de cada salão. Ainda que achasse ter ouvido alguns ruídos externos, não tivera qualquer novidade na noite que se passara. Os únicos movimentos que observara eram o de Mika, que acordara cedo para trabalhar com a amostra de sangue que havia coletado nas florestas e que misturava com o seu próprio. A drow apertava o olho contra uma pequena lente de vidro que haviam adquirido junto à feira de Stormcrow, enquanto analisava as amostras.
- É isso! – exclamou Mika alegremente, fazendo um gesto de afirmativo para Narthus e tirando uma quantidade de sangue de suas veias suficiente para que enchesse a seringa antes de se dirigir à porta.
Cavian e Rixi acordaram do chão gelado com o barulho, enquanto Mika dava três batidas rápidas e ocas na porta de ferro maciço. O antídoto havia sido entregue.
Alguns bons minutos depois, a ansiedade de todos fazia com que as linhas d’água que começaram a surgir demorassem ainda mais para escorrer pelas chapas de ferro e parafusos que se cruzavam e as guiavam delicadamente ao chão.
Foi somente quando pararam de se preocupar , rindo das coisas comuns que Mika nunca teve a oportunidade de conhecer, que a porta finalmente se abriu.
Os cabelos negros e molhados de Sirius ainda deixaram à mostra o rosto que parecia ter voltado à vida. Com os braços apoiados sobre os ombros de Yuki, caminhava lentamente até a mesa junto aos demais.
- Bem-vindo de volta – disse Narthus, o primeiro a recepcioná-lo com um sorriso, enquanto Yuki o apoiava sobre um dos bancos, mantendo-se ao seu lado de pé.
- Não é como se eu fosse agradecer... Talvez fosse preferível ter morrido naquele lugar com a legião que irá me perseguir.
- Não seja por isso, meu senhor, ainda há tempo de reverter o processo – ironizou Rixi.
Sirius gargalhou.
- Meu deus, você é mesmo de verdade! – exclamou Sirius surpreso. - Bom, com toda essa cerveja talvez não seja má ideia me manter aqui até que os dragões pereçam no tempo...
- Talvez possa vir com a gente – disse ele educadamente, ainda pensando que não poderia haver muitas opções naquelas condições.
- Ah, meu caro príncipe, não me leve a mal, mas o que pretendem fazer é algo que até mesmo meu otimismo dúvida. Vocês estão em quantos aqui? Quatro e meio?... – ironizou Sirius enquanto a fada franzia o nariz. - Mesmo com seu nome, mesmo que alcancem quem queiram alcançar, ainda assim será uma briga de insetos contra martelos. Entende o que quero dizer?
- Não é que não saibamos disso, mas a cada dia que passa serão mais martelos – justificou Cavian. - A propósito, essa que está ao seu lado é Yuki, minha irmã, a culpa de ter voltado é dela e de Mika, eu não tive nada a ver com isso – brincou ele, ainda que Sirius tivesse encarado Yuki com olhos surpresos. Ele não havia percebido que ela não estava lá? Talvez o que havia restado dos efeitos do veneno, pensou Cavian.
- Não se preocupe. Cavian, já me apresentei – disse Yuki.
- Você?... – disse Sirius assustado.
- Eu? – completou Yuki.
- Não pode ser... – disse Sirius para os olhares confusos de todos. – A irmã dele?
- Bom, foi o que ele disse, não? – sorriu Yuki gentilmente para o rosto ainda surpreso de Sirius. De alguma forma parecia uma mistura de respeito e temor, o que vindo de uma pessoa que enfrentara Shasak significava mais do que pudesse parecer. Sua cabeça parecia confusa ao ponto de seus pensamentos se atrapalharem.
- Bom, se pretendem arrancar algo de mim, informo que tudo o que sei além do que sabem de mim, não seria de qualquer serventia – completou Sirius com semblante sério, para os olhares confusos de todos. De uma hora para outra a conversa informal que estavam tendo parecia ter se tornado um interrogatório.
- Não se preocupe, meu caro, a maioria dos boatos não são reais – justificou Yuki.
Sirius riu quando apalpou seus bolsos vazios. Nada que pudesse ajudá-lo estaria ao alcance de duas mãos naquele momento.
- Apenas façam o que tem que fazer – disse o ladino calmamente.
- Do que está falando, Sirius? – questionou ele.
- Digamos que desafiei o chefe dele algumas vezes e que posso tê-lo irritado um pouco – explicou Yuki juntando os dedos de uma das mãos. - Agora ele deve estar achando que caiu em algum dos nossos planos, porque retirei alguns utensílios perigosos que estavam guardados com ele por motivos de segurança.
- Shasak? Você o desafiou? – questionou Narthus.
- Como disse, por algumas vezes – replicou Yuki.
- Quem é você, afinal? – questionava agora Rixi.
- Bom, além da irmã de Cavian, sou um dos libertos.
- Como Persus? – questionou Rixi com um sorriso alegre no rosto.
- Sim, como ele e como Rizar.
Tenho certeza de que ela ficará feliz em te ver, a voz de Persus ecoara em sua mente como um estalo. Eram as últimas palavras que escutara antes de apagar naquele dia.
- Adoraria esclarecer tudo de uma forma rápida, mas o que posso dizer é que luto pelos mesmos ideais de vocês e que ao contrário de seu ex-mestre - disse Yuki se dirigindo a Sirius. -, não mato pessoas a sangue frio a menos que mereçam – continuou, sorrindo em tom ameaçador. – Bom, dadas as apresentações, caso não se importem, acredito que tenha uma conversa em particular que deveria ter acontecido alguns anos atrás – finalizou sua irmã enquanto se retirava pela porta que dava ao extenso corredor por onde vieram. Ele quando voltou a si, saltou do banco rapidamente, apressando-se para alcançá-la.
Cavian
As mãos trêmulas que Cavian tentava esconder atrás de si, só não batiam mais que seu coração acelerado. Nem mesmo o desconhecido corredor vazio lhe causava tanto temor.
- Yuki, pensei em muitas coisas pra te dizer... Nem sabia se estava viva... Bom, o que quero dizer é que tenho ciência do que fiz a você e independente da sua decisão eu irei respeitá-la.
Yuki sorriu, enquanto caminhavam.
- Não é como se não tivesse ficado chateada com você um dia, Ian... Ainda mais depois da morte da mamãe. Por muito tempo te culpei pelo que aconteceu, mas essa não era eu. Depois de colocar a cabeça de volta no lugar e ver tudo que nosso pai fez a esse mundo, depois que te prenderam naquele lugar, tenho a certeza de que o destino dela era inevitável e ela provavelmente já sabia disso.
Ele se sentiu reconfortado por um momento, ainda que duvidasse de palavras tão gentis. Provavelmente Yuki só não quisesse perder o que restou de sua família sumindo com um fardo que já não importava mais.
- Acha que sou feliz hoje? – questionou ela para sua surpresa.
- Com toda certeza não – respondeu ele assertivamente.
- Está vendo, sempre achamos que temos as respostas até que a realidade nos bata com mais força. Estar do lado das pessoas certas fez muito mais por mim do que estar entre aquelas paredes vazias de Aquia, meu irmão. Sabe quem escreveu pra mim dizendo que você estava vivo? A mamãe. Como ela poderia saber que eu não te culparia pelo que aconteceu? Ela sempre viu tantos passos à nossa frente, Ian... Foi como se jogássemos mais um jogo entre as paredes daquele castelo e com mais uma vez ela tentando me ensinar a direção certa pra olhar.
- Você realmente acha que não tenho nada a ver com a morte da mamãe?
- Não foi o que eu disse. Você teve ações impensadas? Com toda a certeza. Atitudes que eu nunca tomaria em seu lugar? Também, mas vendo tudo o que fiz depois disso, não se permitir proteger aqueles que amamos é quase como não se permitir viver. Foi exatamente como mamãe viveu a vida toda e por isso é compreensível que ela quisesse que tivéssemos seguido caminhos diferentes do que tínhamos a nosso dispor. Ela sabia que sem ela estaríamos livres para decidir nossos próprios destinos.
Seus olhos finalmente se encheram de lágrimas. Seu peito estava tão pesado que parecia carregar o próprio peso do chão sob seus pés, enquanto desabava de joelhos ao chão.
- Seu coração é bom, meu irmão, sempre foi e mamãe sabia disso mais do que ninguém – disse Yuki se agachando a sua frente.
- Você não acha que posso estar indo atrás de Lis como fiz da outra vez?
Yuki sorriu.
- O que acho é que tem uma visão muito distorcida sobre si mesmo. Você se acha uma pessoa egoísta e se culpa por isso, mas viveu a vida inteira para ter o reconhecimento de nosso pai, o orgulho de nossa mãe. Se sacrificou por anos apenas para que eu me sentisse melhor quando você ocupasse o trono, mesmo que se tornar rei nunca fosse seu objetivo, e por fim quis libertar Lis do destino que sabemos que a aguardava. Quando mamãe falava de você com os olhos brilhando, era disso que ela falava.
- Persus também morreu por minha causa, irmã.
- Ele morreu pela causa que defendemos e não por você. Nossa luta é que para que cada vida seja salva, meu irmão. Quando souberam onde estava, ele se ofereceu para buscá-lo. Depois de todos esses anos os enfrentando, dia após dia, esperando pelo próximo amigo que iríamos perder, sua morte trouxe um vazio a mim que senti poucas vezes na vida. Há pessoas insubstituíveis como ele, como a mamãe e como tantos outros que ainda deixarão de caminhar conosco, mas nunca deixamos que o medo se tornasse nosso guia. Se ele o fosse, seria impossível fazer o que fazemos... Acredite em mim, papai faria tudo o que fez, independentemente de suas ações, ou das minhas, ou de qualquer um que se colocasse em seu caminho como a mamãe fez. Todos esses pulsos acorrentados, meu irmão, são obra daqueles que sempre buscaram o poder e mesmo que eu morra tentando, tirarei esse mundo das mãos dele, custe o que custar!
Ele desabou em lágrimas. Seria possível que tudo aquilo fosse verdade? Sua mãe o havia perdoado antes de morrer? Por um momento, pensou que tivesse vivendo um sonho do qual acordaria a qualquer momento. Até que os braços de Yuki o alcançaram. Um abraço apertado que não conseguiu sequer retribuir. Ela o puxara lá de baixo, de um poço vazio e profundo do qual nunca imaginava que fosse voltar. Todo aquele peso, toda aquela dor, todos aqueles anos naquela masmorra, mesmo que continuassem a atormentá-lo, lá no fundo sempre aceitou como um pequeno preço a pagar por todo sofrimento que havia causado, mas lá estava sua irmã, viva, viva como nunca a tinha visto. Ao menos ela se salvara. Ao menos havia alguma forma de redenção. Não estava tudo perdido, sempre teve Yuki como uma bússola e ela estava ali para guiá-lo novamente.
- Vou cuidar de você como mamãe pediu – disse Yuki o encarando com os olhos marejados.
- Não sou mais o menino fracote que costumou conhecer – respondeu ele enxugando os olhos.
Yuki sorriu.
- Ah, é, faísca? Faz tempo que não treinamos, mas acho que teremos algum tempo debaixo de todo aquele mar gelado.
- Você vai conosco? – perguntou ele com a esperança refletida em seus olhos.
- Logicamente, desde o fechamento de seus portões, Darkwaters nunca conseguiu ser acessada. Se Shasak achou um meio é melhor que cheguemos antes dele, mas antes disso temos que encontrar o ranzinza morador dessas ruínas.
Cavian
A galeria que estava parecia infinita, e sequer conseguia enxergar de onde vieram. Um imenso portão finalmente aparecia diante de seus olhos. As runas em vermelho com linhas escorridas pelo portão de ferro pareciam agressivas até mesmo para quem não podia entendê-las.
- O sangue dos inimigos das montanhas, escorrerá sobre as forjas dos filhos de Trodor, é o que diz no portão – disse Yuki.
- Parece assustador o suficiente pra mim.
- Causariam medo quando esse corredor não estava repleto do mais completo nada. Esses portões levam às antigas minas dos anões. Provavelmente nos perderíamos antes que os achassem.
Ele pressentiu uma presença atrás dos pilares e cutucou Yuki silenciosamente apontando o local. Por que alguém se esconderia em um lugar tão iluminado?, pensou.
- Ei, Melgar, sou eu! – gritou Yuki para seu desespero.
- O código, vossa alteza – disse uma voz rouca do lugar que ele vigiava.
- A velha montanha sempre se lembrará de seus inimigos... – respondeu sua irmã.
Quando terminou de dizer, a luz da tocha parecia se locomover atrás dos pilares, quando um anão de cabelos incandescentes de pele lustrosa e metálica saiu de encontro a eles. A saia de pequenos escudos metálicos e o martelo de metal avermelhado pelo calor pareciam ser as únicas coisas a suportar o calor intenso.
- Desculpe, vossa alteza, pela recepção, meus ouvidos não são mais os mesmos de outrora – desculpou-se Melgar.
- Não se preocupe, vim porque preciso de ajuda. Esse ao seu lado é meu irmão, Cavian – disse Yuki, fazendo com que Melgar o encarasse com certa intimidação. – Estamos precisando de respiradores subaquáticos, seria possível forjá-los pra nós?
- Há muito tempo não os faço, minha senhora, desde o fechamento das feiras dos picos flutuantes. Precisaria de um certo tempo para relembrar os detalhes e bem... A senhora sabe que envolve magia... O que quero dizer... É que se eu a utilizar de forma imprudente, eles podem nos achar aqui.
- Não se usar da forma certa. Sabe mais do que eu o que deve fazer – orientou Yuki dando uma piscadela.
- Não se preocupe, minha senhora, farei o que me ordenar.
- Obrigado, meu amigo, mande um beijo para as crianças por mim.
- Eles sentem saudades, minha senhora. Mas os entregarei assim que os ver. Oberor disse que quer ser um explorador, assim como a senhora.
Yuki sorriu.
- Deixe isso com ele então – disse Yuki revirando e retirando da bolsa uma bússola de metal enegrecido de contornos trançados, entregando nas mãos do dono dos cabelos de fogo.
- Mas, minha senhora... – disse Melgar recebendo o objeto com cuidado temendo que as mãos quentes o derretessem.
- Não se preocupe, é especial... – revelou a princesa.
- Obrigado, minha senhora, os encontrarei assim que terminar.
- Serão seis ao todo, um bastante pequeno, mais ou menos desse tamanho – demonstrou Yuki com uma das mãos. – E um pouco mais potente para pulmões um pouco maiores. Bem, acho que é isso... Ah, sim, preciso de um desses quando voltarmos - disse ela, entregando-o uma pedra entalhada de sua bolsa que parecia ser um projeto detalhado de algo.
- Parece uma bomba de propulsão, senhora... Medidas bastante específicas – analisou Melgar. - Precisaria provavelmente de uma pequena e potente fonte de energia para funcionar.
- Não adianta me perguntar, Melgar, sabe como funciona. Foi um pedido pessoal de Quazar. Estou aproveitando que estou aqui porque vai me poupar um tempo grande. Não procurei saber dos detalhes, mas parecia importante, você sabe como ele é, a paixão que ele tem sobre aquelas invenções malucas.
- Um homem sábio, senhora, criaturas que não se voltam contra seu criador, parece promissor.
- Veremos, de qualquer forma voltaremos em breve, não se preocupe.
Melgar assentiu, antes de encarar ele novamente da mesma forma que no início. Só depois partiu de volta às laterais do saguão, onde provavelmente encontraria outras passagens secretas.
- Acho que ele não gostou muito de mim – disse ele após ver o sumiço do rastro de suas chamas ao longe.
Yuki sorriu.
- A confiança deles leva tempo, não se preocupe. Para ter uma ideia, na primeira vez que o encontrei, Melgar quase acertou o martelo sobre minha perna. Mesmo depois de tê-los salvo.
- O que é ele, Yuki? Lembra os anões, mas esses cabelos de fogo...
- Elementais, os últimos de sua espécie. Exímios forjadores, os únicos a trabalharem em grandes profundidades. Por isso sobreviveu, o veneno não pode alcançá-lo, assim como os pequenos que foram protegidos no ventre da mãe.
- O que aconteceu com os demais?
- Depois da rendição distribuíram antídotos suficientes somente para poucos deles e a montanha se cobriu de vermelho. Uma nação inteira se perdeu, Ian, fizeram com que irmãos lutassem para sobreviver e nenhum dos que hoje vivem falam sobre o assunto. Naquele dia dizem que a própria montanha chorou e que ouviram nos ruídos entre as pedras a mensagem que repeti mais cedo, de que as montanhas cinzentas se lembrariam de todos aqueles que lhe fizeram mal. Infelizmente ou felizmente é tudo que sei.
Cavian
Não demoraram muito até que voltassem ao salão de onde vieram. Só puderam ver a bochecha de Sirius aplainada de longe pela mesa de pedra, enquanto Mika pressionava seu braço contra suas costas.
- Que bom que chegaram – disse Narthus, enquanto Rixi conjurava uma magia, com umas das mãos fazendo com que seus finos dedos girassem no ar. O ramo de cipó entrelaçava os braços de Sirius como uma cobra enrolando sua presa.
- Nunca aprendem – disse Yuki deixando a bolsa em uma das laterais do salão enquanto se aproximava. Mika se afastara e sentara ao lado de Narthus do outro lado da mesa, enquanto Rixi pousava logo a frente orgulhosa de seu trabalho. – Bom, não sei o que pensa sobre nós, mas não lhe restam muitas opções. Shasak não tolera traidores, assim como já sabe, e pelo que tudo indica a notícia já deve ter chegado aos seus ouvidos. Se quiséssemos torturá-lo não teríamos saído e o deixado livre, como estava até alguns minutos atrás. Então se eu fosse você pensaria melhor em suas chances.
- Já cumpri minha parte do trato e Cavian sabe disso. Se de fato possuem alguma honra, deixem-me ir, apesar de tudo que disse, não sobrevivi a maioria da minha vida em fartos banquetes como vocês.
Yuki riu.
- Pobrezinho, desculpe lhe dizer isso, mas esse discurso não combina nem um pouco com você. Não é como se pudéssemos fazer isso também. Talvez meu querido irmão tenha uma opinião diferente, mas sua boca aberta andando por aí é tudo que menos precisamos no momento – terminou Yuki formando uma lâmina de gelo nas mãos.
Os olhos de Sirius se fecharam quando o cipó fora cortado e seus braços libertados.
- Ei, o que está fazendo? – esbravejou Rixi.
- Não se preocupe, ele não tem condições de fugir, não sem nada como está agora.
- Obrigado, princesa – disse Sirius sorrindo e meneando a cabeça para baixo em cumprimento enquanto parecia zombar da cara da fada.
- Bom, se diz, só não ficarei responsável por limpar a bagunça depois – resmungou Rixi.
Yuki apenas sorriu como se a opinião da fada não importasse.
- Acredito que todos já tenham alguma ideia, mas devo alertá-los que passaram a ser fugitivos dos reinos aliados assim que saíram daquele castelo sob os olhos de todos aqueles guardas – advertiu Yuki.
- Não acho que importe muito agora – observou Cavian.
- Bom, já derrotaram um dos seus generais e invadiram o castelo de outro, isso estando em uma equipe tão pequena – observou Yuki. - Garanto que as coisas estão tomando proporções maiores do que eles imaginaram, ainda mais agora que saberão que estão comigo.
- Apenas para complementar, se ficarem muito tempo aqui não demorará muito até encontrem vocês e a mim – Acrescentou Sirius.
- Não é nosso plano – revelou Yuki. - Melgar talvez seja uns dos mais hábeis ferreiros com os quais poderíamos contar, nossas melhores chances serão com ele. Não haverá como Shasak nos seguir quando submergirmos naquela extensa superfície próxima daqui.
- Concordo com Yuki, se tivermos alguma chance de alcançar aquelas águas estaremos salvos por hora, mas pelo que me lembro dos mapas, a distância até lá seria grande demais para percorremos a nado e conseguir um barco em tão pouco tempo provavelmente seria difícil ainda mais na situação em que estamos. Mesmo que consigamos sobreviver tanto tempo fora da terra firme, a privação de sono e a desidratação fariam com que perecessemos em poucos dias – disse Mika.
- Exato – disse Yuki. - De fato há muitos problemas a serem resolvidos, inclusive o fato de um reino fechado a tanto tempo aceitar sem concessões estrangeiros como nós, mas nunca foi minha ideia sair nadando até que chegássemos lá.
- A floresta! – exclamou Narthus surpreso com sua possível descoberta. – Você consegue falar com eles, não é?
Yuki sorriu desconcertada.
- O suficiente para que tenhamos um caminho seguro até nosso destino. Agora mostre-me o que vocês têm.
Rixi
O vento inclinava as palmeiras próximas da praia, que oferecia como única resistência seus pequenos moradores que escavavam o solo para se esconder até que a próxima onda os revelasse.
Em fila indiana seguiam pela lateral do pequeno riacho que corria pelo desfiladeiro, indicando o caminho mais próximo ao mar. Yuki seguia na frente acompanhada de Sirius, Cavian, Mika e por último Narthus, que carregava Rixi nos ombros como de costume. As pontas soltas de suas velhas roupas haviam sido amarradas com algumas cintas de couro para que o atrito da água não se somasse aos outros indesejáveis obstáculos que já os acompanhariam.
Sirius parecia ter aceitado sua condição temporária e novos eventos não haviam acontecido desde então. Talvez por medo de Yuki ou pelo simples fato de não ter havido até aquele momento novas oportunidades. A justificativa não importava de qualquer modo. Mantê-lo próximo era a melhor forma de garantir a segurança de todos.
Já na praia, Yuki se agachou e afundou ambas as mãos na água, assobiando baixinho com um aviso sutil de sua chegada. Continuou por mais três vezes até que pequenas barbatanas alaranjadas sinalizassem no horizonte. Yuki estava surpresa de sequer ter visto sinais de qualquer exército, nem pegadas apagadas na areia, mas talvez nem todo o exército pudesse cobrir todo aquele litoral. De qualquer forma, sair tão tranquilamente era algo que a deixava desconfortável, já que em muitas vezes facilidades eram o esconderijo perfeito das mais engenhosas armadilhas e lá no fundo a mente desconfiada da Aquiriana fazia questão de relembrá-la disso a cada segundo que se passava.
- Nossa carona chegou! – disse Yuki se virando para todos e lançando pequenas contas avermelhadas. – Comam! Os manterão aquecidos até lá – ainda que ela própria não ingerisse qualquer uma delas, posicionou o respirador na boca se virou para o mar e mergulhou entre as ondas que se quebravam.
- Tem certeza que é uma boa ideia? – questionou Rixi, vendo Sirius mergulhando na água logo em seguida.
- Bom, desde pequeno sempre perdi ao questioná-la, não seria um bom momento começar agora – brincou Cavian, erguendo os ombros antes que repetisse o gesto da irmã.
- Cada vez mais penso que talvez minha vontade tenha falado mais que minha razão quando decidi segui-lo – retrucou ela, agora com Mika adentrando ao mar.
- Não seja tão dura, Rixi, desde que vi Cavian, nunca pareceu tão feliz e a felicidade traz o vento dos bons presságios.
- Ahhh.. – disse ela franzindo o nariz. - Nada como uma boa dose do nosso querido anjo salvador para me convencer a entrar nessa água gelada – disse ela ingerindo um pedaço da conta e se amarrando entre as fitas de couro e as roupas do gigante, que foi o último a sumir no mar.
TERRENOS DE AQUIA
Cavian
Entre escamas e penas não havia diferenças quando se tratava de conhecimento. Era o dogma sagrado daquela civilização, tanto que os livros eram cultuados como se fossem a extensão dos próprios deuses de outrora, afinal, eram nas páginas envelhecidas pelo tempo que passaram a viver desde a antiga era. Não à toa eram admirados e temidos pelos demais povos. Aqueles que ali viviam evitavam a partilha do que semeavam com tanto cuidado e a autossuficiência lhes colocava em uma situação na qual as alianças eram escolhidas e nunca impostas.
- Por que não consigo, Yuki? Por que não sou como você e os outros? – disse Cavian com as novas marcas que trouxera da escola, a famosa Caleum, enquanto se agachava abraçando as canelas franzinas expostas pela bermuda de tom empoeirado, o mesmo que se replicava entre os uniformes dos alunos e dos soldados. Um dos joelhos parecia ter sido esfregado contra o chão áspero enquanto os lábios inchados ainda encontravam certo esconderijo sob a cabeça baixa e os cabelos azulados que pareciam se digladiar de tão bagunçados.
- Outra vez? – resmungou Yuki, enquanto escorava o ombro em um dos pilares que circundavam o jardim do meio. O interior do castelo de Rozan ostentava um belo parque adornado por pequenas flores diminutas de cores escassas e habitado pelos poucos que tinham o prazer de contemplá-lo. Era onde também ficavam as estátuas dos dragões que não voavam mais pelos céus, tão grandes quanto suas próprias formas ancestrais, que se estendiam por metros e repousavam sobre o gramado de folhas finas delicadamente aparadas.
- Você precisa conversar com eles. Da última vez que passou por lá... Bem, eles ficaram quietos por um tempo – disse ele choramingando.
Yuki sorriu.
- Algum motivo nobre pelo menos?
- Eles disseram que eu deveria voltar lá pra baixo onde é meu lugar.
- Como suspeitava... Um motivo idiota. Fui da outra vez porque tinha protegido aquele menino, mas nesse caso, toda vez que apanhar por algo assim vou fazer questão de não me envolver. Você não pode sair brigando por aí toda vez que se chatear, Ian, não é a postura que esperam do futuro rei.
- Sua egoísta... É fácil falar sendo você. – resmungou em um sussurro, enquanto Yuki se calara por um momento, encarando-o com indiferença. – Ei, Yuki, Me desculpe... Não foi o que quis dizer... – disse arrependido.
Ao contrário de Cavian, Yuki sempre carregara consigo a aspiração de liderar seu povo, mas ainda que fosse a primogênita do rei dos dragões, as leis de Aquia permitiam somente que os filhos homens participassem da linha de sucessão. Tudo que Cavian gostaria era de poder trocar de lugar com ela, o desejo intenso que ela carregara consigo era o mesmo fardo que o sufocava, os lados distintos de um muro intransponível para ambos.
Yuki riu.
- Vê? Você tenta me tratar como se eu fosse como você, mas é verdade é que eu não ligo pros seus choramingos, faísca... Não me importo com o que os outros pensam... Só o que me importa é o que me deixam ou não alcançar.
- O que tentei dizer... Nem eu mesmo sei explicar... Eles te respeitam, Yuki... Não te dizem essas coisas todo santo dia, é como se eu fosse incapaz de fazer qualquer coisa, entente? Nem o papai confia em mim. Se eu mostrar isso a ele, é capaz de eu ter que ouvir mais um dos seus sermões.
- Lembre-se das licões que aprendemos todos os dias Ian! Vê aquela montanha? Até ela sucumbiu diante de nossas pequenas mãos. Se deixar que seus inimigos saibam de suas fraquezas, por mais poderoso que seja, não terá qualquer chance de enfrentá-los – alertou Yuki em tom professoral.
- E quando eles já sabem?
- Sabem o que? Que você é um terreno?
- Sim, um pedaço de mim, talvez um grande demais...
- E por que se envergonha?
- Por que dificilmente vão respeitar alguém que tem o poder de soltar faíscas das mãos? - disse ele estalando os dedos. - O máximo que posso fazer é derrubá-los aos risos.
- Bom, se lhe serve de consolo, quando era menor, a única coisa que eu conseguia fazer era esfriar uma xícara de chá, mas mesmo que possa aprimorá-lo com seu esforço, o respeito não tem nada a ver com isso. Pense bem, irmãozinho, se sua teoria estivesse correta, por que me respeitariam se nunca encostei qualquer dedo neles? Isso aqui – disse Yuki tocando o indicador em sua testa enquanto ela se agachava. – É ainda mais importante do que ser capaz de ganhar uma briga. Você será nosso rei, mostre a eles que não tem medo, que quem eles devem temer é você.
- E se eu não conseguir?
- Só aceito essa desculpa quando passar a se esforçar mais do eu – disse Yuki se despedindo, esfregando carinhosamente a mão sobre seus cabelos. - Está quase na hora da minha aula. Conversamos depois.
Cavian
No intervalo, Cavian se sentava sozinho sobre a plataforma de pedra quadrada de bordas arredondadas, usadas justamente para promover as atividades ao ar livre. Várias delas eram espalhadas pelo campo de grama baixa ao redor dos prédios pedregosos que compunham Caleum. O símbolo do dragão abraçando as pequenas e delicadas penas estampado atrás de seus pés suspensos revelara, além do cuidado com cada pequeno detalhe que os circundava, o pensamento da maioria dos Aquirianos, a de que os dragões, como seres divinos, carregavam o legado de Iscalon, o deus dos ares, fazendo com que as palavras que saíssem de suas bocas tivessem praticamente o mesmo valor do que as palavras esboçadas pelo seu próprio criador.
- E aí? Conversou com ela? – disse Egen repentinamente. Ele nem havia percebido sua chegada sorrateira. Seus pensamentos estavam ainda na conversa que tivera com sua irmã naquela manhã. Parecia ser certo, mas parecia também ser demorado demais. Ainda tinha dúvidas do que restaria dele ao final daquela longa jornada.
- Ela não vai ajudar – revelou entristecido.
- Viu? Eu disse – exclamou Egen entusiasmado pulando contra a mesma plataforma e se sentando ao seu lado.
- Mas ela está certa, tenho que me esforçar mais. Assim daqui um tempo farei com que parem de me incomodar.
Egen riu.
- Há coisas na vida que não dependem de nós, meu amigo. Yuki é um pouco paranoica demais, apenas esqueça isso.
- Mas se eu treinar mais do que ela...
- Cavian, você será o rei. Ninguém te culpa por ser o mais fraco de todos nós. No fim, o que importa é que nasceu com o dom mais valioso de todos, o dom da sorte. É você que se sentará naquele trono um dia, e por mais que queiram estar no seu lugar, por maior esforço que qualquer um possa fazer, inclusive ela, nada irá mudar.
- Não gosto de ser assim.
- Meu caro amigo, não há ambição ou dedicação que supere o poder de um bom exército, veja os dragões que se foram, vários deles por criaturas insignificantes. Esses mesmos que fizeram isso com você, amanhã se ajoelharão diante de seus pés. Se eu fosse você inclusive marcaria o nome de cada um deles, para que possam passar alguns dias pendurados no fosso das lamentações – disse Egen, rindo, antes de mordiscar uma maçã que tirara do bolso.
- Não tenho vontade de fazer isso.
- Então não faça, como rei você terá o poder de fazer o que quiser.
- E se eu decidir que Yuki irá nos governar?
- Bom, quase tudo. Talvez seja tão sortudo quanto burro. Tanto poder em mãos e querendo dar pra sua irmã que nem se importou em te dar proteção contra aqueles brutamontes. O que ela faria como rainha? Daria um prêmio a eles a cada surra que te dessem?
- Ela tem os motivos dela.
- Que seja, mas sabe como são os homens pássaros, eles respeitam nossos pais, mas nós não somos bem o que eles desejariam para o futuro do reino. Qualquer decisão que pareça estranha vinda de você poderia ser questionada e gerar um colapso em todo reino, um conflito entre aqueles que concordariam e os que discordariam de sua decisão e você sabe tanto quanto eles que um reino dividido é um reino fadado ao fracasso. Bom, posso não ser um especialista no assunto, mas acredito que não seja o que quer.
- Sim, eu sei.
- Tome cuidado com os conselhos de Yuki, Cavian, todo mundo sabe que ela sempre quis seu lugar. Faremos o seguinte teste, ela deu sua visão sobre as coisas e eu darei a minha, deixe que o tempo te mostre quem está certo. Amanhã mesmo vou dar um jeito naqueles idiotas, fique tranquilo que eles não serão mais um problema.
- Jura?
- É o que os amigos fazem, não é?
Ele sorriu de uma forma tão aliviada, que mal conseguia conter a alegria que sentia. Aquele parecia um caminho bem menos doloroso que o primeiro, ainda que parte dele se importasse com as palavras de sua irmã. Você é burro, Cavian? Egen está certo, não tenho tempo pra fazer o que Yuki diz, pensou ele, ainda remoendo as palavras que Egen havia acabado de dizer. Por que Yuki não o defenderia? Ela poderia se quisesse.
Yuki
As torres esculpidas em pedra perolada eram quase como jóias andando pelo tabuleiro lustrado. No meio da semana, o encontro marcado entre a sabedoria e a entusiasmada juventude ocorria no salão principal do castelo que abrigava os dragões desde a antiga era. O antigo quartel general não mudou muito desde lá. Era um consenso até mesmo de Melin que não se gastasse tempo com futilidades, afinal, preferia gastar o pouco que tinha cuidando do que lhe importava mais.
- De forma alguma, desde que se sinta confortável com isso. Sua avó costumava dizer que a única maneira de atingir a perfeição é se dedicando àquilo que você mais ama.
O teto de vidro da torre no ponto mais alto fazia com que a luz do sol se espalhasse pelas paredes brancas, iluminando até o canto mais distante.
- Enfrentar seu pai não adiantará nada, Yuki, ele nunca mudará de ideia – disse Melin movendo o cavalo branco à frente de um dos peões. Vestia-se elegantemente, como de praxe, com um vestido branco de detalhes finos bordados em prata, assim como a presilha em seu cabelo que se abria em galhos de pontas multicoloridas. Nem tamanho cuidado era mais chamativo que a beleza da rainha de cabelos brancos, inclusive não eram raros os boatos de que nem mesmo o mais poderoso dos dragões teria sucumbido aos encantos da única herdeira do trono do reino humano de Landris.
- Sei disso, mamãe, mas se eu não continuar dizendo isso para mim, por qual motivo levantarei minha cabeça de manhã? – disse Yuki sem tirar os olhos do tabuleiro, movendo sua torre uma casa à frente. Já havia perdido as contas de quantas vezes enfrentara sua mãe, ainda que fosse impossível vencê-la. Os jogos com Bacus eram seguramente mais confortáveis aos seus pensamentos, mas ali, por mais competitivo que pudesse parecer, a vitória pouco importava, pois era onde suas ideias que borbulhavam das reflexões mais desatinadas poderiam encontrar um abrigo seguro para que as boas sementes pudessem florescer.
- Você ainda é muito jovem pra entender isso, mas reinados não se fazem só com reis, minha pequena... Há tantas camadas que os compõem, transitar entre elas é um papel ainda mais difícil e importante, um que exige um nível de sutileza e frieza que seu irmão dificilmente conseguiria exercer – destacou Melin enquanto o bispo avançava sobre o rei, retirando do tabuleiro o peão que o protegia.
- A senhora acha sinceramente que eu seria a melhor opção... Digo, caso eu pudesse?
- Em alguns anos seria sem sombra de dúvidas a rainha mais vitoriosa que a história de Aquia já ousou ter. Não haveria nenhum inimigo à altura, ninguém levaria esse povo a caminhos tão prósperos ou seria tão lembrada pelas páginas lidas pelos olhos que sequer nasceram...
Yuki sorriu timidamente, enquanto sua torre avançou sobre o bispo que atacara o rei.
- Sabe, mamãe, queria ter a serenidade que a senhora tem, parece tão fácil ser quem é, mas foi difícil, não? Ter casado com o papai para salvar seu povo?
- Parece que seus ouvidos têm escutado coisas além do que deveria, senhorita, espero que não seja obra das aulas de Bacus – disse Melin calmamente movendo a torre ao final da trilha, novamente ameaçando o rei, que a capturou em seguida sacrificando sua própria torre. O movimento do cavalo de Melin não só havia feito seu trabalho como colocou Yuki em posição de sacrifício de sua própria rainha, a única ainda presente no tabuleiro.
- A culpa dele é ter me dado acesso a todos aqueles livros, mas tirando esse fato, é uma situação óbvia, mamãe, um reino financeiramente fragilizado com a guerra e a perda do poderio dos dragões após o tratado, parece ter sido a escolha perfeita pelo que li naquelas páginas.
Melin apertou os olhos e a encarou com um sorriso.
- Tanta perspicácia para uma mente tão jovem, tome somente cuidado para não chegar a soluções precipitadas, mocinha. Como nesse tabuleiro, devemos sempre fazer o melhor dentro das possibilidades que temos em mãos... É exatamente assim que a política funciona.
- Mesmo que isso vá contra aquilo que desejamos?
- É o que um povo espera de seus líderes. Eu tive minha escolha. Seus avós não impuseram a mim que eu fizesse o que fiz, mas entre meu querer e os sonhos de milhares de outros, acabei tomando a escolha mais óbvia.
- Acha que o papai se sacrificaria pelo povo de Aquia? – questionou tentando pensar em um movimento que pudesse fazer naquela situação, aparentemente um único movimento de torre, a última que lhe restava, contra um simples peão.
- Bom... Essa conversa já foi longe demais. Acredito que esteja se preocupando com o rei errado – alertou Melin movimentando seu rei contra o ataque da torre. O derradeiro movimento demonstrava que não havia mais saída para o exército das pretas.
- Ahhh... – resmungou ela franzindo o nariz e se levantando com a mão no queixo. – Por um momento achei que fosse finalmente ganhar quando me deixou aquela rainha.
- Uma armadilha, minha pequena, confesso que sutil. De qualquer forma nunca esteve tão perto, minha sorte ainda manterá minha hegemonia pelo menos por mais um dia – brincou Melin servindo uma xícara do chá de louça azulada, enquanto o aroma de hibisco tomava o ambiente.
Ela riu, enquanto caminhou e finalmente se sentou sobre um dos braços da poltrona de sua mãe.
- Sei, sei, mamãe, sabe de uma coisa? A cada vez que venho aqui com a senhora, sinto cada vez mais que estamos em um grande jogo. Não seria muito mais fácil se eu e Cavian pudéssemos simplesmente trocar de lugar?
- A lição que aprendi com seus avós é que os deuses nunca deixam confortáveis aqueles com algum propósito, afinal, seria impossível que aprendessem as lições necessárias para alcançá-lo – disse Melin enquanto saboreava suspirosamente o gole de chá. - Veja a situação que colocou por exemplo. Por qual motivo você e Cavian precisariam um do outro se estivessem do lado que gostariam de estar? O futuro do reino só terá prosperidade como deseja, se ambos estiverem dispostos a lutar para que isso aconteça, ou seja, de algum modo, por mais tortuoso que pareça sob nossos olhares, o caminho que temos à nossa frente carrega suas virtudes. Se encararem as dificuldades como um fardo, não atingirão nada além de murmúrio e tristeza. Se agirem da forma contrária, tenho certeza que os arrependimentos não os farão companhia. Eu por exemplo, não trocaria vocês dois por qualquer vida que gostaria de ter tido um dia – finalizou Melin arrancando um sorriso de seu rosto e um inusitado abraço quente e apertado de seus braços.
Fora um dos únicos que dera à mãe e lembrara de cada um deles. Yuki não os fazia por um fruto da vontade e sim pela justiça da razão. Não tinha qualquer dúvida de que sua mãe soubesse também, mas os sorrisos orgulhosos de Melin à filha não se davam pela mascarada ausência do dom mais básicos dos humanos, ironicamente o mais instintivo de todos eles, mas pela busca, pelos caminhos que a pequenina tinha, de emular da maneira mais doce que conseguira, a única coisa naquele mundo que talvez Yuki nunca viesse a entender. Ainda assim, as preces eram entregues aos velhos deuses, para que a pequenina em algum momento de sua vida, seja por um instante, pudesse partilhar de qualquer resquício da mais sublime de todas as dádivas, uma que ela se pudesse dividir em seu peito em quantas partes quisesse, sequer lhe faltaria.
Cavian
Cavian, em seu uniforme habitual e já encharcado pelo suor, brandia a espada de madeira perto de um dos jardins sobre os penhascos, à beira das montanhas de Jizu. O lugar exibia algumas das características daquele lugar tão peculiar. A força da correnteza formada pela neve que derretia ao topo das rochas íngremes, fazia com que sobre os pés de cada penhasco alguns lagos fossem formados. Era ali no fim de seu curso que os jardins entre as montanhas surgiam. Vários deles em diferentes alturas, fazendo com que a natureza abraçasse a montanha da maneira mais harmoniosa que só ela poderia encontrar.
Ele percebeu quando um dos pequenos grows translúcidos de Yuki transpassou uma da copa das árvores, anunciando sua chegada. Ela podia ver por meio dos olhos gélidos da criatura mágica, o que era de algum modo assustador.
- Que bom vê-lo assim, meu irmão, vejo que meus conselhos foram de alguma serventia – disse Yuki aparentemente animada com a situação que encontrara.
Ele se manteve em silêncio.
- Não é perigoso ficar sozinho aqui? Esses penhascos não são muito monitorados. Bacus estava preocupado com você – alertou Yuki.
- Egen está comigo – disse ele secamente apontando para o lago rapidamente antes de continuar a movimentar a espada.
- Ah, sim, o boca aberta do Egen...
- Pelo menos ele me defendeu daqueles malucos.
- Ele começou a falar e eles não aguentaram, acertei? - debochou a princesa.
Ele franziu o cenho, continuando a cortar o ar, enquanto Yuki dirigiu a pequena criatura de gelo ao espelho d’água à sua frente. No momento seguinte em que ele tocou a superfície e se dissolveu no ar, Egen submergiu. Já estava ali há quase uma hora antes que a água esfriasse repentinamente. Era o único descendente dos dragões que partilhava da habilidade peculiar dos Aquamarinus, o que lhe rendera certo prestígio junto aos homens-pássaros que tratavam aquele povo como seres tão superiores quanto eles próprios.
- Ei, Yuki... Qual a necessidade disso? – disse Egen com os lábios arroxeados enquanto tremia o queixo, fazendo com que tivesse que porcionar suas falas.
- Cavian me ignorou por sua causa, achei que seria uma boa te tirar da sua formidável meditação.
- Bom, deveria me parabenizar por fazer o seu trabalho, não?... Achei que sujaria suas mãos pelo seu próprio irmão... Mas infelizmente acabei me enganando – ironizou Egen esfregando as palmas das mãos nuas junto à boca risonha.
- Deixa eu adivinhar, você fez parecer que o ajudou, mas na verdade quis uma oportunidade para aparecer para que todos vissem o quanto você é extraordinário – retrucou Yuki.
- Realmente não entendo o que fiz pra você, mas deveria se preocupar mais com sua família. Eles parecem um pouco distantes, talvez por esse seu jeito um pouco hostil de lidar com as pessoas que nunca fizeram nada a você? Ou por não partilharem do modo com que deseja alcançar seus objetivos? Ainda estou tentando descobrir – disse Egen finalmente saindo da água enquanto se chacoalhava, vestindo unicamente uma calça de couro amarronzado colada às próprias pernas.
- Chega, Yuki! – esbravejou ele finalmente a dando atenção. – Estou fazendo o que me pediu, não estou? Está contente agora? Mesmo sendo o mais fraco de nós, darei um jeito de me defender sem a sua ajuda.
- Não te acho fraco de forma alguma, Ian...
- Tudo bem, já entendi – interrompeu ele em mesmo tom. - Você tenta me animar com seu discurso, mas no fim é o que pensa também – continuou enquanto não viu o deboche na expressão de surpresa que Egen direcionara à sua irmã.
- Eu nunca menti na minha vida, Ian. Não sei o que te faz pensar que tenha algum tipo de privilégio, mas se foi por causa disso que decidiu vir aqui, talvez não seja de todo mal esses seus pensamentos ridículos.
- Egen tem razão, você só se preocupa com os seus próprios interesses – retrucou ele finalmente se voltando para ela.
- Ah, meu irmão – suspirou Yuki. - Às vezes você é tão inteligente quanto o pedaço de madeira que está sem suas mãos, sabia? Além disso, pense o que quiser, minha única missão era te encontrar. Da próxima vez seja mais cuidadoso e avise alguém pra onde vai, não sou sua babá para ficar te procurando toda vez que decide sumir por conta própria – advertiu sua irmã, enquanto procurava algo na bolsa de couro que carregara consigo.
Não precisam se preocupar, o reino não sentirá minha falta, pensou ele embainhando a espada.
- Mais alguma coisa, Yuki? – questionou ele secamente.
– Sim, tome isso – disse Yuki entregando uma pequena esfera de vidro nas mãos de Cavian, enquanto recitava um pequeno feitiço. – A transferi pra você, Bacus disse que brilhará quando estiverem próximos. Assim que o sol se pôr, ele pediu para que a gente o acompanhe até a sala dos tesouros.
- Finalmente – exclamou Egen enquanto estendeu uma de suas mãos, esperando que Yuki entregasse sua esfera de sinalização.
- Quer ir? Se certifique que Cavian esteja lá – debochou Yuki enquanto retrucava a ironia de outrora com um sorriso sarcástico. – Boa sorte, meninos! – exclamou Yuki antes de partir, enquanto ele percebia os olhos inflamados do amigo.
Cavian
- Qual a primeira regra de nosso exército? – bradava Nymo, o mais poderoso general dos exércitos Aquirianos. Era dele o papel de treinar os pequeninos ao menos uma vez a cada mês na arte da guerra. As penas negras que cobriam seu corpo roubavam o brilho do bico acinzentado. Aliás, era incrível como um ser de porte tão pequeno impunha tanto respeito. O raro caso de um pássaro que sequer podia alcançar os céus sem dúvidas despertaria olhares desconfiados entre seus pares, mas não era o caso ali. Os mesmos olhos que poderiam subjugá-lo presenciaram as vitórias do pequeno general sobre oponentes que nenhum deles ousaria desafiar. O homem que despertara pesadelos em seu nome nos pés daquelas montanhas ostentava uma farda pálida, abrilhantada somente pelas medalhas que carregava consigo e pelos olhares de admiração.
- Não recuamos perante a morte! – respondiam em uníssono os pequenos aprendizes vestidos com seus quimonos igualmente pardos.
Mesmo que já tivessem se passado algumas horas, os movimentos das espadas de madeira de cantos arredondados, assim como as palavras que ecoavam pelo amplo salão, dançavam no ar como se fossem uma só, ainda que fossem minimamente corrigidas pelos olhares hábeis de seu mestre que andava silenciosamente pelas alinhadas fileiras. A ninguém era permitido olhar ao lado, afinal, eram os próprios defeitos que buscavam corrigir ali.
- O medo é o mais perigoso soldado do inimigo. A segunda? – questionou o pequeno general novamente.
- A glória será de todos nós ou não será de nenhum de nós! – responderam novamente.
- Pilares fracos derrubaram até mesmo os maiores impérios, não há terceiro caminho, senhores e senhoritas, ou cairemos juntos ou compartilharemos os louros da vitória. A terceira?
- Conhecemos nosso inimigo como a nós mesmos!
- É no conhecimento que repousa o triunfo. O mais poderoso ataque é aquele que atinge a maior fraqueza. A quarta?
- Não erramos ao acaso!
- A fraqueza potencializa a arrogância, a desorganização a imprudência e a descrença a euforia. Garantam que nossos inimigos vejam o que parecem ser e nunca o que realmente são. Agora a quinta e última?
- Somos os senhores do tempo!
- O guerreiro sábio é aquele que sabe quando lutar e quando esperar. Deixe que seu inimigo perca o controle sobre suas ações, assim sua derrota será tão certa quanto a própria morte.
Um dos soldados caminhara em direção a Nymo, sussurrando ao seu ouvido. Era um homem-pássaro muito maior do que ele, fazendo com que precisasse se ajoelhar para que pudesse repassar a informação. A armadura de aço brilhante ostentava em sua fronte o símbolo de Aquia com traços tão robustos que era possível tateá-lo com os olhos. Até mesmo as longas asas em penas escuro azuladas, que refletiam o sol como a superfície dos lagos entre as montanhas, eram cobertas ainda que muitos preferissem a liberdade à proteção.
- Continuem esses movimentos até a minha volta – ordenou Nymo antes de se ausentar.
- Obrigado, meu senhor, pelo outro dia - sussurrou o franzino menino-pássaro. - Meu nome é Garuda, moro no distrito doze e sou filho de Asmus Stirik, que serviu seu pai na guerra. Ele era uma pessoa muito honrada, meu senhor, tenho inclusive a medalha que seu pai deu a ele pouco antes de dar a vida por nosso reino.
- Fico feliz por você, meu amigo, mas não precisa me chamar de senhor. Quanto a seu pai, tenho certeza que seu pai deve ter orgulho de você – disse Cavian encabulado. Os que dirigiam palavras a ele geralmente não o faziam com um tom gentil.
- Senhor, na verdade, vim para alertá-lo. Vi seu irmão conversando com os meninos do outro dia. Eles virão novamente. Inclusive se encaminham para cá. Se o senhor correr, posso dar cobertura, posso atrasá-los para você – revelou Garuda, erguendo-se sobre os pés enquanto olhava inquietamente por mais de uma vez por trás de suas costas.
- Não se preocupe...
- Foi pedir ajuda para o Egen te livrar, é? Não consegue resolver seus próprios problemas? – repreendeu Malfien chegando até eles. Os mesmos que o agrediram no outro dia, seguiam-no como hienas na numerosa alcateia que se formava, e mesmo para uma criança, a imponência da presença do filho mais novo do governante de Aquia era sem dúvidas digna de um rei. O ouro no jovem corpo atlético era espalhado pelos anéis em seus dedos e pelo brinco de haste lisa na orelha direita – Saia daqui, bolo de penas – continuou empurrando Garuda, que caiu ao chão, onde permanecera sem reagir. – Acha mesmo que vai conseguir comandar um reino?
- E você acha que tenho medo de você, Malfien? – respondeu Cavian firmemente. – Você se engana se acha que vou desistir de algo por sua causa.
Malfien gargalhou.
- Para ser sincero, acho que você se borra de medo, irmãozinho. Aqueles do outro dia foram só aperitivos do que está por vir. Minha ideia era que conseguisse derrotá-los, mas infelizmente eu superestimei você. Você não passa de um pedaço de lixo como sempre desconfiei.
- Ei, Malfien, por que não dá o fora daqui? - interviu Yuki que havia acabado de chegar. - Nymo pode voltar a qualquer momento. Acho que ele não gostaria de encontrar você fazendo confusão.
- Bom, acho que você é esperta o suficiente para saber que ele não voltará tão brevemente, não é? Não vá me dizer que errei de avaliação por duas vezes nessa semana – debochou Malfien.
- Acho que sua mãe anda mimando você demais. Sabe... Não acredite em tudo que ela fala, você não é nem metade do que acha que é – retrucou Yuki.
- Deixe, Yuki, deixe ele fazer o que quiser, eu não ligo mais... – disse ele, ainda que suas palavras não transmitissem confiança sequer para ele próprio. Malfien era claramente mais forte, mais alto, mais confiante e mais preparado que ele. Disso nenhum dos presentes teria qualquer dúvida, inclusive ele próprio.
- Isso, Yuki, volte para seu lugar e continue fazendo suas gracinhas de gelo – debochou novamente Malfien.
- Não deixarei que ele te faça algo, não nesse caso – respondeu Yuki se voltando para os olhos descrentes de seu irmão.
- Eu mesmo mostrarei a ele o porquê de ter treinado, Yuki... Você sabe que estou mais forte. Por qual razão pediu para que eu fizesse tudo que fiz?
- Cavian, eu concordo com Yuki, é uma insanidade tentar lutar contra Malfien, você seria facilmente esmagado – sussurrou Egen sorrateiramente sobre seus ombros.
- Cale a boca, Egen – repreendeu Yuki.
- Se afastem todos, o nosso nobre rei irá enfrentar seu pequeno irmão pelos direitos ao trono de Aquia – celebrou Malfien a todos à sua volta, ainda que o único valor do confronto fosse moral.
Como ordenado, um círculo se abriu ao redor deles, desde aqueles que se afastaram por medo até os que desejavam o caos, todos os olhos de uma forma ou de outra, pareciam torcer pelo que estava por vir.
- Cavian, não entre nessa, me escute – aconselhou Yuki segurando os ombros do irmão. – Te incentivei a treinar para que perdesse seus medos e não para continuar brigando como fazia. Já disse que não deixarei que ele encoste qualquer dedo em você.
- Não terei você sempre ao meu lado, Yuki. Você sabe disso. Se você não me acha mesmo um fraco como diz, me deixe lutar.
- Hmm... – resmungou Yuki franzindo o nariz. - Você é um cabeça de vento mesmo, mas tudo bem. Se provar é um motivo justo, não nobre, mas justo. Pelo menos lembre-se do que te disse. Os ataques de Malfien são poderosos, mas são desleixados. Sua arrogância sempre acaba deixando uma brecha em sua defesa – sussurrou ajeitando seu quimono. - Lembre-se dos ensinamentos de agora pouco – continuou a princesa antes que deixasse o caminho livre.
Cavian sacou sua espada de madeira e deu alguns passos em direção ao centro vazio. Os demais os cercavam arqueadamente, observando ansiosos pela batalha que estavas prestes a iniciar.
Malfien partiu para cima dele como Yuki previra. Os choques retos entre as madeiras ecoavam pelo silêncio dos olhos que atentos que sequer piscavam. Os ataques seguidos de Malfien o empurraram até que ele se chocasse contra a parede de pessoas que os assistiam. Foram os braços do público inclusive que o empurraram de volta ao centro enquanto Malfien lhe dava as costas, girando a espada em uma das suas mãos. Certamente não queria só vencê-lo, queria fazer com que ele implorasse para que aquele dia fosse apagado de sua existência.
Esperou Cavian recobrar a postura e atacou outra vez, em um ataque ainda mais veloz. O primeiro golpe foi defendido, o segundo também, mas Malfien avançou rapidamente pela lateral e surpreendendo sua reação, acertou o cabo da espada entre suas costelas, fazendo com que o ar que faltou em seus pulmões jogasse seus joelhos ao chão.
- Vamos, futuro rei, mostre ao seu futuro exército como os comandará nas batalhas que virão – ironizou Malfien enquanto o contornava. Não havia qualquer dúvida sobre a diferença de nível de poder entre os dois. A sua única vantagem era saber que ele o atacaria assim que se levantasse e por isso aproveitou o tempo ainda desorientado para que pudesse respirar enquanto podia.
Quando se levantou, levou a espada novamente a sua fronte como se preparasse para se defender, mas dessa vez seus pés deram um passo atrás. Malfien meneou a espada no vazio enquanto Cavian avançou. A guarda aberta era sua chance. A fraqueza potencializa a arrogância, pensou por um momento nas palavras de Nymo como Yuki o tinha orientado. Provavelmente Malfien tinha a certeza de que ele nunca o atacaria e foi sua displicência que criara a abertura que Cavian precisava. A espada voltou contra Cavian, mas era somente o que havia sobrado do primeiro ataque. A empunhadura reta de sua espada com a ponta direcionada ao chão foi mais que o suficiente para amortecer o golpe, enquanto os dedos esticados da outra mão alcançavam a garganta de Malfien com precisão. O golpe fez com que Malfien finalmente recuasse com alguns passos para trás. A tosse seca e a mão na garganta indicavam sua pequena conquista, o que fez com que esboçasse um sorriso enquanto a euforia tomava conta de seu peito. Havia o acertado, finalmente, sabia que Malfien não era nem de longe um oponente qualquer, um provavelmente tão forte quanto Yuki e naquele pequeno espaço de tempo sentiu, ainda que de forma tímida, que talvez existisse alguma chance de vencê-lo.
Foi quando Malfien avançou mais uma vez, recobrara a postura a tempo de se defender. Mas o som da madeira não ecoou como das outras vezes. A força que exerceu o fez sentir que estava parando um aríete e não uma simples espada de madeira. Já se preparava para defender o próximo golpe, quanto Malfien levou a sola de seu pé contra seu peito e o jogou ao chão, mas diferente das outras vezes, seu irmão não se conteria. Malfien partiu como um leão contra a presa abatida. Os dedos da espada que avançava sobre ele pressionavam o cabo com tanta avidez que era possível vê-los espremidos e sedentos para o próximo ataque. Sua espada ainda o protegeu pela última vez antes de se partir, assim como o pouco de confiança que ainda carregava consigo. O próximo movimento seria seu fim. A certeza refletida pelos olhos satisfeitos e risonhos de Malfien percorreram sua mente um estalo. Quando suas mãos protegeram sua face exposta, teve a impressão de que o tempo havia parado.
Quando voltou a olhar, havia mais uma espada entre eles, a de Yuki, ainda que nenhum som tivesse sido emitido. Era como se ela tivesse amortecido o golpe com um travesseiro. Não seria possível entender algo que o medo o privou de enxergar.
- Acho melhor você não se meter, Yuki, vai acabar perdendo sua fama por aqui. Olhe em volta, não há mais ninguém para te proteger.
- Bom... Eu gosto de arriscar – provocou Yuki afastando a espada de Malfien, que recuou. Ela girou a espada em uma das mãos, posicionando-a atrás de si, enquanto a outra mão era estendida em sua frente com a palma voltada para o céu, uma arte de espada que se parecia mais com a dança antes da música. Ele se afastara para acompanhar de pé o que viria a seguir.
O primeiro ataque de Malfien foi desviado com um leve passo ao lado. A ponta da espada a perseguiu novamente, mas por mais uma vez ela desviou com um giro acrobático ao lado. A cada novo erro os ataques furiosos de Malfien se tornavam ainda mais intensos, em um ritmo que os olhos de Cavian mal podiam acompanhar. Até então Yuki sequer havia movido sua espada. Por um momento era como se fizesse parecer que nem precisasse de uma. Sutilmente a respiração de Malfien já não era a mesma de outrora, ainda que o sangue colérico lhe fluísse pelo olhar. Malfien provavelmente havia se arrependido de desejar um espetáculo. Não era somente o resultado da batalha, sem que acertasse nenhum golpe, era como se ela já tivesse vencido. A incapacidade era latente na face do filho mais novo de Bahamut. Ele nunca havia visto eles lutarem e agora pôde entender a razão, Malfien era sem dúvida temido por todos, mas Yuki era tão soberana como o general que os guiara minutos atrás, ela o envolvia sem qualquer esforço, uma guerreira nata contra um mero aprendiz.
Malfien girou para trás em uma cambalhota no ar. Quando alcançou o chão, estendeu uma das mãos para trás e fez com que o ar girasse sobre a palma de sua mão ardendo em chamas, uma esfera de fogo e caos se formou, fazendo com que a plateia se afastasse quando o bafo quente os alcançou.
A magia era proibida entre os pequenos, pelos mesmos motivos dos fios afiados das lâminas, ainda que a proibição das artes místicas fosse quase inútil para seres tão jovens.
Ele por exemplo mal conseguia soltar faíscas de seus finos dedos. No fim, era provável que aquela maestria exigisse certo talento, embora achasse quase impossível de Malfien acertar Yuki naquela distância. No momento em que levantou aquela certeza, uma outra apareceu em sua mente de forma repentina. Ela não vai desviar, pensou ele por um momento, ainda que não houvesse mais tempo. Cavian até tentou se movimentar entre os corpos para receber o ataque, mas já era tarde demais. Tanto ele quanto Malfien sabiam qual decisão Yuki tomaria. A palma da mão à frente, antes para cima, voltou-se pra frente e Cavian sentiu o uivo do ar gélido que correu perto de sua face. Yuki agarrou a esfera de chamas com a mão esquerda nua fazendo com que ela rapidamente se desfizesse, tornando-se o que era antes, um pedaço do nada.
O braço esquerdo de Malfien se avermelhou enquanto as mangas de seu quimono ardiam em brasas, na outra mão o cabo da espada vinha sendo tomado pelas raízes fumegadas. Correu em direção à Yuki com a espada estendida para trás e girou acima da cabeça. Yuki novamente desviou ao lado fazendo com que a ponta da espada atingisse o chão de pedras. A espada girou ao lado, encontrando finalmente a espada de Yuki. Estava finalmente perto o suficiente para atacá-la. O punho cerrado partiu em direção ao rosto de Yuki, que não hesitou. Antes que pudesse atingir sua face, sua mão livre agarrou o antebraço de Malfien e o torceu sobre as costas do irmão mais novo, fazendo com que o calor intenso se dissipasse em instante. Malfien jogou a espada ao lado na tentativa frustrada de se desvencilhar da mão de Yuki, mas ela fizera com que o herdeiro do fogo finalmente se ajoelhasse, como nunca havia feito. As brasas se apagaram e o braço antes avermelhado agora exibia um tom cada vez mais arroxeado à medida que o vento rodopiava ao seu redor. A respiração pesada de Malfien sequer podia encarar os olhos de Yuki, ainda que a ânsia por vingança pudesse ser sentida por qualquer coração que encarasse o príncipe sobre o chão. Yuki finalmente ergueu a espada ao lado, preparando o golpe final, e ele pôde perceber a vontade herdada dos olhos de seu pai, a expressão fria e implacável, a indiferença que observava por cima tudo e todos, a imponente postura de dominação sobre alguém que não pudera sequer reagir mais, mesmo que fosse contra alguém que o tinha feito tanto mal, por um breve momento ele pôde sentir o medo tomar seu coração, o mesmo medo que só seu pai o havia feito sentir por tantas vezes, mas felizmente, os segundos que separaram a razão da ação foram suficientes para que Nymo retornasse.
- Acredito que eu deva adicionar mais algumas lições – bradou Nymo, dispersando a multidão. – Como acham que um exército tão pequeno quanto o nosso conseguiu vencer tantas batalhas? Certamente não foi levantando a espada contra nossos próprios irmãos.
- Mas foi ele que começou... – interviu Cavian.
- Jovem Cavian, algo do que eu disse dificulta sua compreensão? – interrompeu Nymo.
- Não, professor, é que...
- Que bom, acredito que não tenham prestado tanta atenção em minhas palavras como havia imaginado. Comecem novamente pelo início – disse Nymo encarando olhares incrédulos e exaustos, ainda que ninguém ousasse questioná-lo. - Senhorita Yuki, me acompanhe por favor.
Era inacreditável o que havia acabado de presenciar. Era como se os dentes espelhados que Malfien ostentava naquele momento estivessem cravados sobre suas entranhas. Yuki soltou a espada ao chão e o braço que tinha em mãos. Não houve qualquer desculpa por parte dela.
- A culpa foi minha, professor - justificou ele. – Fui eu que iniciei a briga com Malfien, eu que decidi enfrentá-lo, Yuki só quis me proteger, ela... Ela não tem nada a ver com isso... – implorou desesperado, enquanto entrelaçava seus dedos.
Tanto Nymo quanto Yuki pareciam ignorá-lo. Em Aquia, a autoridade dos professores só não era maior que dos próprios reis e as decisões sobre comportamentos inadequados e desafiadores, costumavam levar aos piores castigos. Talvez o segredo do sucesso de um exército tão preciso que parecia funcionar como os ponteiros de um relógio.
Ele não tinha o direito, nenhum direito. Não brigavam por justiça ali? Não eram o que aquelas lições ensinavam?, seus pensamentos fervilhavam. A culpa não era de Yuki, ela fez o que achava que tinha que ser feito. Fora ele que havia sido incapaz de intervir. Ao fim, continuou seguindo as ordens como sempre fizera, ainda que fosse o soldado de outrora que as deu dessa vez.
A cada novo golpe de espada, renovava o juramento que fizera naquele dia, o de que não deixaria que ninguém mais cogitasse a questioná-lo como rei. Treinaria até que seus dedos fossem incapazes de sustentar sua espada ou que seus joelhos cedessem. Não se travava mais somente dele. O franzino menino de antes não precisaria mais andar se esgueirando pelos corredores, Yuki não precisaria mais sacar sua espada e ele, pelo menos a parte que havia vivido até aquele dia, dera finalmente lugar ao príncipe que muitos esperavam. Um pensamento que perduraria por anos, antes que fosse diluído pelos serenos tempos de paz.
A VIAGEM AO REINO DAS ÁGUAS
Yuki
A nadadeira dorsal em formato de alça era rígida o suficiente para que se agarrassem com firmeza aos nem tão conhecidos tubarões voadores. Os corpos longilíneos tinham uma coloração alaranjada e brilhante como se estivessem prestes a entrar em chamas, talvez uma forma da natureza comunicar seus propósitos. Eram tão ágeis na água quanto leopardos em terra, com exceção do que tivera a árdua missão de carregar Narthus. O gigante era como uma âncora amarrada ao seu próprio barco. Mesmo assim os demais o seguiam, sempre o mais lento como seu líder, de modo a certificar que ninguém ficasse para trás.
Algumas horas depois já podiam presenciar a beleza escondida por tanto tempo pelo temor dos povos dos mares. Depois do ataque a Lumeran e do fechamento de Nautilus, a cidade que ostentava a feira dos picos flutuantes, nunca mais haviam sido vistos e o domínio das águas nunca fora requisitado sequer pelos reinos aliados. Enfrentá-los em seu habitat era o mesmo que navegar contra a corrente, uma missão tão impossível na mente quanto na prática, bastante longe de qualquer glória que qualquer exército pudesse almejar.
Os demais seres dali sequer pareciam se incomodar com suas presenças, pelo contrário, era como se as anêmonas inclusive dançassem em sinal de boas-vindas. Um mundo que de tão vasto parecia saber que meros visitantes não teriam força para incomodá-los.
Yuki observou as coordenadas pouco precisas, que conferira com Cavian antes de partirem, sobre o pedaço de pergaminho resinado, ainda que a profundidade significativa fosse de encontro com suas expectativas. Embora a luz do sol pudesse chegar ali, era como se passasse por um denso tecido antes de seu destino, tornando tudo mais pesado que em seu tom natural. Podia sentir um fluxo de água diferente entre os corais colossais que pareciam querer tatear as nuvens. Era turbulento ainda que sutil, e prestando atenção era possível vê-lo nos balançares dos corpos dos pequenos peixes e das algas presas às esculturas azuladas.
Foi seguindo as migalhas até que um fosso profundo surgiu diante de seus olhos. Já haviam passado por alguns deles no caminho, tão extensos quanto aquele que se apresentava. O fundo era repleto de nada, um mergulhar na profunda escuridão que ali parecia não ter fim. Percebeu a perplexidade entre os olhos que a encaravam em busca de respostas.
Era o local certo? Tudo indicava que sim, mas conhecera pelas páginas velhas que lera na infância aonde as informações erradas poderiam os levar. Os olhos vendados e as correntes tortuosas fariam com que vagassem por alguns segundos ou por longos anos em bolsões cavernosos que ninguém nunca soubera descrever a extensão. Nem mesmo aqueles que habitavam aquele lugar. Quyra a alertara mais de uma vez, e sua voz alcançara em sua mente como se ainda partilhasse a ceia daquela tarde anos atrás, foi então que o menino se tornava um velho... Nunca naveguem por aquelas águas sem mim ou sem um Sinante, os caminhos errados são imperdoáveis até mesmo para os filhos de Nybi. Não havia mais nenhum Sinante, a vontade de Mesai era o que os mantinha funcionais. Estavam separados das águas profundas por um pedaço de papel e por algum pedaço de informação que perdera. Ela sabia que era o lugar certo, mas precisaria ter mais do que uma convicção formada. Agachava por um momento olhando atentamente para o interior do fosso. Já havia pensado no problema antes de saírem daquelas cavernas. Lembrara dos morcegos das cavernas de Jizu, guiados pelo eco de suas vozes, precisava de algum mecanismo similar. Sua primeira hipótese era que ouvidos élficos pudessem escutar a vida que inevitavelmente se aflorava abaixo dali. Era claro que não funcionaria... Caso fosse possível, os reinos aliados não teriam tido o trabalho de mapear aqueles acessos. A segunda parte do plano precisaria de uma energia que não sabia se faria falta a partir dali.
Colocou as mãos sobre a borda, fechando os olhos, enquanto a estrutura cristalina cobria a abertura, a primeira, uma câmara grossa que isolaria o que viria de cima, a posterior, uma fina camada de linhas de gelo entrelaçadas com uma teia, e a terceira, um corpulento bumbo de gelo. A água abaixo da estrutura se congelava e se desfazia, fazendo com que fossem criados pulsos de alta amplitude. Se houvesse qualquer parede naquele lugar as linhas congeladas se partiriam em algum ou mais pontos. Manteria aquele ritmo até que seu corpo a implorasse pra parar, é como teria a certeza que estava correta. Passou alguns minutos até que sua cabeça e seus músculos esmorecessem.
Virou-se para os companheiros, estendeu a mão e no momento que o polegar girado pra cima se virou para seus pés, ela se jogou de costas para o abismo. Só conseguira ver os corpos desfocados acima de si seguirem seu comando antes que sua visão sumisse por completo, até que minutos depois, a corrente que a sugava para baixo finalmente fez com que a luz abrisse sob seus pés.
Era como se mergulhassem dentro da própria água. Os corpos antes acelerados estacionaram logo abaixo da borda inferior do fosso pelo qual pularam.
Assim que seus olhos recobraram a consciência, as mãos foram levadas à cabeça em sinal de rendição. Seu sorriso contrapondo as lanças apontadas em suas direções diziam mais do que os seres do mar poderiam compreender naquele momento. Tanto Cavian quanto os outros, um a um, repetiram seu gesto. Era importante que se mantivessem calmos como ela sugerira. Nenhuma missão diplomática seria conquistada com excessos, ainda mais em tempos como aqueles.
Estavam em um grupo numeroso, provavelmente mais de cinquenta deles a observando como um ser estranho ao meio. Homens peixes de escamas reluzentes, ainda que humanóides como eles. Os pares de pernas eram tão cobertos quanto o dorso, e por mais que o material rústico que os cobrisse não tivesse o brilho dos metais lustrados, parecia tão resistente quanto as rochas do fundo do mar.
Sem que ninguém reagisse, foram conduzidos para um abismo iluminado por abóboras flutuantes com sulcos que se alternavam entre o brilho e a opacidade. Suas estruturas eram presas por ramos que brotavam do chão e as entrelaçavam como raízes, lembrando uma grande plantação. Para surpresa dos visitantes, era possível ver bolhas de ar que se replicavam a perder de vista. Não havia qualquer citação nos livros antigos de Aquia, com exceção dos registros de reuniões entre os reis nos templos dos Aquamarinus em tempos remotos. Não havia comentado com o irmão, mas até aquele momento tinha desconfiança de que Lis sequer tivesse alcançado seu objetivo, já que não seria possível mantê-la viva entre os homens do mar sem qualquer álibi bastante convincente.
Desceram até que seus pés tocassem o solo de areia que se afundava a cada passo. Caminharam até um dos domos brilhosos, como uma grande bolha de sabão. O homem peixe pressionou seu corpo contra a parede e passou para o lado seguinte, assim como Yuki levando seu próximo passo à terra seca. Afundou seus pés de propósito na área branca, a mesma molhada de segundos atrás. As árvores ao longe não balançavam como na superfície, mas a natureza parecia tão intocável quanto nas florestas sagradas.
- Finalmente! - exclamou Rixi, retirando o respirador da boca com um ar de alívio.
- Temos que repetir essas viagens, nunca havia ficado tanto tempo sem ouvir sua voz - brincou Narthus, fazendo com que a fada lhe mostrasse a língua.
- Quietos! – esbravejou energicamente o homem peixe, pigarreando logo em seguida, ainda que sua aparência franzina não trouxesse qualquer intimidação. – Até que tenhamos certeza de suas intenções peço encarecidamente que não se comuniquem. Adianto que não se trata de algo pessoal, são somente os protocolos. – continuou em tom ameno, como uma voz grossa visivelmente forçada, enquanto Rixi segurava o riso aos olhos repreensivos de todos, com exceção de Sirius que mais timidamente a acompanhara.
- Sem problemas, todos respeitaremos suas condutas... Senhor? – perguntou Yuki.
- Bisco, senhora, obrigado.
Cercados pelo pequeno exército, sentaram-se na areia até que ela vira provavelmente aquele com que quisera conversar desde o início. Era uma espécie diferente de Aquamarino semelhante a um tubarão. Era talvez ainda maior do que Narthus e o ajoelhar do exército sob sua presença indicava seu alto posto.
- Mais de vocês, acredito que nossa cota já esteja cheia – disse Killsqual, o homem-tubarão, que esfregava as mãos lisas de dedos parcialmente grudados e pele brilhante.
- São seres da superfície, general, assim como o senhor sabe quem – sussurrou Bacus enquanto se aproximava dos ouvidos de seu general. - Não deixei com que falassem até que tivéssemos sua presença.
- E obedeceram?
- Como ordenado, senhor.
- Bom, estão autorizados a falar – disse Killsqual, enquanto estralava seu curto pescoço, parecendo desconfortável fora d’água, diferente dos demais. – Como chegaram aos nossos domínios e o que vieram fazer aqui?
- Como desejarem – disse Yuki, tomando um passo à frente e cumprimentando o homem cordialmente. – Encontramos as coordenadas por meio de mapas roubados dos reinos aliados – continuou ela entregando o mapa de coordenadas a Killsqual, que o pegou desconfiadamente. – Também estamos à procura de velhos amigos que acreditamos estarem sob sua benevolente estadia.
- Hmm... Vocês seis – disse o general apontando o robusto dedo em suas direções. – Deixem-me entender, roubaram os planos dos reinos aliados... Sim, dos reinos aliados, e os trouxeram até nós, apenas porque estavam com saudade de alguns amiguinhos que acham que por algum motivo estariam aqui.
- Não foi o que eu disse, senhor.
- Então fale o que quer dizer, minha senhora, antes que minha paciência termine – bradou Killsqual firmemente, ainda que Yuki mantivesse a mesma calma no olhar.
- Meu nome é Yuki Inazuma Suneater, princesa de Aquia, uma das líderes dos libertos. Esse é meu irmão Cavian Inazuma Suneater, príncipe herdeiro de Aquia, essa é Mika de Tessan, Narthus e Rixi de Faldram e Sirius de Stormcrow – disse Yuki apontando para cada um deles. – Há um tempo atrás devem ter recebido outros visitantes como nós, precisamente dois deles, Egen e Lis, pelos quais procuramos, assim como venho alertar em nome dos libertos que há planos iminentes de invasão de seu reino à sua rainha, meu senhor, o qual queremos evitar.
- Bem... Como posso dizer... – disse Killsqual meneando vagarosamente a corpulenta cabeça em direção ao topo do domo antes de encará-la novamente. - Nossa rainha é bastante atarefada, sabem? E pelo que entendi, e caso possam me corrigir, parecem ser filhos do responsável por todo esse caos. Talvez fosse melhor que eu negociasse suas vidas diretamente com ele.
- Acredito que tenham passado muito tempo longe da superfície para saber dos detalhes – retrucou ela educadamente. - Mas acredito que sua negociação não produza os frutos que espera. Além disso, tanto você quanto seu subordinado parecem ter confirmado a presença de nossos amigos aqui, que tem tanta responsabilidade quanto a gente nesses acontecimentos, ou seja, nenhuma... Caso contrário, não estaríamos arriscando nossas vidas para nos opor ao sistema que condena.
- Temos uma espertinha aqui! Vejam, senhores, a princesa espertinha – ironizou Killsqual, dando passos pesados em sua direção, aproximando a imensa cabeça de seu rosto. O conjunto de dentes serrilhados chegaram perto o suficiente para que o hálito de sangue putrefato torturasse suas narinas e a respiração pesada do general lhe esvoaçasse os cabelos. – Não sou tão benevolente como nossa rainha - completou em palavras lentas.
- Parece então partilhar a essência de nossos inimigos – ironizou ela. Por mais que suas falas tivessem um tom de prudência, a verdade era tão eficiente em irritar os ânimos quanto a própria ironia.
- Nossos? – gargalhou Killsqual se afastando um pouco caminhando lateralmente na frente dos demais. - Não são nossos, princesa. Anos já passaram sem que ao menos tentassem. Não nos importa o que ou quem vive lá em cima. Nem se juntassem todos eles, com seus monstros alados, gigantes e criaturas das brasas antigas, teriam qualquer chance contra nós. Como vê ao seu redor, sequer precisamos mais de suas terras.
- Perdoe-me, meu senhor, mas não me parece prudente que desconsiderem uma brecha em sua defesa. Além do fato de que seria bastante suspeito que guardassem os mapas dos acessos daqui tão bem guardados como estavam sem que tivessem a intenção de usá-los. Pode ser que isso aconteça daqui a cinquenta anos, ou cinco minutos, em qualquer dos casos seria adequado que um general de renome como o senhor se preocupasse menos com as falas de uma jovem e mais com o futuro de seu povo.
A sua fala terminou de estampar a fúria nos olhos arredondados que a observavam se aproximando novamente e levantando seu queixo com uma das mãos. Poderia abocanhá-la pela metade de uma vez só se quisesse e a respiração de todos pareceu se acelerar.
Um dos solados se aproximou dos ouvidos do general, mas dessa vez os sons eram diferentes. Parecia uma linguagem antiga que até mesmo ela desconhecia.
- Pois bem... - disse Killsqual finalmente se distanciando de vez. - Parece não ter se intimidado com minha presença, princesa, mas garanto que ainda o fará – ameaçou. - Até que eu tome as decisões que preciso tomar. Concederei o desejo de vocês em rever seus companheiros. Bisco já sabe onde os levar.
- Sim, general – confirmou Bisco prestando continência.
Uma mudança repentina de comportamento depois de uma simples frase. Um pouco atrasado, pensou ela, antes de partirem.
Cavian
Primeiro havia se acertado com Yuki, agora poderia rever Lis e Egen, era como entrar em uma máquina do tempo e desembarcasse anos atrás, quando sua única preocupação era com a hora de acordar para vê-la. Estava de alma leve como já havia se esquecido de estar. Seus passos só não eram tão apressados quanto as batidas de seu coração. A bolha em que haviam chegado era muito maior do que a primeira e parecia mais com uma floresta no fundo do mar. Bisco os guiava não mais acompanhado pelos demais soldados. O único pedido dele foi que deixassem os respiradores sob guarda de um deles antes de entrar. Isso evitaria com que pudesse fugir.
Ao longe uma cabana de pedra expulsava a fumaça branca por sua chaminé. Ao que tudo indicava já se aproximava da hora do almoço ainda que o dono da casa não soubesse dos novos convidados.
Cavian sentiu uma presença na mata ao lado da trilha, um pequeno animal talvez que se aproximava com velocidade. O farfalhar das folhas indicava que estava próximo, quando finalmente se revelou. Uma menina esguia de cabelos castanhos. Seu sorriso impulsivo de alguma forma lhe era familiar, assim como as sardas pouco abaixo de seus olhos esverdeados.
- Bom dia, minha jovem, a mamãe está por aí? – perguntou Bisco à pequenina que parara logo depois que os havia visto.
- Não sei, a mamãe? – disse a menina que não continha o sorriso alegre em meio à respiração ofegante, alternando seus olhos entre Bisco e a floresta às suas costas. – O urso estava quase achando a Ryuka.
Mamãe? Não era possível, sua mente por um momento entrou em colapso antes de vê-la. Com rugidos doces em uma terrível imitação da criatura que habitava as florestas longe dali. Lis saiu de trás do amontoado de árvores com uma cesta em mãos. Os cabelos de fogo pareciam ainda brilhantes ao sol atenuado. A cesta caiu ao gramado assim que as mãos dela pularam à face, que parecia não acreditar no que os olhos acabavam de presenciar. Ela correu ainda mais rápido que o vento quando os braços de Lis o envolveram e o rosto já molhado de suor e lágrimas encontrara abrigo em seu peito. Não conseguiu retribuir. Sua mente parecia ter se encharcado de tantas dúvidas que seu corpo simplesmente travara. A felicidade de outrora parecia ter sido inundada por um completo vazio e seu olhar esperançoso se tornara um poço de indiferença.
- Ian, é você, você está vivo – exclamou Lis rapidamente, esfregando o nariz e as lágrimas que corriam pelo rosto alegre, e seguidamente segurando suas mãos. Ela podia senti-las... Frias, trêmulas e distantes como nunca. – Depois de todos esses anos.
- Quem é a menina? – questionou ele ainda atordoado.
- Ian, já faz tanto tempo que...
- Quem é a menina?
- Ryuka, Ian, ela tem pouco menos de quatro anos... – disse Lis com os olhos marejados, ainda o encarando, parecendo não encontrar palavras.
Quatro anos? Poderia reconhecer aquela feição até por seus pequenos detalhes. Não poderia ser real, certamente seus pensamentos deveriam estar enganados. Uma obra daquela masmorra talvez. Sim, nada daquilo era real, não poderia ser, era tudo mais um truque para tentar enganá-lo, ainda que sua respiração ofegante parecesse confrontá-lo.
- Ian... Nem eu nem Egen sabíamos que você estava vivo... – disse Lis chorando ao ver a sua reação e o segurando-o pela camisa com as mãos ainda trêmulas.
- O importante é que está bem... – disse ele segurando seus braços e a afastando sutilmente.
As lágrimas correram pelo seu rosto seco em que esboçasse reação quanto percebera que lutara anos por um sonho totalmente vazio. O ferro apertado e entrelaçado em seus pulsos, a gélida sensação que corria por seus pés até alcançar seus pensamentos, as chibatadas que repousavam nos veios que haviam criado com o tempo ou os pesadelos que faziam com que seus olhos nunca repousassem, nada lhe causara a sensação que o tomara naquele momento. Por um instante era como se desejasse voltar para aquele lugar. Era pesado, pesado a ponto de lhe tirar o ar.
- Ei, Lis, lhe dê um tempo – disse Yuki com a fala serena tocando em um de ombros de Lis. Lis atendeu o pedido e se afastou enquanto encarava os olhos de Cavian, em busca talvez de algum sinal de compaixão.
- Mamãe, quem é esse moço? – perguntou a pequena.
- Um amigo da mamãe, minha filha – disse Lis se agachando, secando as mãos molhadas contra o vestido de linho com bordados floreados de um verde que lhe lembrava os olhos.
- Se é amigo da mamãe, então também é meu amigo – exclamou Ryuka inocentemente, enquanto Lis a encarava com um sorriso em parte desesperado, em parte contente, um tanto quanto confuso.
- Bom, espero que tenha mais alguns pratos em casa – disse Bisco. - Viemos almoçar, se não se importa.
- De maneira alguma – finalizou Lis, enquanto pegava na mão de Ryuka e se dirigia ao casebre.
Yuki
Todos já haviam sentado à mesa, arrumada com pratos e talheres toscos e amadeirados. Tempos atrás seria um artigo de luxo por ali. Cavian se certificou de ficar na ponta mais afastada, o mais longe que conseguira de Lis. Havia um lugar a mais na mesa e não seria preciso ser nenhum gênio para saber de quem era. O silêncio tomara conta do ambiente de uma forma estranha para velhos conhecidos.
Narthus ajudou na cozinha ao lado de Yuki, e era surpreendente que mãos tão robustas pudessem ser tão sutis, tão quanto os vegetais frescos que cresciam no solo ao fundo do mar. Era como se tivessem cortado o único vínculo que os ligava à superfície, o que os tornara assustadoramente seguros.
Mesmo com as atenções voltadas para Ryuka, os olhos de Lis naquela tarde tinham um único dono.
- Você deveria investir nisso quando tudo isso acabar – disse Yuki a Narthus, arrancando um sorriso sem graça do gigante, que descascava um punhado de batatas.
- Tomara que seja logo... Se prometer cortar batatas terminasse com essa guerra, eu descascaria uma montanha delas sem reclamar.
Yuki riu, experimentando uma das cenouras cozinhas.
- Prepare esses braços então... – brincou Yuki de boca cheia. – Quando meu irmão coloca uma coisa na cabeça, é mais fácil fazer essas cenouras criem asas do que fazer com que ele mude de ideia. Pra você ter noção, quando éramos pequenos, teve um dia que discutimos tanto que minha mãe resolveu dar pra nós um grupo de coelhos pra cuidar... Eram nove deles, cada um com um nome de um dos distritos do reino. Ela tinha dito que precisaríamos cuidar deles juntos, por um mês. No outro dia, de manhã, eles tinham fugido porque o Ian tinha deixado a porta do quarto aberta porque achou que eles ficariam com medo do escuro – continuou Yuki rindo. – Em um único dia, tínhamos perdido todos eles... – disse ela se segurando ao se lembrar da história. – Foi quando tive a brilhante ideia de dizer que a mamãe ficaria triste e que nunca mais iria confiar na gente pra nada. Eu provavelmente bolaria algum plano para encontrá-los, mas seria impossível que a gente os achasse. Qualquer um que pensasse logicamente por dois segundos concordaria comido. No fim, depois de mais uma discussão, ele acabou ficando chateado e sumiu... Como ele era emburrado, nem levei a sério, já que de noite inevitavelmente partilharíamos um longo sermão e um belo castigo... Mas já era tarde da noite e ele não havia voltado. Minha mãe, que sequer brigou comigo naquele dia, aproveitando que meu pai não estava por lá, botou o exército inteiro atrás dele. Reviraram as montanhas da base ao topo, cada buraco escondido de Aquia, cada caverna, e só no outro dia pela manhã o encontraram no pé de um sabugueiro, já bem longe do vilarejo, com uma cesta ao lado. Disseram que só o acharam porque escutaram o estômago faminto roncando a metros de um deles. Estava com as pernas todas esfiapadas e os dedos comidos, mas adivinha o que tinha dentro da cesta?
- Os coelhos? – Questionou Narthus surpreso.
- Cada um deles, todos os nove...
Narthus riu.
- Talvez não fosse tão impossível como parecesse...
- Ou talvez o faísca não bata bem da cabeça... Não o culpo, nenhum filho daquele maluco poderia ser normal... Mas em tempos loucos como esse, um pouco de loucura talvez possa ser o único modo de encontrar um caminho. É pelo menos o que vocês têm me provado ao chegarem até aqui.
Narthus sorriu timidamente.
Yuki ainda finalizava o corte de algumas cenouras cozidas que iriam à mesa, quando Egen abriu a porta, com peixes amarrados em um pequeno pedaço de madeira sobre os ombros.
- Impossível! – exclamou Egen, derrubando os peixes sobre o chão logo que entrou pela porta. Revisou os bolsos do sobretudo sem mangas, batendo as mãos contra a roupa e ajeitando-os rapidamente, um respirador no bolso direito, algumas rações em um dos bolsos à esquerda e uma linha fina e longa de cânhamo no outro logo abaixo. – Bem-vindo ao mundo dos mortos, meu amigo! – cumprimentou Egen antes de virar-se para ela. – E você, minha cara Yuki... Eu já sabia que estava por aí com aqueles encrenqueiros, mas ver você tão bem é como trazer os picos daquelas montanhas até o fundo do mar – finalizou amistosamente enquanto Cavian assentiu com a cabeça. – Venha cá, deixe eu te dar um abraço.
- Por favor, Egen, tome seu lugar – repreendeu Lis com semblante sério, ainda que Egen tivesse se mantido em pé.
- Obrigado pelas boas-vindas, Egen – disse Cavian respondendo a gentileza com o rosto inexpressivo.
- Nossa, ei, gente, está tudo bem? O que de tão grave aconteceu? Imaginei que deveríamos celebrar, não? Afinal, não é todo dia que se reencontra um irmão depois de tanto tempo, muito menos quando um deles renasce diante de seus olhos.
- Sim, vamos celebrar! – exclamou Cavian se levantando e erguendo a taça de vidro em suas mãos, enquanto Yuki se mantinha atenta, depositando a pequena faca sobre a bancada, seguido por Narthus, que percebeu que aquele despretensioso almoço traria ainda mais surpresas. – Gostaria de propor um brinde ao príncipe dos mares, aquele que conquistou até mesmo a pretendente de seu melhor amigo.
- Não faça isso com você, meu amigo – disse Egen sorrindo.
- Mas é verdade, não é mesmo? Desde aquele jantar suas intenções eram tão claras... Mas naquele tempo infelizmente eu era incapaz de perceber muitas coisas.
- Nunca tivemos a intenção de nos apaixonar, Cavian – disse Egen se aproximando. - Mas depois que partiu ficamos tão devastados... – continuou com a voz embargada. - Foi da união nesse momento tão difícil para nós que tudo aconteceu. Éramos tão jovens na época, Cavian, tão inconsequentes... Nunca em meus maiores pesadelos pude imaginar que as coisas pudessem tomar as proporções que tomaram – finalizou chegando até o lado de Cavian, apoiando uma das mãos sobre a mesa, entre ele e Sirius, quando se ouviu um pequeno zunido. - De qualquer forma, não acho justo que fique chateado por eu ter feito o que você não conseguiu, ainda mais depois de estar vivo por tanto tempo e sequer ter dado qualquer sinal de vida...
- CAVIAN! – gritou Yuki correndo em direção ao irmão, mas sem que houvesse tempo para agir.
Cavian acertou um soco na face de Egen, jogando suas costas contra a parede, que se estilhaçou, acompanhada pelo som das ripas de madeira que se partiram. Narthus também correu para segurá-lo, enquanto Yuki abriu as palmas das mãos. - Morkodal – disse ela quando uma pequena esfera de gelo surgiu de suas mãos. Assim que ela a lançou sobre o chão, a esfera se desfez, criando uma trilha congelada que correu a superfície rapidamente e serpenteante como uma cobra ao dar um bote, alcançando os pés de Cavian e travando-o em uma estrutura que subiu até próxima aos joelhos. Os pés das cadeiras pelo caminho não se salvaram e Sirius por pouco não tivera tempo de erguer os seus.
Foi tempo suficiente para que Narthus o alcançasse, imobilizando um dos braços do irmão enquanto ela chegou para conter o outro.
- Me solte, droga! – gritou Cavian se debatendo inutilmente enquanto caiu em lágrimas. Os olhos raivosos voltaram a se aflorar depois de tanto tempo.
- Ora, ora... O meu velho e bom amigo Cavian, achei que depois desses anos tivesse aprendido a se controlar pelo menos – ironizou Egen se levantando do chão com um sorriso no rosto. Sacudiu os braços empoeirados e limpou o sangue espirrado de sua boca com o dorso da mão.
- Chega, Egen! – esbravejou Yuki. – Terão tempo para discutir tudo isso em um momento mais calmo, ninguém daqui não tem nada a ver com isso. Você também, Ian, se acalme, pense no que te trouxe aqui. Há muito mais em jogo, você sabe disso – sussurrou ela tentando acalmá-lo.
Ryuka correu de encontro ao seu pai e abraçou a perna de Egen, encarando Cavian com a face doce e esbravejada. A ingenuidade da criança em achar que ela pudesse proteger seu pai foi o suficiente para fazer com que Cavian finalmente cedesse.
- Está tudo bem, minha filha, não se preocupe com o papai, o tio Cavian perdeu a cabeça um pouco – disse Egen sorrindo para a pequenina e esfregando a mão em sua cabeça.
- Acho melhor voltarmos outra hora talvez – disse Bisco quando analisou o chão congelado deixado por Yuki. – Há alguns depósitos perto daqui. Tenho certeza que acharei algo confortável para a noite.
- Por favor, senhor peixe, já tivemos reencontros demais por hoje – disse Rixi voando acima de seu ombro, causando-lhe um calafrio rápido na espinha. Nunca tinha visto espécies voadoras como aquela, ainda mais de um ser tão pequeno e falante.
- Se não se importam, ficarei aqui para tentar entender melhor qual a situação do reino, assim como Sirius. Como Rixi já havia me alertado, agora ele é minha responsabilidade – disse ela, fazendo com que Sirius franzisse o nariz enquanto Rixi ria debochadamente mostrando a língua ao ladino.
Cavian desvencilhou seus pés, e todos acompanharam Bisco até a porta.
- A estrada fica por aqui, senhora – disse Bisco apontando o braço estendido a nordeste.
- Obrigado, Bisco, não se preocupe, encontraremos vocês antes do entardecer. – respondeu ela.
Yuki
Todos partiram e as horas se passaram até que Yuki coletasse as informações que precisava. Egen e Lis estavam há anos ali e seriam as pessoas mais próximas e confiáveis que talvez pudessem confiar. Não era hora para preciosismos ou amarguras do passado.
Na volta, Sirius seguia os passos da princesa pela estreita estrada forrada de conchas estilhaçadas, enquanto ela admirava a natureza ao redor. O craquelar das pequenas estruturas rosadas que ainda teimavam em resistir lembrava a praia longe dali. Ao topo era como se o caos e a paz estivessem divididos por uma pequena e fina camada de fé. Nada mais poético para a situação em que estavam.
- Ei, princesa – chamou Sirius andando logo atrás dela. - Não tiro a razão de seu irmão, sabia? Vivendo naquelas ruas eu aprendi a reconhecer olhos ambiciosos assim que vejo, assim como mentiras contadas ao vento. Ele estava de costas pra você, mas quando entrou sua primeira ação foi ajeitar os bolsos. Não era como se estivesse surpreso da volta de Cavian, não como tentou fazer parecer.
- Confesso que Egen sempre teve um ego que conseguia ser ainda maior do que a ingenuidade de Cavian, mas também foi ele que fez companhia ao meu irmão quando eu não pude estar lá. Hoje eu entendo como era difícil pra ele, na posição que estávamos era difícil se encaixar, você sempre desconfia de interesses que quase sempre estão lá, você tem responsabilidades que ninguém mais tem. Ian nunca conseguiu lidar tão bem com isso, ele sempre precisou de alguém para que pudesse partilhar seus feitos na tentativa frustrada de dividir o fardo que ele nunca quis carregar.
- Não estou falando de ego, princesa. O que ele disse mais cedo não foi algo despretensioso. Foi algo calculado, ele sabia como seu irmão reagiria. Ele fez de propósito. Se é alguém tão próximo como dizem, tanto você quanto ele deveriam tomar mais cuidado.
- Que fofo! – ironizou ela apertando uma das bochechas de Sirius, fazendo com que se ruborizassem em meio ao sorriso sem graça do ladino. - Não sabia que tinha a capacidade de se preocupar com alguém. Pelo menos não seria adequado para alguém do alto escalão dos reinos aliados como você.
Sirius apertou os olhos e sorriu forçadamente rebatendo as suas falas.
- Vamos dizer que as opções de sobrevivência nesse mundo andam um pouco limitadas – respondeu Sirius.
- Somente para aqueles que se acomodaram – retrucou rapidamente.
- Não sei o que te moldou ao longo dos anos, mas essa dureza que aparenta ter, pra mim é uma completa farsa – disse Sirius limpando os dentes com a unha manchada de seu dedo mindinho. - Você cuida de seu irmão como se fosse um bebê, não é algo que fortaleça essa visão que espera que os outros tenham de você. Ele só aprenderá a se virar direito quando deixar que ele enfrente seus próprios problemas. Acredite em mim, um coração partido vai ser o menor dos problemas desde que ele botou na cabeça que tem alguma chance de enfrentar seu pai. Aliás, é até bom que ele não encontre alguém para se preocupar. As preocupações deixam as lâminas pesadas e os pensamentos longe de onde deveriam estar.
- O que acha que tento esconder, senhor Sirius de Stormcrow?
- Medo, talvez? Primeiro é que não permite que ninguém a questione. Não que não tenha uma boa visão das coisas... Qualquer um pode ver que é uma líder nata. O que quero dizer é que aos meus olhos, sua postura reflete algum tipo de insegurança, não sei. Parece que quer ser algo diferente do que realmente nasceu pra ser.
- Hmm... Interessante – disse ela fitando os olhos curiosos de Sirius, que pareciam buscar alguma reação, antes de voltar seu olhar novamente à frente. - Sua leitura é bastante boa, mas carece de alguns detalhes. Cuido do meu irmão porque prometi à minha mãe que iria fazê-lo enquanto eu puder e as palavras têm muito poder de onde venho. O que pensa ter descoberto sobre mim nada tem a ver com qualquer motivo que passe em sua cabeça. Nunca liguei para o que os outros pensam ou deixam de pensar sobre mim. A única pessoa que realmente entendia não está mais aqui e por um tempo achei que fosse só o medo de morrer sem servir a algum propósito, mas quando percebi que propósitos não escolhem lados, vi que que precisava ter uma bússola que me guiasse, algo que ainda infelizmente não encontrei.
- Haha... Confesso que não entendi nada, princesa – disse Sirius colocando uma das mãos atrás da cabeça. – Talvez você seja tão complicada que sequer se entenda. Mas mudando de assunto, tentando ainda entendê-la, o que fez hoje mais cedo pareceu mais o que eu faria do que o que você faria, enfrentar aquela boca recheada de dentes, passou longe do que qualquer coisa sensata que imaginei que faria.
- O que posso lhe dizer é que não se tratou de sorte. Aquelas ordens chegariam ao seu ouvido em mais ou menos tempo, ainda que tenham demorado um pouco mais que o planejado. No fim estava apenas testando seus limites, é algo que costumo fazer por diversão.
Sirius gargalhou.
- Suas brincadeiras são um pouco exóticas até pra mim, princesa... Ainda mais contra uma boca com tantos dentes como aquela, mas confesso que esse vício... Essa coisa de fitar a morte... É o que nos faz realmente viver, não é?
- Deveria estar grato, é esse hábito que ainda mantém você livre.
Sirius sorriu.
- Cuidado, princesa, posso ser um jogador muito melhor do que pensa.
- De fato, toda essa conversa... Bom, não posso negar que tem certa habilidade com as palavras, mas essa impressão que tem de você talvez seja porque só tenha encontrado alvos fáceis pelo caminho. Já adianto que não irá funcionar comigo... Ainda que muitas de suas palavras tenham soado verdadeiras, muitas outras delas já haviam treinado meus ouvidos.
- Talvez seja só o costume de estar alerta o tempo inteiro, princesa. Sei que não sou alguém que mereça sua confiança, mas garanto que das pessoas que conheci não sou das piores. Quanto a acreditar em mim ou não, meu velho costumava dizer que mentiras são como castelos de areia, o tempo sempre dá um jeito de fazer com que desmoronem.
- Para alguém que diz ter vivido nas ruas, seu pai parece ter conhecimento suficiente para prosperar em um lugar como aquele, onde tudo tem seu preço.
- Ah, de fato ele encontrou seu caminho. Há muito mais sob nosso controle do que aquela magnífica taverna. Ele é um pouco discreto, mas garanto que ficaria surpresa ao conhecê-lo. Vocês têm mais em comum do que pode imaginar.
- Será uma honra, tenho um prazer peculiar em conversar com pessoas interessantes.
- Posso dizer que percebi isso durante toda essa caminhada, ainda que naquela caverna gelada não lembro de termos trocado muitas palavras.
Ela gargalhou meneando a cabeça.
- Sua autoestima é inabalável, não é? Mas por favor, não confunda as coisas, gosto de agir por impulso às vezes, nos momentos raros em que posso é claro. Não crie qualquer esperança.
- Como disse antes, nunca deixei que meus pensamentos estivessem em um lugar onde não deveriam estar, princesa.
Yuki
A noite parecia ser mais longa no fundo do mar. Os colchões de palha enroladas sob um fino tecido eram bastante confortáveis para um improviso. Os estábulos não ocupados por animais que pareciam nunca terem chegado ali, serviram de quarto aos novos hóspedes. Mas antes que o sol se mostrasse, Yuki se deslocou sutilmente aos aposentos sem portas, abrindo silenciosamente a porta da baia onde se encontrava.
- Ei, faísca, acorde – sussurrou ela em seu ouvido enquanto se agachava para chacoalhá-lo. - Egen não estará hoje de manhã em casa, e falei com Bisco para distrair a menina enquanto conversa com Lis. Foi um pedido dela antes que eu saísse ontem.
- Não há nada para conversar... – disse ele voltando a se deitar. - Ela fez sua escolha tempos atrás, fui tolo de ter vindo até aqui depois de tanto tempo...
- Está sendo tolo é de deixar as coisas como estão. A vida nunca foi simples pra nós Ian e nunca vai ser... Ponha isso na sua cabeça, mas enquanto não virar essa página, você nunca estará livre pra seguir em frente, acredite em mim.
- Ela me traiu com ele, Yuki – Sussurrou irritado finalmente se sentando. - Logo com Egen...
- Ela achava que estava morto, Ian... Por favor, não dê razão aquele imbecil. Se coloque na situação dela, Ian, sete anos em um lugar como este, vivendo como uma forasteira. Viu como aqueles homens nos olharam. Sei de seus sentimentos por ela, mas não foi culpa dela e sabe disso.
- Você tem noção do que passei naquele lugar? Em todos esses anos, não teve um dia sequer em que não pensasse em vocês, na culpa que tive por tudo que aconteceu, pensando na droga de vida que ela estaria levando, no que estariam fazendo com vocês por minha causa... Enfrentando tudo só pra que eu pudesse reencontrá-la. Não é como se você pudesse entender.
- Já que você tem uma cabeça dura de pedra – disse ela dando cascudos carinhosos em sua cabeça. - Vamos fazer um exercício então... Supondo que pudesse escolher entre a situação em que ela está hoje ouuuu a que ela estivesse nas mãos daqueles doentes. Se pudesse escolher outra vez, o que faria?
- Teria escolhido saber que ela estava aqui sete anos atrás.
- Pelos deuses, Ian – revoltou-se Yuki. – Seu mundo não é só ela, Ian, e sua importância não se resume a reparar os erros que acha que cometeu. Lembre-se do que te disse quando éramos pequenos. Agora não se trata só de Aquia, não permita que nossos destinos se repitam com outras crianças, meu irmão, só nós temos o poder de impedir com que isso aconteça, só nós podemos derrotá-lo, só nós podemos fazer com que a morte da mamãe não tenha sido em vão.
O silêncio tomou conta do ambiente por alguns segundos, enquanto sua mente parecia pensar no que responder.
- Farei o que me diz... Ao menos ainda me restam seus conselhos.
- Sempre – disse ela estendendo o dedo mindinho.
- Você não espera que eu...
- Vá logo, faísca, é o nosso trato, ou é isso, ou nosso desafio mais tarde está cancelado – brincou ela, fazendo com que Cavian cruzasse seu dedo com o dela.
- Se prepare, você viu o que quase aconteceu com Egen ontem – disse ele sorrindo.
Yuki gargalhou tentando conter o som com as mãos à boca.
- Fiquei com inveja, admito – disse Yuki se levantando e estendendo a mão a ele que aceitara a ajuda para se levantar. – Mas espero que não pegue leve como fez com ele.
Ele sorriu.
- Espero que você não tenha se acomodado por eu ter estado fora por um tempo.
- Boa sorte, irmãozinho! – disse ela retribuindo o sorriso antes de se retirar.
Cavian
Era ainda manhã e Lis estava sentada sobre o banco em frente ao casebre do dia anterior. Estava vestida com um vestido simples de pano claro, muito parecido com o de antes. Vestia-se como uma camponesa, ironicamente a vida pacata que ele desejara pra ela ao seu lado. Os cabelos trançados eram mais contidos que os cabelos soltos e rebeldes que costumara conhecer. Um sorriso sereno o aguardava, mas as dúvidas de seu coração eram grandes demais para serem acalmadas até mesmo pelo gesto que sempre o conquistara.
- Que bom que veio – disse Lis enquanto ele se sentava ao seu lado, com os cotovelos sobre os joelhos e as mãos impacientes com os dedos entrelaçados.
- Para ser sincero, foi Yuki que me convenceu.
Lis sorriu.
- Ela é mesmo boa nisso, não é? Lembro de quando ela organizou nosso primeiro encontro naquela feira.
- Bom... Na verdade não vim para falar sobre o passado e sim pra te pedir desculpas por ontem. Você me deu minha vida de volta, não me deve mais nada.
- Ian... – disse ela apoiando uma de suas mãos sobre as suas. – Eu nunca te esqueci um segundo sequer. O que aconteceu entre mim e Egen... Bem, não foi como ele disse. Apesar de eu nunca ter me apaixonado por ele, me senti no dever de retribuir de alguma forma o sentimento do homem que havia salvado minha vida naquele dia, no dia em que o mundo me fez parar de sonhar.
Ele podia sentir o tremor das mãos frias que encontravam as suas tão quanto a tristeza das palavras ditas. A menina audaciosa e de coração corajoso parecia ter de fato perdido parte de sua essência, assim como havia acontecido com ele de outra maneira.
- Entendo... Refleti sobre o que ele disse e no fim cheguei à mesma conclusão. A culpa no fim das contas foi minha. Se eu tivesse sido capaz de enfrentá-los... Se eu tivesse cumprido o que prometi... Nossos destinos teriam sido bem diferentes.
- Você era só um garoto, Ian, não se cobre por isso. Egen não disse, mas se não fosse por sua mãe... – continuou ela com os olhos chorosos. - Se não fosse por ela, meu destino teria sido o mesmo de antes.
- Ela parece que era a única que sabia que eu estava vivo, é bem a cara dela ter desejado me dar uma segunda chance, acho que ela só não esperava que eu fosse demorar tanto pra sair daquele lugar...
- Meus sonhos morreram com você naquele dia, Ian – suspirou. – Bem, depois de alguns anos nesse lugar e com a bagunça que se tornou o mundo acima da superfície, pensei que tentar recomeçar fosse um caminho para tentar curar o que a vida tinha tirado de mim. Quando Ryuka nasceu... Foi como se aquele buraco em meu peito fosse preenchido de alguma forma. Se não fosse por ela... Eu largaria tudo outra vez pra caminhar ao seu lado.
- E eu nunca pediria que fizesse qualquer coisa diferente por mim.
- Eu sei, foi por isso que meu coração nunca deixou de ser seu... – revelou Lis sorrindo, enquanto apertava suas mãos. - Quando te vi ontem, tão perto e mesmo assim tão longe de mim, era como se o tivesse visto pela primeira vez naquele salão. O coração acelerado esperando que você me desse atenção, mas sem esperanças que me concedesse uma próxima dança. Nunca imaginei que fosse sentir o que senti por você, mas era tudo tão perfeito que talvez não fosse justo que vivêssemos uma felicidade que mais ninguém pudesse alcançar. Pense, Ian, um amor que daria inveja aos deuses... É bem provável que se pudessem não permitiriam tal afronta.
Cavian sorriu desviando o olhar ao chão.
- Sem dúvidas seria demais pra eles... Te amar foi o que me manteve vivo naquele lugar, Lis – disse ele finalmente se virando para confrontar o olhar da princesa novamente, colocando uma de suas mãos por cima da dela. – Mas pensando em tudo que aconteceu, acho que desde o começo nossa história nunca teve chance de dar certo. Eu provavelmente não chegaria até esse lugar como Egen conseguiu e talvez essa opção que temos hoje em mãos talvez tenha sido a melhor que o destino poderia ter destinado a nós. É algo que nunca vamos saber.
- Ainda preferiria ter vivido esse risco com você – disse ela sorrindo.
- Vindo pra cá, decidi me juntar a Yuki... Vou ajudá-la a derrubar meu pai, como havia prometido antes e espero que eu consiga fazer com que sua filha possa ter uma vida normal longe de toda essa guerra pra que possa ter um futuro de opções que ela mesma possa escolher.
Quando terminou de falar, Lis deu um beijo em seu rosto. Era carinhoso e aconchegante, ao ponto de guiar seu coração finalmente ao encontro de alguma forma de paz.
- Te esperarei em uma próxima vida, Ian, nesse mundo que tenho certeza que irá construir pra nós – disse Lis enquanto ele se levantava.
- Prometo que não deixarei te esperando da próxima vez – disse ele beijando suas mãos, antes de ver Bisco apontando ao longe.
Lis sorriu, no último sorriso que guardaria em sua memória, antes de trilhar os novos caminhos que lhe aguardaram. Sua irmã e Lis estavam vivas e bem dentro das possibilidades que restaram. Continuaria trilhando o futuro pelo qual Persus se sacrificara e o caminho até ali não teria sido em vão, além de ter ainda mais certeza do que queria para seu futuro. Os reinos aliados já haviam destruído vidas demais e se ele não pudesse pará-lo, pelo menos se certificaria de atrapalhá-los o máximo que pudesse.
LAÇOS QUEBRADOS
Yuki
Yuki havia caminhado uma distância significativa até o limite da floresta a leste, até que alcançasse a área branca e fina abaixo de seus pés. Era como um colchão de área de tão macia e transpassava os dedos nus como a própria água. À frente, havia uma borda cristalina da bolha que os circundava, pela qual contemplava toda a vida pujante longe dali.
Era como contemplar uma tela em movimento. Tantas cores, tanta paz, algo bem diferente do que havia vivido ao longo dos últimos anos. Com os braços cruzados atrás de suas costas e com pensamentos nos próximos movimentos que ainda faria no grande tabuleiro daquela jornada, escutou os passos de Sirius antes que sua voz chegasse aos seus ouvidos. Eram sutis, sem dúvida. Poucos se aproximariam dela daquela forma, mas o mais incômodo era entender suas ações controversas. Quebra-cabeças difíceis eram um hobby, uma das poucas coisas que curtia fazer desde pequena, ainda que o tempo livre fosse raro nos dias atuais.
- Acordou cedo, princesa! – exclamou Sirius de aproximando vagarosamente. - Vi quando seu irmão saiu. Parece que os acontecimentos de ontem tiveram mais implicações do que deixaram transparecer.
- Tinha o deixado livre por um tempo, mas parece que está preso a mim por uma corrente invisível.
- Bom, como não havia encontrado ainda alguma forma de fugir daqui, imaginei que seus passos silenciosos pudessem me mostrar algum novo caminho – disse o ladino se aproximando de suas costas sem que ela movesse qualquer centímetro de seu corpo.
- Pelo menos é sincero.
- Mais do que gostaria... É como um dom.
Ela sorriu.
- Ian me disse que prometeu a você o tesouro de nosso reino... Uma hora vive como se não houvesse o amanhã e em outra busca coisas em um futuro que diz não acreditar, o que realmente você quer de verdade?
- Veja como possuímos coisas em comum – brincou Sirius. - Eu também tenho meus passatempos exóticos, princesa, e o meu foi sempre correr atrás de tesouros, os mais variados deles, desde os pequenos que podem ser guardados nos bolsos, até os mais raros e valiosos... Mas até o mais tolo sabe que nem tudo se resume a ouro. Não posso te revelar ainda o que é, mas atualmente estou atrás de um ainda mais fascinante do que o cobiçado tesouro dos dragões.
- Sinto muito que ainda não tenha percebido, mas há coisa impossíveis de serem conquistadas, independente de seu esforço
- Quando eu provar que está errada, o que me dará em troca?
Ela sorriu.
- São fatos, não há nada que possa fazer a respeito. Provavelmente as coisas malucas que diz e a que ressaltei a pouco ainda possam ser resquícios daquele veneno. Talvez devesse deixar Mika te examinar, suas unhas... Você parece ainda não estar bem.
As unhas clarificadas tinham extremidades acastanhadas... Já havia visto aquilo em suas andanças. Ainda se recordava da aldeia de águas turvas amareladas de odor pútrido nas minas fronteiriças Javelin com a terra dos vulcões. Apesar de que provavelmente não guardasse qualquer relação com aquele caso. De qualquer forma sabia que era um mal sinal, já que mesmo os adultos não costumavam sobreviver por muitas semanas.
- Haha, isso? – mostrou as unhas para ela. – Não se preocupe, tenho desde de criança e estou vivo até hoje. Eles eram homens de palavra... Prometeram que eu viveria e aqui estou eu, mais vivo do que nunca.
- Eles quem?
- Os mercadores errantes... Sei que hoje pode soar estúpido, mas quando eu era bem pequeno, deveria ter uns quatro anos no máximo... – disse Sirius meneando a mão. - Queria comprar um bolo para meu irmão, disso pelo menos me lembro. Era aniversário dele, e fazia tempo que não tínhamos dinheiro nem pra comer uma tigela de farinha com água – continuou rindo, ainda que ela ainda não tivesse encontrado qualquer humor ali. - Então acabei indo atrás de um dos mercadores. Eles sempre davam um jeito em tudo naquelas carroças entrelaçadas que apareciam de tempos em tempos.
- Você com quatro anos foi negociar com mercadores? E voltou vivo?...
- Escute, princesa... Deixe eu terminar a história... Eu falei que eram homens honrados, não disse? Como eu não tinha nada a oferecer e ele propôs que se eu desse a ele uma parte de mim, uma que não faria falta segundo ele, eu poderia ter o que quero... E logicamente aceitei, quem não aceitaria? Eu nunca tinha comido um bolo na vida! Pelo menos nenhum daqueles enfeitados que exibiam nas prateleiras do centro das cidades... Foi então que ele me deu algo pra dormir e eu acordei com uma dor de quase desmaiar algumas horas depois e com essa cicatriz aqui – disse ele sorrindo nostalgicamente enquanto levantava levemente a blusa para mostrar o traçado robusto que lhe cruzava das costelas ao umbigo.
Foi quando ela finalmente ligou as coisas.
- Você trocou um bolo por um rim? É isso mesmo? – disse ela incrédula.
Sirius gargalhou.
- Não qualquer bolo, era o bolo que garanto que nem você em suas festas chiques possa ter saboreado. Era imenso e vermelho, e mesmo estando sobre um carrinho de madeira quando acordei eu mal pude carregá-lo de tão pesado. Era tão extraordinário que lembro do gosto dos morangos até hoje – disse Sirius esfregando a língua nos lábios.
- Você é mesmo louco... Não pode ser – disse ela rindo e o encarando, finalmente se sentando ao chão, com as pernas cruzadas e os braços sobre os joelhos, descrente do que havia acabado de escutar. Talvez a loucura daquele homem fosse contagiosa. Aquela era definitivamente a história mais louca que escutara na vida.
- Sabia que a surpreenderia – exclamou Sirius confiante, enquanto cortejava-a como os lordes dos castelos.
- Você não desiste, não é mesmo? – questionou ela com um sorriso. Aquele homem de alguma forma tinha algo que a intrigava. Talvez fosse só curiosidade, era algo que ainda não tinha experimentado até ali.
- Apenas mais uma de minhas incríveis habilidades – continuou ele antes que se agachasse à sua frente, encarando seus olhos.
- Vou ser sincera, Sirius, assim como parece ser. Eu gostei de você logo quando o vi, mas tenho responsabilidades muito maiores do que um caso com alguém que mal conheço e imagino que também tenha suas próprias ambições, não é?
- Não se preocupe, não serei um problema pra você, princesa... Mas quanto às minhas ambições, já informo que elas costumam mudar com certa frequência.
- Não serei mais um troféu na sua prateleira se é o que deseja, além disso tudo isso aqui... Tsc... Nunca daria certo entre nós...
- Quem sabe até o fim do dia possa se convencer disso... – ironizou Sirius a encarando com um sorriso convencido. – Quanto aos troféus a que se refere, eu nunca coloquei nenhum lá, princesa. De fato, conheci algumas mulheres ao longo dos anos, mas nenhuma que pudesse entender tudo que se passa aqui – disse Sirius apontando o indicador para sua cabeça.
Yuki sorriu.
- Foi o discurso que usou com a última delas? Não parece muito original – disse ela franzindo o nariz.
- Diz como se eu precisasse mentir. No que mudaria minha situação? Aliás, inclusive a tem complicado toda vez que penso sobre o assunto.
- Bom... Pensando que até dias atrás teria me matado se tivesse a oportunidade, parece ser bem difícil acreditar em qualquer coisa muito distante disso. Além disso, tentou fugir alguns dias atrás, mesmo após tudo que aconteceu.... Não parece ter se empenhado tanto para que eu pudesse dar a você algum crédito.
- Tem razão... – disse ele apontando o indicador a ela. – Mas, em minha defesa, não se esqueça que até aquele momento eu realmente a via como uma inimiga. Quando me soltou, mesmo depois do que fiz... Bem, acho que ninguém havia feito algo assim por mim. Não alguém que estivesse em sua posição.
- Não foi por bondade, posso te garantir. Se representasse alguma ameaça, teria mantido suas mãos do mesmo jeito que as encontrei.
- Independente disso é algo que eles nunca fariam. Preciso confessar que sempre os tratei como iguais, princesa, digo... Esse movimento do qual faz parte, por tudo que ouvi, por tudo que aqueles cabeças de balão espalham nos becos daquela cidade. Mesmo que algumas vozes importantes me dissessem o contrário, eu sempre os tratei como sendo faces de uma mesma moeda.
Yuki riu.
- A fama que espalham... Não vou dizer que não seja útil algumas vezes. Os soldados dos reinos ficam com tanto medo que correm sem que a gente sequer precise fazer algo. Tenho certeza que não seríamos tão eficientes se tivéssemos arquitetado algum plano nesse sentido.
- Bom, se lhe serve de alento, de alguém que estava do outro lado até um tempo atrás, acho que vocês possam estar do lado certo, ainda que ache que não existam chances de sucesso.
- Já enfrentou algum de nós, meu senhor? Digo... Em outro momento não pude deixar de notar o resto das cicatrizes.
- Não é que vocês andem com placas em suas testas, princesa, mas já fiz tantos trabalhos a Shasak que provavelmente tenha cruzado com um ou outro de vocês, e por mais que não seja adepto aos confrontos, eles sempre acabam acontecendo. Agora em relação às marcas que carrego, posso garantir que foram antes de me tornar um burocrata. Algumas antes até do velho me encontrar como já disse.
- Não tenho tanta certeza... Se tivesse nos enfrentado saberia. Assim como você, como não temos nada a perder acabamos não tendo nada a temer... Já pensou que se vencermos essa guerra você se tornaria um homem livre outra vez?
Sirius riu.
- É por isso que não conto com essa possibilidade, princesa. Prefiro acreditar que meus irmãos encontrem um jeito de me trazer de volta.
- Ah, sim... Os famosos capas cinzentas, pareciam um grupo confiável de mercenários, sinceramente, ainda raros de se encontrar hoje em dia.
- Digamos que entregávamos o que prometíamos. Até o último trabalho ter dado errado – disse Sirius, ainda que sem o sorriso habitual.
- E muitas histórias surgiram desde então – disse ela pegando um pouco de areia branca com uma das mãos e soltando lentamente como o traço de uma ampulheta.
- A verdade nunca foi tão gloriosa, princesa, mas se quer saber o que de fato aconteceu, resumidamente, meu irmão mais velho achou que meu pai era conservador demais e acabou metendo os pés pelas mãos. Quando Tarkus, outro de meus irmãos, morreu naquela missão, éramos jovens demais para conseguirmos juntar os pedaços. Mayu, a qual deve conhecer, ficou por um tempo, mas foi embora para se juntar à causa de vocês pouco depois.
- Impossível... Digo, não deve ser a Mayu que conheço...
- Olhos tapados, grandes chifres laterais... – disse Sirius fazendo mímica com as mãos.
- Não é isso, é que... Não seria possível que vocês fossem...
- Irmãos? Hahaha, lógico que somos, pergunte a ela se quiser. Não da forma como você e Cavian, lógico, mas o velho nos adotou quando éramos bem pequenos, órfãos vivendo em um mundo como esse não durariam tanto sem alguma ajuda.
- De fato, falando assim me arrisco a dizer que não é muito longe do que fazemos, aliás, talvez seu pai não tenha te contado que seja um de nós – brincou ela.
- Digamos que o trabalho de vocês carece de rusticidade e falta de princípios. O velho só nos ensinou a sobreviver da maneira que cada um conseguisse. Posso garantir que não é nada mais profundo do que isso, mas pense só, já conhece mais de mim do que pensava.
- O que não muda nada. Lembro-me bem quando discursou sobre o peso das preocupações não muito tempo atrás.
- Não distorça minhas falas, princesa, eu disse que era bastante indesejável, mas não disse que podemos escolher. Se fosse dessa forma certamente eu teria escolhido um caminho bem menos complicado – disse Sirius sorridente, antes de se deitar relaxadamente ao seu lado, acomodando-se na área branca com a nuca apoiada sobre as mãos cruzadas.
- Você é um homem de muitas surpresas, não é? Não diga depois que eu não o alertei – disse ela se virando e se apoiando sobre seu tronco, antes que os lábios se tocassem. Os dedos do jovem de cabelos negros dançavam sobre as marcas estampadas sobre suas costas no ritmo de um soneto harmonioso, acompanhado pelas batidas do coração que se agitavam, fazendo com que as longas horas se passassem como segundos e que a sensação calorosa e intensa pudesse alcançar até mesmo o mais congelado dos corações, um que até então havia conseguido se privar com louvor das distrações que lhe distanciavam da razão.
Rixi
O celeiro em que repousaram era somente um dos cinco que haviam sido construídos por ali. Ao lado um do outro facilmente abrigariam centenas de cavalos, bivios e outros animais da superfície, ainda que não houvesse qualquer deles no local. Talvez o risco no momento fosse alto demais para um luxo tão supérfluo. O que se percebera, no entanto, é que os habitantes do fundo do mar em pouco tempo não precisariam mais se preocupar com as guerras. Viveriam em um mundo paralelo cobiçado por todos aqueles que agonizavam acima deles.
- Pensando bem, não é de todo ruim se pudéssemos ficar por aqui – disse Rixi deitada sobre o tapete verde do lado de fora, enquanto Narthus ajeitava os acessórios sentado perto dali, assim como Mika, que observava com certa curiosidade um conjunto de flores nascidas naquele chão, as manejando com a ponta de seus dedos. – Faldram e esse lugar são como santuários intocados. Ainda que eu ache esse lugar muito mais seguro. Só fico imaginando o dia que uma árvore dessa atingir o topo dessa bolha, veja aquelas ali – disse apontando para algumas palmeiras. - Em alguns anos terão crescido o suficiente.
- De onde tira essas ideias, Rixi? – questionou Narthus ainda concentrado em sua tarefa.
- Não tenho culpa se sua cabeça de pedra não consegue pensar além do óbvio. É por isso que ainda acredita naquela ali – disse ela levantando as costas do chão e apontando para Mika.
- Pode continuar pensando no que quiser, não lhe devo qualquer satisfação – respondeu Mika sem que sequer lhe dirigisse o olhar.
- Veja, grandalhão, essa que me responde assim é em quem tanto confiam – resmungou Rixi se levantando, enquanto franzia o nariz.
- Você procurou, não é? Já sabe muito bem o que penso – retrucou Narthus com indiferença.
- Você sabe do que são capazes! – exclamou ela voando e gesticulando no ar - Era pra você ter morrido naquele dia, mas aí ela percebeu que você não era alguém comum, que era na verdade o poderoso guerreiro protetor da única deusa que ainda habita neste mundo. Quando percebeu isso ela quis se aproximar sorrateiramente, ganhando a confiança de vocês pouco a pouco – continuou como se contasse uma história de suspense. – Pra mim, é tão óbvio que chega a arder meus olhos.
- Deveria implicar menos com ela. A natureza provavelmente tenha falhado em colocar tantos pensamentos em uma cabeça tão pequena.
- Não consegue rebater, não é? – ironizou ela, voando até próximo ao rosto do gigante.
- Não sei se percebeu, Rixi... Mas nós aqui... – sussurrou Narthus rodeando o dedo no ar. - Estamos muito longe de ser considerados algum grupo pela qual as pessoas poderiam ter qualquer interesse. Viver fugindo e se preocupar em não morrer todos os dias parece ser algo bem distante da vida dos sonhos de alguém, não é? Você viu quando Sirius decidiu fugir de nós. Pra ele estar conosco é mais perigoso do que viver fugindo sozinho.
- Ela poderia ser uma espiã vigiando nossos passos – sussurrou ela de volta no ouvido de Narthus com olhos incriminadores em direção à Mika.
- Sim, eu sou – respondeu Mika secamente.
- Viu? Viuuu?!... – exclamou ela apontando seu pequeno dedo à Mika com um sorriso de satisfação em seu rosto. - Eu sabia... Ela nem se deu ao trabalho de negar.
- Minha intenção é ganhar a confiança de vocês e tentar sobreviver ao lado de vocês, arriscando minha pele logicamente, para que aqueles tiranos lá de cima continuem uma caçada eterna a nós... Desculpe, a vocês... Por pura diversão, como gatos e ratos... Andando pelas ruas estreitas das cidades dominadas pelo medo da mão que governa esse mundo – satirizou Mika vagarosamente, com olhos penetrantes e aterrorizadores.
Narthus riu, assim como Mika instantes depois.
- Quando aquela moça de cabelos prateados terminar suas investigações quero ver se manterá esse sorriso – resmungou ela apontando para Yuki e Sirius que se aproximavam.
- Bom dia, pessoal, todos bem? – cumprimentou Yuki.
- Sim, senhora – disse ela prontamente enquanto os outros assentiram e Yuki se sentava sobre o gramado de folhas agulhadas.
- Temos algum tempo até que Cavian volte e que façamos a reunião com a rainha – informou Yuki. - Queria aproveitar pra conhecer um pouco mais sobre vocês... Lembro de vocês dois nas conversas que tinha com Persus, ainda que ele os tratasse como bebês em suas falas – continuou Yuki rindo. – Já Mika... Como posso dizer? Foi prisioneira de Splenze correto?
Mika assentiu.
- Nem imaginávamos que pudesse ser irmã de Cavian, senhora – revelou Narthus. - Mas assim como sabia de nós, nós também conhecemos algumas de suas histórias... Você era uma das pessoas que Persus falava com admiração, o que era um pouco raro vindo dele... – disse Narthus.
- Assim como eu tinha por ele – disse Yuki. - Não sei se sabem, mas ele rezava todos os dias aos velhos deuses, independentemente de onde estivéssemos, para que os protegessem, só o termo “pequeninos” que não combinava muito com você, Narthus... – brincou Yuki encarando o gigante. – É verdade... Pra mim você não passava da minha cintura – fez com que todos rissem. - Tínhamos visões tão parecidas sobre o mundo... Inclusive muito da filosofia que os libertos seguem hoje e que eu tomo como norte vem de seus ensinamentos, o propósito que tantos buscam, mas que poucos como ele conseguem. No fim, além de tudo isso, ainda foI ele que trouxe meu irmão de volta – continuou Yuki com o tom mais brando. – As minhas investigações acabaram chegando nas mãos dele antes de mim... E acabei sabendo que Cavian estava vivo no mesmo dia que soube de sua morte.
- Ele disse que tinha uma dívida com você... Sobre o ter resgatado certa vez – disse Narthus.
Yuki riu.
- Somente naquela cabeça dura dele.... Não havia qualquer débito a ser pago. A minha função como exploradora era essa, assim como a dele. Ele sabia muito bem disso, só arranjou uma desculpa pra poder contrapor as decisões que tomávamos no conselho sem que ninguém o questionasse como sempre fazia aliás. Ele fingia que seguia o que a maioria decidia e nós fingíamos que acreditávamos.
Ela riu.
- Esse definitivamente era ele – disse ela. – Ainda que eu duvide, espero que os deuses para os quais Narthus tanto reza em seu nome tenham o recepcionado como merecia.
- Soou estranho vindo de você – questionou Narthus enquanto ela franzia o nariz.
- E você, Mika? Desde que a conheci parece que não gosta de falar muito – observou Yuki.
- Só quando é necessário... – respondeu Mika sorrindo de forma cortes.
- O oposto de Sirius então... – disse a princesa enquanto Sirius franzia o cenho.
- Uma fada encrenqueira, um gigante que não põe medo em ninguém, uma cientista muda, um príncipe deposto e uma líder de coração gelado. Acho que tem tudo pra dar certo – ironizou Sirius, dançando com uma concha entre os dedos e sentando na pequena roda ao chão que se formara, assim como Yuki.
- E um aliado de nossos inimigos que agora é inimigo de seus próprios aliados – complementou ela.
- Exxx... aliado... Mas confesso que foi bom, nanica – respondeu Sirius rindo. – Parece ao menos um grupo coeso.
- Não sabia que fazia parte de nosso grupo agora – respondeu sarcasticamente a fada enquanto espremia os olhos com desconfiança.
- Temporariamente foi o que quis dizer... – completou Sirius.
- Ei, vocês, vocês sabem com quem iremos nos encontrar, né? – questionou ela empolgada. - Mesai, a rainha local, possui olhos que podem guardar todo o passado, ou seja, se ela vive desde a era antiga... Ele conhece segredos que ninguém mais viu.
- Infelizmente pelo que sei esses segredos morrerão com ela, Rixi... – explicou Yuki.
- Isso era antes de eu chegar aqui... – exclamou ela confiante. - Depois que todos nós nos unirmos e ganharmos essa guerra, ela ficará certamente entediada e irá querer usar seu tempo livre para conversar sobre as coisas que viveu antes de morrer em paz nesse imenso mar – continuou a fada levantando voo e meneando as mãos com a história que contara. - Quando isso acontecer, nada melhor que uma companheira que lutou ao seu lado por sua própria vida, com quem ela compartilhará laços de confiança que a permitirão contar sobre a era antiga.
- Parece que planos horríveis são a especialidade de vocês... - ironizou Sirius rindo.
- Pelos deuses! – exclamou ela levando as mãos à boca. – Acabo de perceber que Sirius também tem olhos especiais, vejam! – disse a fada se aproximando do rosto do lado. - Os olhos de quem implorará de joelhos para ouvir as coisas que descobri – ironizou imitando uma face tristonha, arrancando risadas de todos até do próprio Sirius.
- Você tem um bom humor, fada, só precisa parar de acreditar no que diz – retrucou Sirius, apoiando as mãos para trás no chão enquanto a encarava.
Ela mostrou a língua.
- Acho bom não mexer com ela ou suas gravuras naquele caderno serão piores do que as minhas.... – alertou Narthus.
- Não podem me culpar se o que represento em minha arte é a essência de cada indivíduo... – justificou ela encarando Narthus com o nariz franzido. - Ei... Princesa – continuou chamando atenção de Yuki com a mão levantada, como uma aluna interessada. - Se me permite, já que estamos com tempo como disse... Gostaria de perguntar como controla aqueles pássaros de gelo... É que de onde venho, somente os arquimagos, os velhos daquele lugar, possuíam tal habilidade.
- Haha, não exagere, são somente pássaros... – disse Yuki formando um em na mão que estendeu a frente, soprando-o logo em seguida e fazendo com que voasse aos céus antes de se desfazer.
- Caso não queira compartilhar o segredo, vou entender... – resmungou ela cabisbaixa. - É que o domínio de extensão requer controle preciso de fluxo da magia, minha senhora... Eu mesmo lembro da sensação de controlar inúmeras longas e finas linhas ao mesmo tempo – continuou dedilhando os pequenos dedos no ar. - Mas nunca conseguíamos passar do primeiro teste.
- Não é algo que eu realmente pense sobre... – respondeu Yuki. - Mas acredito que seus mestres pudessem fazer mais do que pequenos pássaros como eu.
- Sim... Mas são tão velhos e moribundos quanto taças de vidro e bem... Vamos dizer que eles nunca tiveram muita paciência com os novatos. Agora que os portões estão fechados, caso pudesse me ensinar... Eu prometo que iria me dedicar sem que tomasse muito do seu tempo... – completou ela escondendo as mãos trêmulas atrás de si enquanto flutuava no ar.
Yuki riu.
- Faremos o seguinte... Te levarei a um dos nossos refúgios e vou te apresentar a um jovem senhor chamado Faolan. Seu conhecimento sobre a magia é tanto que ele é o único até hoje que conseguiu criar vida com suas mãos... Não à toa é considerado por muitos a pessoa mais próxima do poder dos deuses. O que acha? Certamente terá muito mais a aprender com ele do que comigo.
Vida, eles realmente podem fazer isso?, questionou ela para si mesma, enquanto seus pensamentos borbulhavam. Nunca pensou que havia alguém capaz de tal façanha. Não escutara nada parecido desde que nascer. Com certeza aquela era uma boa história a se contar.
- Não alguém... – explicou Yuki. - É uma escala menor, mas te ajudará a entender os conceitos. Tenho certeza que sua mente criativa poderá tirar muito proveito...
- Já me convenceu – exclamou ela enquanto ria de ansiedade. Seria divertido poder criar meu próprio mundo, cheio das coisas que desenho naquele caderno... PELOS MALDITOS DEUSES, isso está sendo melhor do que o esperado, pensou ela cerrando os punhos de felicidade, ainda que sua conclusão estivesse bastante distante das palavras ditas.
- Mais alguém? – questionou Yuki.
- Sim, eu... – interrompeu Sirius também levantando a mão sem qualquer razão aparente. - Percebi que não há comida aqui e que ninguém está se mexendo para conseguir alguma.
- Ao menos uma vez, vou precisar te dar razão... – respondeu ela enquanto seu pequeno estômago roncava timidamente.
- Lembro bem dos peixes de ontem, acho que não faria mal pegar alguns deles. – sugeriu Narthus.
Cavian se aproximara deles visivelmente com um semblante do qual os sorrisos se mantinham longe.
- Preparado, irmãozinho? – disse Yuki ao recém-chegado integrante, enquanto se levantava caminhando até o irmão.
- Para? – questionou Cavian sem que qualquer animação alcançasse suas palavras.
- Nosso duelo marcado – exclamou Yuki se levantando. – O grande e principal evento dessa gigantesca e monótona bolha. Quem perder será o responsável por providenciar nosso almoço, o que acha?
- Ah, sobre isso, te liberto de seu compromisso... – disse Cavian indiferente. – Vou providenciar algo para o almoço enquanto continuam conversando, não se preocupe.
- E desistir sem ao menos tentar? De forma alguma! Eu sempre cumpro minhas promessas... Não seja chato, faísca! Em homenagem aos velhos tempos. Vamos? – disse Yuki cutucando um o irmão com o dedo indicador em sua bochecha. – Seus amigos estão curiosos em relação ao que posso fazer e é uma oportunidade depois de todo esse tempo para aumentar meu histórico de setenta e nova vitórias.
- Não tem medo de perder? Temo informar, minha irmã, mas ciclos de sorte não duram pra sempre – disse ele esboçando timidamente um sorriso.
- Haha, farei com que engula suas prepotentes palavras, faísca – retrucou Yuki retribuindo o sorriso.
- Aposto uma moeda de ouro na tirana – brincou Sirius.
- Duas na princesa – disse ela confrontando Sirius com olhos confiantes.
- Ei, pessoal, ninguém vai apostar em mim? – resmungou Cavian.
Narthus deu os ombros, envergonhado, encarando o amigo
– Você mesmo confirmou que nunca venceu, meu amigo – disse Narthus para justificar sua descrença.
- Vamos, pessoal, Cavian é uma excelente opção – exclamou Sirius, levantando-se e apoiando uma das mãos no ombro de Cavian. - O rei dos relâmpagos e recém-saído do inferno da prisão de pedra, o maior sobrevivente de Aldoin e herdeiro legítimo do trono de Aquia, aquele que irá superar até mesmo o grande mal acima dos céus... – disse Sirius sorrindo e abraçando Cavian lateralmente tentando promovê-lo.
- Por que não apostou nele então? – resmungou ela franzindo o nariz.
- Eu aposto uma moeda em mim – disse Cavian confiante, enquanto todos riam da situação.
Cavian
- Quem tocar os pés fora da arena perde - disse Yuki enquanto se agachava e tocava com um dos dedos a grama verde, que se empalideceu formando um quadrado marcado ao chão. Possuía seguramente mais de cinquenta metros de lado, o que daria distância suficiente para que não dessem a vitória a um golpe de sorte.
Todos se acomodaram na borda da arena improvisada enquanto ambos se cumprimentaram ao centro. As lembranças faziam com que Cavian quase pudesse sentir os ventos gelados das montanhas tocando em sua face como da última vez.
Yuki iniciou seu ataque levando ambas as mãos ao chão, o mesmo que utilizara na choupana dias atrás. Agora parecia mais intenso percorrendo o solo de maneira veloz.
Cavian saltou antes que o gelo alcançasse seus pés, carregou a pacificadora com a energia que fluíra em suas mãos e jogou a lâmina pra baixo, de maneira reta, fazendo com que a espada apunhalasse o chão.
A corrente percorreu o gelo, e a energia que se dissipara fez com que a lâmina de gelo que cobria a grama se transformasse em água, fazendo com que Yuki fosse obrigada a pular para trás para desviar do golpe.
- Novos truques, está começando a ficar interessante! - exclamou Yuki enquanto Cavian aterrissava ao chão, puxando a espada de volta para suas mãos.
Yuki juntou as palmas de suas mãos e com um dos punhos fechados, movimentou a outra palma sobre o ar, fazendo com que uma espada do mais límpido gelo se formasse no caminho. Partiu pra cima de Cavian, que a esperava com a espada pra trás, aguardando o ataque, em um movimento que herdara de sua mãe e de seu avô antes dela.
Quando Yuki se aproximou, ele finalmente desferiu seu ataque, mas antes que as espadas se confrontassem, Yuki usou a mão livre sobre o chão, levantando um muro de gelo que se despedaçou com o ataque de Cavian. A superfície opaca da parede de gelo por um momento escondera Yuki de sua visão e de repente ela surgiu por cima, rodopiando sobre sua cabeça. Ela o atacaria antes que ele estivesse em posição de se defender. Uma jogada inesperadamente previsível vinda de sua irmã.
Yuki só não contava com a quantidade de truques que guardara na manga. Ele já havia sentido o metal da fivela do cinto que circundara a cintura de sua irmã. Não era muito, mas a empurrou levemente pra longe, com toda a força que conseguira. A quantidade de metal era pequena e aquele tipo de magia não possuía a potência necessária para que pudesse atacá-la, mas certamente fez com que Yuki mudasse sua trajetória no ar, fazendo com que errasse seu ataque. A lâmina de gelo passou a centímetros de seu ombro esquerdo.
Ele puxou a pacificadora para si quando percebera que a parede que despedaçara instantes antes, havia engolido a ponta da espada e continuava crescendo como um organismo vivo. Como ela consegue controlá-lo sem sequer tocá-lo?, pensou rapidamente. De qualquer forma, como sempre, Yuki o deixara em uma situação em que ou deixaria que o gelo consumisse a espada, ou caso tentasse despedaçar o bloco de gelo com seu poder, criaria não só tempo, mas também a abertura o suficiente para que ela desferisse um ataque certeiro. Certamente ela já havia planejado aquela ação segundos atrás. Era um problema que precisava resolver depois.
Assim que se desvencilhou da espada, os ataques de Yuki se intensificaram, fazendo com que recuasse até a borda oposta do pequeno público que os assistia.
Ela parecia saber cada um de seus passos, mesmo com os novos elementos que jogara sobre o tabuleiro. A espada era uma de suas forças, seria a primeira coisa que ela tiraria de suas mãos, como inclusive acabara de fazer. O próximo passo seria lentear seus passos, já que ele nunca estivera tão rápido, o que ela também havia acabado de fazer. Anos antes a luta já teria terminado ali.
Mesmo sabendo como como ela agia, não conseguia dar nenhum passo à frente. Estava encurralado novamente. Teria que tirar proveito de uma situação que Yuki ainda não houvesse vivenciado, era o único meio, era como a surpreendera com seu primeiro ataque. Era o único jeito de vencê-la.
Ele ainda a sentia, não era como se a pacificadora dispersasse seu poder naquela situação. Talvez a densidade da parede de gelo a isolasse do meio externo. Assim, se a espada não iria até ele, ele poderia ir até ela. Um ponto de âncora, uma abertura.
No próximo ataque Cavian não desviou, segurando a lâmina de gelo entre a palma de suas mãos. Uma arte antiga dos combatentes landrinianos, um golpe perfeito para o que estava por vir. A lâmina era rígida como previra, mas forçou seus braços até que ela se partisse. Encarou Yuki com olhos atentos para seu próximo movimento. Ela posicionou o que restara da espada atrás de si e recuou como ele havia previsto. Não desperdiçaria a vantagem que possuía quando armada e não seria surpreendida outra vez.
Ele avançou, pulou sobre o ar antes que Yuki fizesse seu movimento. Um chute girado provavelmente forçaria com que se defendesse ou se afastasse. Óbvio demais. Ela ergueu os braços, para se defender. Uma mão ao lado esquerdo do rosto, a outra em riste. Quando percebeu o movimento de seus braços, ele puxou sua espada, fazendo com que seu corpo girasse em sentido oposto, a mudança de velocidade foi brusca e intensa. A guarda de Yuki estava totalmente aberta quando seu chute atingiu o rosto da irmã, fazendo com que a princesa se ajoelhasse ao chão, limpando o sangue que escorria dos lábios.
Quando Yuki encarou seus olhos novamente, não eram com qualquer ameaça. Parecia inesperadamente feliz, como se ele a houvesse presentado com algo que ela estivesse aguardando durante anos. Talvez, depois de todo aquele tempo, pela primeira vez, ela tivesse percebido que ele pudesse de alguma forma alcançá-la.
Yuki saltou para trás, em uma acrobacia de rara beleza. Cruzou os braços diante de si com os punhos cerrados e quando os abriu, uma leva de pássaros saltou de suas mãos. Cavian já estava muito próximo de uma das quinas do quadrado para que pudesse correr.
Agachou-se e levou a mão aos chãos, como Yuki o fizera antes, ainda que tivesse agarrado com firmeza o solo sob seus pés. A energia fluiu por seus punhos de maneira intensa, enquanto a areia abaixo da grama congelada se transformara em vidro entre seus dedos. Ele pulou ainda mais pra trás, atingindo o limite da arena, para que tivesse distância suficiente para seu ataque, e jogou os projéteis entre os dedos contra cada um dos pássaros que Yuki formara, fazendo com que se chocassem e se desfizessem no ar.
Quando viu, um novo bloco de gelo se formara diante de si, desenvolvendo-se em um instante em sua direção. A estrutura ceifou sua visão de Yuki por mais uma vez e ele saltou para fora da arena, alto o suficiente para que pudesse voar sobre o bloco de gelo. Puxou a pacificadora para si, para que pudesse retornar ao combate. Quando sua visão transpassou o topo da parede de gelo, ele pôde entender a razão de não ter conseguido se puxar de volta. A força com que tentara se puxar contra a pacificadora fora a mesma com a que espada havia chegado em suas mãos. Sua mão foi levada para trás assim como seu corpo em pleno ar. Yuki havia desfeito a estrutura que a prendia sem que ele pudesse perceber a tempo.
Acabara de aterrissar desajeitadamente ao chão quando encarou o sorriso contente da irmã, ainda que tivesse chegado tão perto, como nunca havia conseguido antes daquele dia.
- Vou ter que tomar cuidado da próxima vez – disse Yuki estendendo a mão ao irmão.
- Pude sentir o medo em seu olhar pela primeira vez – brincou ele, segurando a mão da irmã para finalmente se levantar.
Yuki riu.
- Como você é bobo, faísca, mas confesso que pela primeira vez superou minhas expectativas. Só não fique convencido...
- Prometo que vou tentar... – respondeu Cavian retribuindo o sorriso à irmã.
Yuki
Haviam ajeitado as poucas coisas que carregavam antes que deixassem as dependências do domo que os hospedara com tanta pacificidade. Fazia com que se lembrassem do buscavam na superfície, ainda que a artificialidade daquele lugar saltasse aos olhos e causasse estranheza a qualquer um que vivesse o que haviam vivido até então. As risadas despretensiosas, o amanhecer despreocupado e a beleza circundando seus olhares sem pedir nada em troca como nas memórias que iam se desvaneciam com o tempo. Tudo aquilo ficaria pra trás.
Bisco havia preparado uma escolta até o castelo e devolvera os respiradores aos seus donos. Cavian foi o primeiro a chegar no ponto de encontro, o mesmo pelo qual havia chegado dias atrás. Preferira sair pela manhã antes que o sol nascesse, evitando assim que se encontrasse com Lis antes de partir. A dor que carregava consigo já era grande o suficiente para lhe atormentar pelos próximos dias que viriam.
O grupo adentrou à carruagem subaquática, um veículo de corpo aberto com estruturas arredondadas que se ligavam pelas bordas de seus anéis. O chão era a única superfície rígida e as aberturas eram cobertas pela mesma estrutura transparente e bolhosa que cobria os tetos das ilhas que acobertavam a superfície seca de areia esbranquiçada.
Era espaçoso o suficiente dentro de seus três vagões e eram puxados por seis peixes de cabeça chata e corpos largos. Eram bem menos rápidos que os tubarões que os trouxera até ali. Eram como Bívios do mar.
Passaram pela cidade e Rixi se espremia contra a parede para ver tudo que seus pequenos olhos pudessem alcançar. Era ainda mais colorido de perto e ninguém se arriscaria a dizer, que depois de tantos anos, fosse ali que a normalidade encontraria seu lugar. Um passeio saudoso pelo passado. Com dedos apontados e sorridentes a visitantes não tão comuns. A animosidade propagada pela palavra dos vermelhos não criara qualquer raiz na realidade em que viviam. Não seria possível que aquelas puras expressões fossem capazes das atrocidades que foram distribuídas a qualquer bom ouvido em terra firme.
Finalmente, ao centro de todas as estruturas flutuantes, uma única e ofuscante estrutura ao chão. O lendário castelo seco ao fundo do mar, Crítias parecia ser imune aos martelos do tempo. Desde a era antiga, eram pouquíssimos os que tiveram o prazer de conhecê-lo fora das descrições repetidas dos livros. Fora o primeiro lugar que recebera aqueles que não poderiam viver abaixo da superfície. Sua estrutura permitiu que os Aquamarinus pudessem negociar os acordos em iguais condições, dentro de sua própria casa. Era o primeiro passo para a universalidade que um dia tentaram buscar. Um tesouro que seria selado novamente anos depois da queda da cidade das luzes.
O caminhar pela passarela de pedras peroladas os mostrava que adentravam o castelo como convidados e não como intrusos, o que certamente havia lhes encorajado a pensar que talvez um acordo fosse realmente possível. Ainda assim, o corredor lateral era tomado por soldados encouraçados alinhados, um ao lado do outro, imóveis como estátuas, sem que lhe dirigissem o olhar. As pontas curvadas das lanças apoiadas sobre piso lustrado lembravam grandes anzóis. Pescadores de qualquer um que ousasse ameaçar as águas calmas e escuras do domínio das águas.
- A que devemos a honra de tal visita? – questionou Mesai, sentada ao trono, que já era visto de longe antes que pudessem se apresentar. O coral tingido de escalas de laranja tinha pontas que lembravam uma grande coroa e era pelo menos duas vezes mais alto que a rainha de cabelos tentaculosos. Não era possível encarar seus profundos olhos redondos e profundos sem que se perdesse em seus pequenos universos infinitos e estrelados, os olhos que seriam o sonho de qualquer guardador e o pesadelo para qualquer um que tentasse enterrar qualquer dor. O robusto corpo ocupava o objeto de forma quase simbiótica, fazendo com que fossem separados somente pelos tons escuros do revestimento gelatinoso que cobria a rainha da base dos tentáculos espalhados ao chão dos poucos degraus que levavam ao trono até o topo de seu pescoço. Provavelmente era assim que conversavam com os deuses antigos, e talvez Mesai fosse a que mais se aproximasse da imponência divina presenciada na era antiga.
- A saúdo, minha rainha – começou Yuki enquanto todos se ajoelhavam diante do trono. - Viemos alertá-la de um mal que tende a assolá-los em breve. Como já deve saber, encontramos os planos de entrada para este reino na mão dos reinos aliados que hoje dominam a superfície, o que indica um ataque à sua nação pode estar próximo.
- Seu pai já planeja isso há anos, príncipes de Aquia.
- Não só ele, minha rainha – corrigiu Yuki. - Tenho certeza de que também tem ciência de que me juntei aos que se opõe a este regime há alguns bons anos. Apenas peço que meus laços de sangue não afetem a imparcialidade das informações que carrego.
- Sei de muitas coisas, princesa – disse Mesai. - Sabia dos resultados de agora antes que saísse das fraldas anos atrás, mas ainda assim, mesmo conhecendo cada intenção desses que se vendem como os novos deuses, não consegui impedi-los quando tudo não passava de um sonho. Foram tantas vidas perdidas na cidade da luz, princesa, outros reis provavelmente levantariam pedras com nomes que sequer saberiam se recordar. Eu carrego em minhas mãos sujas cada gota de sangue que deixei que fosse derramada, assim como as faces desesperadas, os sonhos e nomes de cada um que enviei de volta para as águas profundas naquele dia, todos aqui frescos em minha mente, como se estivessem me encarando, me cobrando pela confiança que depositaram em mim - completou com palavras carregadas de ira.
- Outros também são acusados injustamente de traição. minha rainha – continuou ela com a frieza nas palavras que nunca lhe faltara. - Se estes se unirem para liberar os que hoje definham nas correntes da tirania, tenho certeza que eles se juntariam a nós, minha rainha. Talvez até mesmo os exércitos que eles têm em mãos desistiriam de lutar. Este mundo nunca teria se unido contra eles com tamanho vigor. Eu, como uma das líderes dos libertos, garanto que todas as nossas forças seriam destinadas a esse fim, cada um de nós, homens, mulheres, crianças... Com seu apoio, com o apoio dos Natelurianos, a situação poderia ser revertida, minha rainha. Sei que ainda me falta a vivência das coisas que já presenciou, mas a sabedoria que carrega consigo sabe que não há mais nenhuma força a surgir que se contraponha ao regime e que nossa melhor oportunidade ainda se encontra no tempo em que essas forças ainda coexistem.
Mesai gargalhou.
- Ahh, meus pequenos forasteiros... – suspirou a rainha. - Como admiro a coragem de vocês... Muitos não a teriam, muito menos em minha presença – continuou oscilando no ar os dedos da mãos direita, encarando-os curiosamente. - Confesso que que já tive essa chama no olhar... A esperança na salvação pelo poder de nossas próprias mãos, mas sinto dizer que aqueles que habitam a superfície não dignos dela – alertou enquanto a face pacífica fora tomada pela escuridão do mar profundo. - Eles abdicaram dessa salvação quando não se ergueram para salvar seus filhos... Quando não nos apoiaram quando perdemos os nossos tentando fazer o que se negaram... No fim, eles ainda nos tratam como monstros por acreditar nas palavras vazias de quem os acorrenta. Nautilus foi dizimada e levada ao pó como a casa de traidores e até hoje o sangue de nosso povo pinta as paredes daquelas ruínas. Depois de tudo que fiz por eles, vocês ainda acham que seria justo que eu lançasse mão da vida de meus filhos mais uma vez por uma causa perdida?! – esbravejou a rainha fazendo com que seus cabelos se contorcessem. - Seria justo pedir para que eles saiam do paraíso que construíram para salvar um povo que subjugam seus iguais?!
- Entendo, minha rainha, mas...
- Não há poréns, princesa... – interrompeu Mesai com palavras que pouco se abrandaram. – Disse que não sou sábia em escolher o caminho que sigo, mas parece me oferecer um ainda pior? Como espera que eu apoie a sua causa? Confesso que esperava mais pelo que escutei de você. Esperava ouvir coisas que eram desconhecidas aos meus ouvidos, mas o que me traz é somente aquilo que eu já sabia.
A rainha tinha razão, ela nunca estivera naquela situação. Queria salvar os libertos, mas ela não conseguiria convencer Mesai se ela mesmo concordava com a governante das águas profundas. Provavelmente se estivesse no lugar da rainha não tomaria qualquer decisão diferente daquela que tentava rebater.
- Com todo respeito, minha rainha, não parece que tenha entendido que não se trata de brigar por nós, mas também por vocês. A cada minuto que perdemos são eles que se fortalecessem. Uma hora ou outra eles chegarão a vocês, minha rainha, assim como fizemos.
- O que lhes ofereço não é nada a mais nem nada a menos o que ofereço ao meu próprio povo – ignorou Mesai. - O exílio, completo e irrestrito em nossas terras. Como puderam ver, não precisamos mais nada da superfície... Poderão viver aqui até que seus ossos se juntem ao solo sob seus pés, assim como deseja o tratado...
Cavian desviou o olhar rapidamente ao escutar o fungar de Rixi sobre o ombro de Narthus ser contido pela robusta mão do gigante.
- Eles são mais perigosos do que pensa, minha rainha, se negar apoio aos libertos, pode ser que nunca mais tenha chance de enfrentá-los – confrontou Cavian inesperadamente, fazendo com que ela esboçasse um sorriso diante do fracasso. Como sua mãe a alertara certa vez, havia alguém capaz de liderar Aquia ali, um que talvez tenha sido moldado pelas adversidades que a realidade dentro das paredes daqueles castelos nunca tivesse tido o poder de criar.
- Eu lutei nessa guerra com minhas próprias mãos, meus jovens. Veem? – disse Mesai abaixando a gola gelatinosa enquanto mostrava a cicatriz no pálido e roliço pescoço. – Por saber do que são capazes é que ressalto, caso ainda não tenha ficado claro, que não moverei qualquer dedo para ajudá-los, meu povo não irá ajudá-los, talvez os criadores do tratado em sua onipotência pudessem, mas temo que eles já tenham feito seu sacrifício e deixado o destino de todos na mão na mão de tolos...
- Tem razão no que diz, minha rainha, os que são tolos continuarão sendo tolos, mesmo que esfregue a verdade em suas faces, mesmo depois que isso acabar, mesmo depois que esse trono não seja mais ocupado por vossa alteza, ou que seus inimigos pereçam, ainda haverá aqueles que se aproveitarão deles. Podemos não ter trazido ao seu conhecimento fatos desconhecidos por vossa majestade, mas quando agimos conforme nossos inimigos esperam, não estamos sendo muito diferentes desses que julgamos. Era exatamente isso que eles esperavam quando espalharam as falsas palavras sobre nós, que nossa sede por vingança deixasse com que pereçam em suas mãos.
- Cuidados com as palavras, princesa... – ameaçou Mesai finalmente se levantando, fazendo com que os soldados esticassem suas lanças ao corredor. - Os tratei com a cordialidade que não esperaria ser reservada a mim, mas não aceitarei que desrespeite a mim ou esta casa – continuou a rainha deslizando os tentáculos sobre a escadaria vagarosamente, enquanto observava as pequenas criaturas ajoelhadas diante de si. - Vocês lutam uma guerra que já acabou, só não sabem disso ainda. Quanto a você, princesa Aquiriana... – disse a rainha a encarando como se as nébulas estampadas em sua face tentassem lhe roubar a alma. - Guarde seus conselhos para seu povo, eles parecem estar precisando deles mais do que eu.
Ela assentiu cumprimentando a rainha e mantendo sua boca fechada. Não havia mais qualquer palavra a ser dita. Qualquer uma delas além dali seria um passo incerto em direção ao abismo do qual queriam se manter distantes. Que o povo abaixo das águas continuasse neutro. Já tinham inimigos demais pra lidar.
- Killsqual, conduza nossos convidados à superfície! – bradou a rainha enquanto retornava ao trono, dando-lhes as costas. - Acredito que não devam ficar para o jantar.
- Como deseja, minha rainha – disse o homem-tubarão assentindo com a cabeça.
Cavian
Cavian caminhava pelo veículo bolhoso, por onde se espalhavam os demais pelos bancos multicoloridos de corais forrados de esponjas macias que se encaixavam sem espaços, como peças de um quebra cabeça. Só o silêncio e a frustração lhe faziam companhia. Até os olhos curiosos da fada parecia ter perdido o encanto de outrora. Era tão óbvio que daria certo que talvez ninguém tivesse pensado, com exceção de Yuki, no que fariam caso tudo desse errado. Sua irmã provavelmente detalhara cada caminho possível, era assim que nunca se surpreendia com nada.
No primeiro vagão, Narthus parecia orar com os olhos fechados, assim como de costume. Rixi lhe fazia companhia do lado oposto, balançando as pequeninas pernas a frente do banco.
Ao menos uma rara e longa viagem, no conforto daquelas águas não seria de todo mal.
- Velha gagá, quem ela acha que é? – resmungava a fada consigo mesma, rabiscando de forma raivosa sobre seu caderno de notas. – Não vou mexer um dedo – disse remedando a rainha. – Quem disse que a gente precisa de sua ajuda, velha rabugenta? – continuou Rixi sem que tirasse os olhos do papel. Ele sorriu disfarçadamente quando viu o desenho da rainha com olhos esbugalhados e grandes dentes que sequer existiam.
No próximo vagão Mika dormia virada ao lado, enquanto Sirius balançava despreocupadamente uma pequena concha entre os dedos enquanto observava o caminho. Ele nunca parava com aquilo?, pensara ele enquanto o ladino o cumprimentava com a cabeça.
No último espaço do veículo se encontrava Yuki. Parecia revisar alguns mapas de couro que carregava em sua bolsa, espalhados abertos por ali. Retirou um deles para que se sentasse perto dela.
- Está ocupada? – questionou ele.
- Diga, faísca. Estou revisando algumas coisas que talvez possam dar certo... Se tivéssemos uma chance de chegar perto o suficiente... Uma que seja... – disse Yuki, pensativa, sem que o encarasse.
- Tudo é mais fácil quando você está por perto, sabia? – interrompeu ele, conseguindo a atenção da irmã, que finalmente sorriu em sua direção.
- Me desculpe, irmãozinho, mas tenho a sensação de que vê em mim uma pessoa que não sou. Aliás... Talvez eu seja mais parecido com o nosso pai do que pensa.
- Que maluquice é essa? Endoidou? – repreendeu ele franzindo o cenho.
Yuki riu.
- Achei que tivesse perdido essa ingenuidade de acreditar que todos têm esse seu coração mole, faísca... Por todo esse tempo, mesmo agora... Há algo aqui dentro que nunca esteve no lugar, sabe? – disse Yuki apontando para si, enquanto amarrava a boca.
- Se for em relação às decisões de nosso pai, sabe minha opinião... Eu sempre achei que ele...
- Não tem nada a ver com isso, Ian... – interrompeu Yuki. – Por incrível que pareça, isso é algo difícil de explicar pra mim. Essa coisa que sentem, eu acho que não tenho ela dentro de mim, entende? Não é como se eu tivesse essa raiva que tem pelo que fizeram, ou essa tristeza que sei que deveria ter quando a mamãe e Persus partiram, é como se de alguma forma tudo fosse mecanizado, artificial... A mamãe era a única que entendia isso. Quando sentávamos naquela mesa e jogávamos por horas, não era sobre o jogo que era me ensinava, era sobre quais decisões eu deveria aprender a tomar, ela sabia que sem uma bússola moral eu me tornaria igual a nosso pai.
- Mas você nunca foi igual a ele, Yuki, veja o que ele faz, veja o que fez... Não faz sentido que diga essas coisas.
Yuki sorriu.
- Sabia como ela era cuidadosa com as palavras... Ela nunca me disse que eu seria a melhor rainha, Ian, e sim a mais vitoriosa. Na minha cabeça limitada não conseguia diferenciar essas duas coisas, mas foi então que depois de alguns anos andando por aqueles acampamentos que eu pude finalmente entender as palavras que achava ter entendido quando pequena.... Ser o melhor rei ou rainha de Aquia nunca foi a resposta, porque ela nascendo fora dali sabia que precisávamos ser mais do que isso e que eu só poderia entender tais coisas quando saísse dali, quando visse os resultados das minhas vitórias diante dos meus olhos. Só assim eu teria uma chance de me tornar uma pessoa diferente dele. Ao contrário de mim, você sempre entendeu isso sem nunca precisar pensar sobre. Era por isso que ela nunca me ajudou a conquistar o que eu queria. Ela sabia que poderia fazer a cabeça de todos ali, ela faria com que nosso pai não tivesse saída, ela com certeza tinha um plano pra isso. Só não o fez.
- Ela não faria isso com você, Yuki, sabendo o que aquilo significava pra você. Acho que você só está viajando em suas teorias mirabolantes como às vezes faz.
- Pelos deuses, faísca! – esbravejou. – É isso que me irrita em você. Você não consegue ver os defeitos nas pessoas, nem os anos naquela masmorra conseguiram arrancar essa mania de você. Você acha que se eu precisar sacrificar você pra derrotar nosso pai eu não o faria?
- Você acharia outra solução... Sempre a encontra... Estou aqui por sua causa, não?
- Será que talvez não seja por que nossa mãe me fez prometer que eu te buscaria independente da minha opinião?... Pra ser sincera, eu não achava de forma alguma que estaria realmente vivo...
- Pode arrumar as desculpas que quiser... – disse ele franzindo o nariz.
Yuki riu.
- Você é insuportável, sabia? Vamos lá, vou te explicar mil vezes até que entenda. Lembra quando éramos pequenos, quando acabei enfrentando Malfien?
- Como se fosse hoje...
- Pois então, naquele dia, se não fosse pelo chamado de Nymo eu teria partido seu braço em pedaços. O som dos ossos se quebrando, a dor do seu olhar, tudo parecia tão justo e tão leve em minha mente, que em nenhum momento sequer hesitei.
- Mas era entendível, Yuki, ele ...
- Você o faria? – interrompeu Yuki novamente.
- Provavelmente não, mas é difícil me colocar nessa situação.
- Por mais que me diga o contrário, eu não consigo me ver diferente dele. Eu não sei o que faria se tivesse alguém do meu lado que atrapalhasse meus planos, como a mamãe fez com ele, eu não sei o que faria com um filho que desobedecesse a um acordo entre reinos, como você fez com ele, não acho que tenhamos os mesmos propósitos, mas para atingi-los, eu não consigo me ver tomando decisões diferentes das dele, entendeu? – disse Yuki espremendo os olhos, como se tentasse fazê-lo entender. - Não pude ser rainha, tudo bem... Eu aceito isso, agora parece que não consigo nem ser diferente dele? No fim eu tenho certeza que quando chegar a hora eu tomarei a decisão errada, Ian, simplesmente porque não consigo enxergar além desses malditos números... – resmungou sorrindo. - Por mais que eu e ela tenhamos tentado, parece que ser impossível que eu me liberte desse destino.
Era lógico pra ele que Yuki não tomaria as decisões de seu pai. Talvez não fosse bom em entender o que esperar das pessoas ao seu redor, mas era estranho pensar que talvez a única pessoa que ele realmente conhecesse era sua irmã, a provavelmente mais enigmática de todas elas.
- Engraçado... Você diz que não sei das coisas, mas não conseguiu fazer nada diferente do que eu esperava de você... – finalizou ele rindo, fazendo com que Yuki franzisse os olhos
- Esqueça... – suspirou Yuki, meneando a cabeça e pegando um dos mapas de em mãos. - Venha aqui. Está vendo esse local? - questionou Yuki apontando para as marcações que delineavam o couro, enquanto ele assentia. Eram escuras como queimaduras, ainda que não houvesse nenhum apontamento ali que indicasse qualquer coisa, nem símbolos, nem nomes... Era mais um desenho metrado do que qualquer outra coisa. – Esse é o acampamento mais próximo que temos, Makia. A partir dele podemos chegar a Arabot, é o que chamamos de último céu – disse ela pegando outro dos mapas em mãos. – Quando chegarmos lá, pretendo discutir nossos próximos passos.
- Não entendi... Posso estar enganado, mas essa montanha longa e comprida aqui não é Reez?
- Exatamente...
- Mas como isso por levar a isso? – disse ele, cruzando o dedo entre os mapas, confuso.
- Temos alguns meios de locomover pequenos grupos entre os refúgios, é como coordenam todos de uma só vez.
- Ainda assim, sem os povos do mar, voltaríamos à estaca zero.
- Para ser sincera, nosso plano nunca foi depender deles, Ian... Não foi à toa que repassaram a informação de seu paradeiro a Persus. Os libertos sabem que os Aquirianos nos apoiariam se derrotássemos nosso pai. Se reconquistássemos o poder de governar Aquia, não só ganharíamos um dos mais poderosos exércitos deles, como suprimiríamos suas forças. O povo precisa somente de uma fagulha de esperança, Ian, se dermos isso a eles, uma pequena vitória que seja, conseguiríamos equalizar essa guerra.
- Mas pra isso precisaríamos achá-lo, correto?
- Bem... Não é como se o problema fosse só esse, mas isso também vem sendo uma pedra no nosso sapato. Não está sendo fácil conseguir informações, mas o que chega até nós é que ele e os demais generais têm aparecido cada vez menos em público. O sumiço de usuários da magia também tem sido cada vez mais frequente, até mesmo entre aqueles que os apoiam. Há algo grande vindo, Ian, só não sabemos ainda o que é... É muito mais do que controlar tudo e todos...
- Se eles controlarem tudo, ninguém mais poderia ameaçá-los, não? Parece simples pra mim.
- É esse o ponto, meu irmão... Já não podemos. Ainda assim por que precisam invadir esse reino? A cada minuto que passa, a distância de nossas forças só aumenta... – refletiu Yuki. - Supondo que eles atacassem os Aquamarinus, por que se arriscariam em um ambiente tão desfavorável? Por que abririam mão de uma vitória tão fácil na superfície? Parece que estão se apressando por algo, só não faz sentido que estejam...
- Bom, se me permitem - disse Sirius chegando até os dois, agachando-se entre ambos, com um sorriso de quem estava prestes a aprontar algo.
- Não permito... – retrucou Yuki.
- Pude escutar parte da conversa e temo que inesperadamente eu concorde com você, princesa – ignorou Sirius, fazendo com que Yuki franzisse o nariz. – Como ressaltou, diria até que brilhantemente, ninguém abriria mão de uma vitória fácil se o tempo de fato fosse de fato favorável a eles, ou seja, o que posso garantir é que estão correndo contra o tempo...
- Quem sabe não possa nos ajudar a solucionar o mistério?... – sugeriu Yuki.
- Infelizmente sou o senhor do óbvio, princesa. Sabe melhor do que eu que Shasak nunca dividiria informações, muito menos comigo... Aliás, para ser até mais sincero acho que nem eu mesmo confiaria em mim... – observou Sirius rindo de si mesmo. – Masss... Sou bom em ler movimentos, e sei que eles têm pressa. O baixo clero nunca se reuniu tanto em tão pouco tempo, nunca estiveram tão apressados... Pressionados... – continuou Sirius em tom de suspense, fechando um dos punhos no ar. - É como se estivessem chegando perto de algo, princesa. É o que sei...
- Isso sugere que não demorarão muito tempo até que lancem suas cartas. Poderia ter ajudado se tivesse falado isso mais cedo na presença da rainha – observou Yuki.
- Sim, daí teríamos que explicar de onde tiramos essa informação e eu provavelmente seria enforcado minutos depois – retrucou Sirius espremendo os olhos.
- Eu trocaria sua vida pelo apoio dela um milhão de vezes... – brincou Yuki.
Sirius gargalhou ironicamente, espremendo os olhos enquanto encarava a princesa.
- Talvez não tenha pensado no trabalho que teria em encontrar alguém que a fizesse sorrir tanto – disse Sirius de maneira convencida.
- Parece que achou alguém para irritá-la além de mim, minha irmã – observou ele.
- Exato, vou pedir para que a carruagem dê meia volta... – observou Yuki seriamente, enquanto ameaçava se levantar.
- Não, não, não... – suplicou Sirius rapidamente. - Foi uma brincadeira, princesa – justificou o ladino, agarrando as mãos de Yuki, enquanto ele e a irmã caiam na risada.
- Achei que o coração gelado fosse herança somente dela, príncipe dragão – debochou Sirius com um sorriso amarelado.
O mar se tornara escuro como um beco fechado, ainda que pequenas luzes andassem pelo seu exterior. O medo e o belo se juntavam em uma pintura que se movimentava aos olhos daqueles que ainda se recusavam a adormecer para admirá-la. Talvez tivessem aproveitado melhor a noite se soubessem o que os aguardava no dia seguinte.
Yuki
A praia parecia tranquila quando emergiram, o céu azul e aberto prometia um dia monótono. Assim que a cúpula se abriu, todos saltaram e nadaram até a costa, enquanto as embarcações sumiam no horizonte puxadas contra o fundo das águas de ondas calmas. Yuki não parava de pensar, precisava fazer com que Cavian chegasse aos libertos, precisava saber de Quazar o que pretendeu mandando Persus no seu lugar. Não havia dúvida das competências de seu amigo, mas fora o próprio Quazar que a mandara em uma missão sem tantas dificuldades dias antes. Não que não existissem, mas coincidências demais, mesmo que sutis, incomodavam-na. E ela já tinha descoberto uma trilha delas até ali.
No fim, o plano de uma frente ampla contra os reinos aliados estava descartado. Obviamente a repressão dos povos da superfície contra os Aquamarinus cobraria seu preço. Fora brutal e por tempo suficiente para que as águas dos mares, antes tranquilas, não se tornassem tão seguras a quem quer que as visitasse.
A areia fina e os ventos que sopravam em seu rosto eram reconfortantes. A beleza das florestas que vira era sem dúvida indiscutível, mas a prisão mais bela do mundo continuava a ser uma prisão e nem a mais bela paisagem poderia mudar a verdade.
A princesa torcia os cabelos contra a areia fina e branca quando as gotas que caíram revelaram mais detalhes do que tinham intenção. Agachou-se e cavou um pequeno buraco com as mãos. A terra havia sido movida recentemente por ali. Era como se tentassem apagar os rastros, mas nem mesmo os pequenos detalhes passariam despercebidos aos seus olhos. Cavalos, sim, alguns deles haviam passado por ali há poucos dias, animais velozes para buscas rápidas. Provavelmente não se tratava de uma comitiva distante. Não hesitou em acenar aos companheiros que ainda se ajeitavam por ali. Sirius acabara de botar a bota de couro nos pés quando também vira seu aceno. Ela levantou a mão direita acima da cabeça, torcendo-a contra o vento enquanto todos observavam atentamente pequenos pássaros se formando na palma de sua mão. Os mesmos que haviam visto em outras oportunidades, mas menores do que o habitual. Ela fechou os olhos enquanto alçavam voos e se espalhavam pelo ar, ao mesmo tempo em que Cavian e os demais começaram a retornar. Haviam dado já alguns passos quando uma seta atravessou um dos grows de gelo.
- Voltem para as águas rápido! – gritou ela despertando rapidamente, dirigindo-se em direção a Cavian e aos outros, ainda que a breve corrida cessasse segundos depois.
- Tsc...Tsc...tsc... Ora, ora, se não é minha fugitiva favorita... – ironizou Shasak finalmente se revelando contra as rochas mais distantes, fazendo com que Sirius também parasse, assim como os demais.
Inúmeros soldados se revelavam acima e atrás dos rochedos perto dali. Melgar também havia sido puxado pelas algemas que circundavam os roliços pulsos. Suas chamas pareciam ter sido apagadas pelo poder do metal, assim como as das crianças ligadas a ele por uma longa corrente. Os pequeninos eram robustos como filhotes de urso e seus olhos assustados procuravam abrigo entre sua face e a de Melgar. Uma situação provavelmente nova pra eles, ainda que fosse aterrorizadora para qualquer um que tivesse a oportunidade de experimentá-la.
- Tenho a impressão que teremos o mesmo resultado de sempre – brincou ela, parecendo ter a situação sob controle.
- Ah, minha cara... – disse Shasak dando alguns passos em sua direção. – Essa é beleza da vida, todo dia é um novo dia para recomeçar. Tantas vezes me deixou sem saída, que finalmente chegou a minha vez de deixá-la ao sucesso de suas próprias escolhas.
- O projeto dos libertos continuaria com ou sem mim – retrucou ela. - Me matar aqui não fará qualquer diferença pra nós.
- Vocês libertos... São tão... – disse Shasak esfregando as mãos caminhando em direção a Melgar. - Rústicos, não são? Tão bestiais... Só pensam em morte, em sangue... Não que eu esperasse mais... De forma alguma... Para ser sincero, até confesso que tanto você quanto suas crianças rebeldes não geram nenhuma preocupação a mim, tampouco aos meus superiores.... Eles talvez sequer saibam quem são, com exceção é lógico de Bahamut que criou crianças tão problemáticas... Tsc, tsc, tsc... Exemplos errados, meus caros... Devem ser sempre severamente punidos, simplesmente para que a ordem natural seja mantida... E é pra isso que estou aqui... – explicou Shasak em tom professoral enquanto levava a mão ao queixo de Melgar, levantando o rosto envergonhado do anão, que relutava em encará-la. – Para que se lembrem que mortais não devem tentar tomar o lugar de deuses – continuou arrancando as luvas e as jogando ao chão, revelando as felinas mãos de pelos curtos e sedosos. – Sirius, Sirius, Sirius, um trabalho tão promissor, é uma pena que o tenha jogado fora por qualquer coisa que falsamente o prometeram.
- Estive os estudando para você – disse Sirius, indo em direção a Shasak para os olhos surpresos de todos. - Sabia que nos encontraria, meu mestre. Aproveitei para coletar informações sobre esses vermes sem que percebessem.
Shasak gargalhou.
- Interessante... – disse Shasak esfregando os dedos contra a barba felina. – Me conhece bem... Sabe que meu coração benévolo não aguenta punir ninguém injustamente. Por isso lhe ofereço uma chance de redenção, arranque a cabeça dessa rebelde e traga até mim.
- Me tiraram todas as armas, meu mestre, seria impossível que eu o fizesse... – justificou Sirius.
- Ah, claro... Me desculpe meu caro. Estou um pouco distraído hoje... – disse Shasak sorrindo, enquanto arrancava uma das adagas de seu cinto, girando com destreza e apresentando o cabo em direção a Sirius.
Ela percebeu a respiração de Cavian se acelerando no ritmo dos passos de Sirius em direção à Shasak.
Sirius pegou a adaga das mãos de Shasak, e se voltando na direção dela, deu uma piscadela, antes de se virar rapidamente com a lâmina em direção ao pescoço de Shasak. Shasak aparou o punho armado com uma de suas mãos e com a outra, deu um golpe contra a garganta do ladino, fazendo com que este caísse de joelhos, abraçando o próprio pescoço com as mãos enquanto tentava puxar o ar que lhe faltava nos pulmões.
- É uma pena... Tsc... – resmungou Shasak com uma expressão desgostosa. – Achei que conseguisse mentir melhor... Todos o elogiavam tanto. Nem mesmo as rápidas mãos de que tanto se orgulha conseguiram fazer algo que pudessem me impressionar... Acho que os boatos acabaram fazendo com que eu superestimasse, você sabia? Assim como aquele duende de palavras fáceis. Fiquei surpreso que logo ele, tão apegado aos prazeres da vida, pudesse estar ajudando seu grupinho de desajustados. Sempre tão discreto, inclusive aos meus olhos – completou desconsolado.
- Tenho uma proposta a lhe fazer... – disse ela diretamente. – Deixe com que saiam livres daqui e me entregarei sem contestar, o que acha?
- E o que ganho com isso, princesa?... Já tenho todos vocês em minhas mãos.
- Bom, por mais que tenha um exército em suas costas, você sabe que ainda há uma pequena chance de sairmos vitoriosos, ainda que provavelmente com algumas baixas. Mas já imaginou a vergonha que seria explicar isso a quem quer que fosse? Além disso, minha cabeça seria o prêmio perfeito, você capturaria a mais procurada dos libertos, além de ter Rizar em suas mãos, a quem poderia atribuir a morte de Splenze ao seu povo, demonstrando a força dos reinos aliados de uma vez por todas. Eu não tenho qualquer dúvida que sairia ovacionado por seus pares e seus subordinados.
- Yuki! Por favor, não faça isso... – implorou Cavian.
- Você e Sirius... E deixo com que o restante fuja, que tal? – propôs Shasak, ignorando Cavian.
- Terá somente a mim, Shasak, sabe que se trata de uma oferta irrecusável. Poderá pegá-los daqui um tempo. Não será o mesmo comigo.
- Ahhhh... – murmurou Shasak com um sorriso de que transbordava pelo olhar. – Se fosse qualquer outra pessoa.... Eu diria que havia perdido sua sanidade, mas não você, não, não, não, definitivamente eles não sobreviverão por muito tempo...
- Um motivo a mais para aceitar minha oferta – confrontou ela novamente, enquanto Sirius recuperava o fôlego e se erguia com dificuldades do chão.
- Escutem todos, não ousem intervir, essa é a melhor decisão e não deixarei com que mais nenhuma vida seja tomada hoje! - bradou ela em tom firme. – Não façam com que as coisas fiquem mais difíceis do que já estão, entenderam? Não quero ter que contê-los de alguma forma. Sobrevivam mais um dia e depois mais um, e depois mais outro, até que alcancemos o calmo amanhecer – continuou ela, repetindo um dos ensinamentos repetidos todas as manhãs aos mais jovens. – Quanto a você, Shasak, tome logo sua decisão ou farei com que seus arqueiros se tornem belas esculturas de gelo.
- Eu aceito!... – exclamou rapidamente, encarando os rostos desesperados com satisfação. – Soltem-nos – ordenou aos soldados, que abriram as correntes de Melgar e dos pequenos, que correram em direção à Yuki.
- Nossa vida não vale isso, minha senhora. Eu a traí... – revelou Melgar, desesperado, ajoelhando aos seus pés, enquanto as chamas voltavam ao seu corpo. – Eu contei por onde viriam, minha senhora.
- Não faço isso por você – disse ela com olhos raivosos segurando os pulsos do anão e os congelando até que perdessem o brilho. – Você terá o que merece em breve... Seja ao menos responsável e deixe as crianças com meu irmão.
- São meus filhos, minha senhora, não faça isso, eu lhe imploro... – suplicou Melgar com os olhos chorosos.
- Você não é alguém confiável para cuidar delas, na próxima vez que te ameaçarem oferecerá elas em troca?
- Não, minha senhora, por favor, não diga isso... – choramingou o pequeno homem.
- Chega, Melgar! – exclamou zangada. - Se acha que me deve algo por minha vida, me faça esse último favor – solicitou antes de desviar seu olhar e andar em direção a Shasak.
- Obrigado, senhoras e senhores, nos veremos em breve – cumprimentou debochadamente Shasak se inclinando à pequena multidão de braços abertos, enquanto todos o encaravam enraivecidos, ainda que imóveis como ordenado.
Ela havia sido clara em sua mensagem e talvez houvesse algum jeito de salvá-la depois dali, ao contrário, um confronto como aquele seria um banho de sangue, com chances de sucesso tão pequenas quanto os grãos de areia sob seus pés.
Todos se sentaram sobre o chão de areia. Os corações devastados tinham que se contentar com o som do quebrar das calmas ondas. Sobreviveriam mais um dia.
A CHAVE E OS LEÕES
Cavian
- Ei, Cavian, fique calmo, iremos atrás dela – disse Narthus, tentando acalmá-lo.
Cavian sorriu desconsolado.
- Não ouviu o que ele disse? – retrucou enfurecido, esfregando os cabelos sobre a testa, tentando pensar em algo que fosse útil - Capturaram Rizar, agora Yuki... Nem eu sei onde ficam os libertos, ou pra onde possam ter a levado...
- Perdoe-me, meu senhor, não pude evitar, nunca achei que pudessem nos achar naquelas cavernas – murmurou Melgar desesperado e ajoelhado ao chão. - Oberor sempre andou por elas com liberdade, nunca respirando o ar externo, nunca saindo dos nossos limites, mas eram tantos, meu senhor, vieram por todos os lados como formigas. Peço perdão, meu senhor, a senhorita Yuki sempre foi gentil conosco... – justificou Melgar com os pequenos, que choravam mais atrás.
Um inclusive carregava a bússola que Cavian vira outro dia, devia ser ele o que sonhava em ser explorador.
- A criança não tem culpa. Eles poderiam ter nos achado com ou sem vocês – respondeu ele, respirando fundo enquanto tentava se acalmar.
- Ei, pequeninos, venham comigo, vou mostrar a vocês alguns truques – disse Rixi tentando desviar a atenção deles.
- Ouvi por vezes Splenze falar das nobres execuções, Cavian, elas sempre acontecem em Blackhelm. Deve conhecer o lugar – observou Mika.
- Ela tem razão, é pra onde devemos ir se quisermos encontrá-la... – concordou Sirius, revirando uma concha sobre os dedos enquanto encarava o mar. A aparência sempre sorridente adotava um semblante sério desta vez.
- Não tenho mais nada a te oferecer... – disse ele.
- Pare de choramingos, dragão... Não é como se eu pudesse sair por aí, Shasak só nos deu um tempo até que possa sair pra caçar novamente, sua irmã sabia disso... – respondeu Sirius.
- Ainda assim, já fugi daquele lugar, é uma fortaleza... Devem inclusive tê-la reforçado nesse período, não tenho qualquer ideia de como entrar naquele lugar, não sem que mil homens nos esperem a porta.
- Eu sei onde encontrar o caminho. As marcas naqueles mapas na sala de Shasak, todos eles tinham um ponto em comum... O selo da torre Una – explicou ele, jogando a concha em um estalo em direção ao mar antes que se levantasse esfregando as mãos umas contra as outras. - É para onde todos os sábios estão sendo levados, fica inclusive em Fisbia. Só precisaríamos de alguém que conheça o lugar.
- Perdoe-me interromper, meu senhor... – interrompeu Melgar com a voz ainda trêmula. - Mas conheço alguém que pode conhecer, era um homem calvo e grande. Conheci-o logo depois que ele e a senhora Yuki me salvaram. Tenho quase certeza que ele acabou sendo levado para esse lugar... Seu nome era Malgus, Galcus...
- Bacus? – questionou ele surpreso.
- Isso, meu senhor, esse era o nome! – exclamou Melgar.
- Era nosso professor quando crianças, um amigo da família...
- Se for confiável, deve servir – cortou Sirius. - Se está há bastante tempo no lugar, deve saber nos informar onde achar o que precisamos. Pensem... São dois líderes deles, acho difícil que não façam nada. O que podemos fazer é dar um jeito de fazer com que acessem o portão principal, assim os muros não serão mais um problema. Se conseguirmos fazer isso, talvez seja possível fazer algo, senão é bem provável que todos só sejam esmagados como insetos naquele lugar – alertou Sirius.
- Se é o que é possível, temos que tentar – disse ele assentindo.
- Posso ir com Mika e Rixi tentar avisá-los, ainda que não tenhamos qualquer ideia de como chegaremos a qualquer um deles – disse Narthus, enquanto procurava algo em sua bolsa.
Mika assentiu.
- Há um padrão nos esconderijos, florestas, cavernas, locais de difícil acesso – observou Mika. – Ao sairmos de Stormcrow, Yuki havia mencionado algum lugar para tratá-lo caso eu não pudesse – disse ela apontando para Sirius. – Era a três dias daqui e considerando que teriam recursos pra isso, tenho quase certeza que se trata de um dos esconderijos dos libertos. Se tivéssemos um mapa em mãos, a única coisa que faria sentido a essa distância com tais características é a floresta de Izilium, então se pudéssemos explorá-la com Melgar, bem... Acho bem provável que nos encontrem.
Sirius assentiu, impressionado, contorcendo a boca enquanto aplaudia.
- A muda tem um bom ponto! – exclamou Sirius levantando o indicador.
- Vivi nessas montanhas por toda minha vida, minha senhora – respondeu Melgar esfregando os pulsos ainda doloridos pelo gelo. - Sempre era a senhorita Yuki que vinha nos visitar... Mas tudo que estiver ao meu alcance terei o prazer em ajudar.
- Bom, então vamos – ordenou Sirius. - Cavian vem comigo. Você, o gigante, a nanica e o cabeça de fogo vão tentar encontrá-los. Avisem que traremos o que precisam e peça para que se preparem.
- Não é melhor esperar nosso sinal? Mal sabemos se teremos algo em mãos... – questionou ele.
Sirius sorriu.
- E sua irmã dizendo que era o otimista... – ironizou Sirius após se levantar enquanto alongava um dos braços. - Se quiser ir com eles, dragão, fique à vontade, se for comigo, só não me atrapalhe. Vamos, vamos, temos muito trabalho a fazer... – ordenou o ladino novamente enquanto batia palma com as mãos. Parecia estranhamente confiante, ainda que todos ali soubessem que caminhavam à beira do abismo.
- Boa sorte, meus amigos! – exclamou Narthus enquanto abraçava os dois contra o corpulento corpo, arrancando uma careta de Sirius, que inutilmente tentava se desvencilhar. – Isso é que para que nos encontrem na volta – disse ele entregando uma pedra de sinalização a cada um dos dois.
- Mantenham a sorte pra vocês, é provável que precisem mais do que nós – respondeu Sirius enquanto Mika arqueava a sobrancelha em um suspiro fundo.
- Pelo menos Rixi parece que encontrou alguém disposto a escutar suas histórias... – observou Narthus, quando apontou a cabeça em direção à fada que rodopiava pelo ar soltando fogos pelas mãos enquanto os olhos brilhosos e os sorrisos tortos voltavam à face dos pequeninos.
Cavian
Haviam chegado a um sótão de uma casa aparentemente abandonada, de volta à cidade das sombras. Não eram incomuns por ali, lares vagos pelos débitos de sangue, que se tornavam a casa dos novatos que chegavam por ali, em um ciclo macabro de renovação. Apesar disso, a casa em questão parecia intocada, pelo menos era o que as teias que saltavam entre as paredes revelavam.
A cidade havia de fato aprimorado suas defesas, haviam passado por alguns guardas pelo caminho, mas se esconder naquela cidade era o passatempo preferido de Sirius, ainda que soubesse que as paredes tinham ouvidos, a passagem seria breve e necessária para o que pretendiam fazer, pelo menos foi o que disse a Cavian antes de partirem.
- O que é este lugar? – questionou Cavian, já sentado sobre o chão de madeira empoeirado enquanto Sirius parecia juntar algumas coisas em uma bolsa velha.
- Um de nossos esconderijos em um passado não tão distante... – respondeu Sirius.
- Yuki me falou sobre o que aconteceu... Apesar de tudo o que houve, deve ser legal ter uma família grande como a sua.
- Sem dúvidas, pelo menos parece ser impossível que você não se dê bem com alguém.
Cavian sorriu, assentindo com a cabeça.
- Parece se dar bem com todos eles, digo... Ao menos foi o que senti naquele dia na taverna.
- Hoje mais do que antes, mas não foi sempre assim, infelizmente acabamos dando mais valor nas coisas quando já estão longe de nós. Você deve sentir mais saudades de sua mãe hoje do que sentia no passado não?
- Sem dúvidas.
- Assim como eu com meu irmão Tarkus. Era um dos pilares da nossa família, quando o perdemos, tudo foi tão... Não sei, foi ruim o bastante para fazer com os que sobraram tentassem se apoiar uns nos outros... As perdas fortalecem os laços que restam, dragão, e cada vez fica mais difícil de perdê-los. Nunca é mais fácil.
- Não gostaria de poder tê-los de volta? – questionou Cavian enquanto chutava uma barata que subia pela sandália amarrada, caminhando próximo a uma pequena janela quadrada, observando o luar de céu limpo longe dali sem que se aproximasse o suficiente.
- Não... – respondeu ele rapidamente para o rosto surpreso de Cavian, que até se virou com a resposta. – Tudo é causa e efeito, Cavian, se falasse que gostaria de ter meus pais que morreram de volta, nunca teria conhecido meu pai e meus irmãos. Se Tarkus não tivesse partido, não teria o amor que tenho por eles hoje e talvez tudo fosse pior. A vida é como um jogo em que sempre se perde, a melhor mão é aquela que faz você perder menos, mas que nunca sabemos qual é... – finalizou ele enquanto gargalhava, guardando uma caixa que acabara de fechar, repleta de cubos aparentemente coloridos, ainda que esmaecidos pela escuridão do lugar. – Reflete muito sobre a vida, meu amigo, deveria focar mais no que vive agora... – disse ele finalmente amarrando a corda em volta da bolsa.
- Ultimamente tem sido difícil...
Sirius riu.
- Se viver o bastante vai entender que isso o que faz é a receita pra viver uma vida de merda. Já te disse, você vai pensar, e pensar e pensar, e no fim, vai achar que poderia ter feito algo diferente. Esse seu cérebro quebrado – disse ele apontando pra sua própria cabeça. - Vai fazer você acreditar nessa mentira.
Cavian assentiu.
Ele não era como Yuki, divagava demais, pensava demais em coisas desnecessárias. Até a confiança citada por ela parecia ter sido perdida. Como ela poderia confiar nele para algo? O futuro de um mundo inteiro nas mãos de alguém que certamente faria as piores escolhas possíveis. Não havia mencionado na conversa, mas certamente havia caminhos claramente problemáticos, e pessoas que tinham o dom de escolhê-los como parecia ser o caso. Já havia pensado sobre aquilo, ela certamente só quis salvá-lo, não havia qualquer lógica de se entregar para poupar qualquer um que estivesse naquela praia naquele dia. Ela era a peça mais importante, Shasak sabia disso e ele deveria ter sabido também. Se Cavian não conhecesse o homem citado pelo anão de cabelos de fogo, não havia dúvidas de que ele o deixaria ali, seria um problema a menos pra lidar.
Cavian
Cavian e Sirius andavam pelas feiras de Fisbia após terem desembarcado junto a um comboio de mercadores. Eram o que haviam achado de mais rápido e seguro. Eram naturalmente forasteiros e vinham e voltavam a todo momento. Parecia adequado por hora.
As fronteiras pareciam aparentemente calmas por ali. Talvez reflexo da confiança que provavelmente transbordasse dos atuais governantes do reino. Como Yuki alertara, era provável que nada pudesse pará-los. Os capins dourados que enfeitavam as entradas da cidade continuavam mantendo seu brilho, ainda que as bancas mal cuidadas com produtos escassos e as faces cansadas de seus donos revelassem que o vigor de Fisbia já não era o mesmo de seus anos gloriosos.
Ao meio dia do solstício, no topo de Blackhelm, a retribuição para aqueles que arrasaram nossos lares e nossas famílias. O Kirin – diziam os cartazes que se replicavam pelas paredes de madeira e barro pelas mãos dos homens de capacetes gigantes e arredondados que se assemelhavam a grandes escafandros avermelhados. Eram também deles os jornais que circulavam e os sussurros que se propagavam pelas tavernas. Ao final dos próximos vinte e um dias, o sol iluminaria Fisbia com todo seu resplendor, a oportunidade perfeita para o espetáculo que planejavam.
Logo na entrada do mercado a céu aberto, era possível ver o topo da torre de livros que quase alcançava os céus, erguida no coração da cidade, a mesma que Sirius havia mencionado tempos atrás. Arredondada como as memoráveis torres dos tabuleiros e tão alta que fazia com que do ponto onde estavam parecesse ter roubado o próprio sol para si, compondo um glorioso e imenso farol. A torre Una.
Aproximaram-se o suficiente para entender seus mais minuciosos desafios. O muro não era o problema, não era mais alto do que uma pequena e jovem árvore, mas havia um jardim extenso entre este e a torre, circundando toda a sua extensão. Pelo portão de barras vazadas era possível ver que era longo o suficiente para que não conseguissem chegar às portas sem que fossem vistos por qualquer uma das torres de vigia.
- Alguma ideia? – perguntou Cavian a Sirius, observando escorado na parede de pedra onde jazia os restos de uma banca abandonada.
- Se conseguisse voar, nos ajudaria – brincou o ladino agitando uma lasca de pedra entre os dedos, o mesmo gesto que fazia sempre que precisava acalmar seus pensamentos, quase sempre caóticos.
- Podemos tentar roubar uma das carroças como fizemos com Splenze.
- Duas portarias, controle de segurança superior, o risco seria altíssimo – retrucou Sirius secamente, ainda encarando a estrutura.
- O subterrâneo?
- Não deixariam desprotegido, mas a vigilância deve ser menor. Ainda assim, acho difícil que não tenham alguma forma de informar aos demais. Vi o que fez com essa espada, acha que conseguiria cravá-la naquelas paredes? – apontou Sirius em direção à torre.
- É uma distância grande, talvez se eu cedesse um pouco mais de energia... Bom, acho que teríamos um único tiro pra tentar, já que não conseguiria puxá-la de volta.
- Deve servir. Eu tenho um lançador – revelou Sirius, arrancando um rolo de fios preso a um pequeno arpão. Só que além de ele não ter força o suficiente para chegar lá, ainda teríamos de dar um jeito de perfurar aquelas pedras. Vi como a espada cortou aquelas armas no castelo, talvez seja nossa melhor chance.
- E para volta? Ficaríamos sem nenhum ponto de apoio.
- Pegue, foi de meu irmão – disse Sirius entregando uma capa acinzentada dobrada cuidadosamente, com um broche metálico, um pequeno pássaro e uma lua, formando um círculo prateado, que prendia as pontas do capuz ao centro do pescoço. – É uma capa planar, ela suavizará a queda. Era como nos locomovíamos no passado.
- O mesmo símbolo do colar no seu pescoço... – observou ele com a capa em suas mãos, o traço do símbolo lhe era familiar, ainda que qualquer pássaro provavelmente o fizesse lembrar de casa.
- Sim, é uma forma de sempre lembrarmos os ensinamentos do velho, é o que nos manteve a maioria de nós vivo até hoje. Agora, voltando ao plano, basta que a gente consiga um ponto alto o suficiente para que flutuemos como folhas para fora do gramado. O topo deve servir – disse Sirius meneando a cabeça em direção ao topo da torre, fazendo com que Cavian finalmente saísse de trás da parede para que pudesse olhar.
- Parece bom... – concordou. - Se aguardarmos a noite, ninguém vai perceber que entramos ou saímos.
- Teremos que sobreviver escondidos naquele lugar durante um dia inteiro pelo menos, Cavian, me faça o favor de tirar seus sapatos barulhentos.
- Estou mais preocupado se esse cabo aguentará nós dois.
- Se você não conseguir levar essa sua coisinha a uma altura suficiente para que consigamos entrar direto por algumas daquelas janelas do tamanho da boca de vulcões, acho que mereceremos qualquer destino que seus deuses tenham pra nós – ironizou Sirius apontando as aberturas quadradas nas paredes da torre. Eram largas o suficiente para que os dois adentrassem sem maiores problemas.
Esperaram até que lua tomasse seu lugar no céu. Escalaram o lugar mais alto que puderam encontrar. O topo de uma chaminé de um galpão a alguns metros dos muros. Cavian podia sentir o cheiro de argila queimada que se impregnara na parede de tijolos. A espada já havia sido amarrada no arpão e Sirius quase queimara a mão quando parte da energia que Cavian transferira à espada percorrera o cabo em suas mãos.
- Cuidado com isso – reclamou o ladino, sacudindo a mão no ar.
- Me desculpe, nunca a havia alimentado dessa forma...
- Esqueça, apenas faça o que viemos fazer.
Cavian assentiu e começou a energizar a espada enquanto ela era tomada pelo brilho azul. Com o arbalete em mãos, Sirius fechou um dos olhos, apontando na direção da janela pela qual pretendiam entrar, prendeu a respiração e acionou o gatilho quando finalmente o projétil voou pelos céus. Cavian estendeu a palma das mãos e tentou repulsar a espada com toda a força que pôde. As marcas de seu braço se tornaram visíveis sob a camisa parda que vestia até que se esmaecesse. O pequeno brilho azul não era tão visível sob o luar, mas viram quando a espada começara a perder altura e sua luz. O cabo se esticou e por pouco não atingiu seu limite. Sirius esperava que houvesse uma folga maior, mas Cavian havia atingido um ponto um pouco mais alto do que haviam planejado. Deu dois puxões firmes para se certificar de que tudo ocorrera como planejado.
Sirius girou o arbalete em volta da chaminé, travando a corrente com o auxílio de um mosquetão. Tirou ainda da bolsa uma manopla e a prendeu no cabo, movimentando em ambas as direções. Amarrou o que parecia ser um cinto em um dos braços, apertando firmemente até que o couro marcasse seu antebraço.
- Segure firme isso aqui e não solte até que cheguemos àquelas pedras. Farei com que o sistema puxe de uma vez – disse Sirius, dando em torno de três voltas em um dos botões laterais do mecanismo até que ele travasse por si só. – As brumas nos protegerão da visão dos guardas, desde que nos mantenhamos acima delas. Caso se solte antes disso, irá cair no meio daquele campo e aí estaremos perdidos, entendeu?
Ele assentiu.
Assim que Sirius pressionou o botão, seus corpos voaram sobre o gramado fino. O zunido da manopla correndo pelo cabo tomaram seus ouvidos. Já estavam a alguns metros da torre quando ouviram um estalido metálico, rápido e seco. A manopla parara de correr quando o cabo se rompera e antes que pudessem pensar, foram lançados como flechas contra a parede de pedras. O impacto fora tão brusco que o arpão se desvencilhou da espada que o sustentava, fazendo com que ambos caíssem no ar. A capa amortecera a queda livre, ainda que não fosse tão suave quanto alguém imaginaria pelas falas de Sirius. Cavian rapidamente bateu a mão direita contra a parede e se puxou contra ela, enquanto com a outra mão agarrou Sirius pelo pulso. As mesmas pedras de Blackhelm fundaram aquela torre. A sensação de se prender naquelas paredes era uma afável lembrança dos velhos tempos, mas não era como antes, os anos naquela masmorra haviam o tornado mais leve.
Ele ainda olhava para o abismo abaixo de seus pés, quando Cavian rotacionou seu braço para jogá-lo contra a abertura que haviam planejado entrar. Depois forçou os pés contra as paredes e rotacionou seu corpo contra a abertura, aterrissando com os joelhos arqueados contra o chão de pedras.
- Ei, dragão, o que foi isso? – perguntou Sirius ofegante e com os olhos espremidos, enquanto massageava suas costelas sob a roupa.
Estavam em o que parecia ser um salão para conversas. Uma sala redonda com sofás confortáveis, iluminado somente pela luz do luar. Possuía uma única porta comum de madeira que se encontrava fechada.
- Alguns truques do passado... Me perguntou se eu sabia voar, não se sabia grudar nas paredes.
Sirius riu.
- De fato, ainda que não tenha salvado minhas costelas... – brincou Sirius, enquanto ele sacava a cabeça para fora da janela, verificando a distância em que se encontrava a pacificadora, que se mantinha fixada à torre. Apoiou as mãos sobre a rocha acima de sua cabeça e pode sentir a espada timidamente. Efetuou uma pequena descarga sobre a parede externa fazendo com que a intensidade da conexão aumentasse até que pudesse empurrá-la para fora. A pacificadora caiu rodopiando no ar, até que a pegasse pela janela.
- Parece ser um bom lugar pra descansar... – disse ele em um tom despreocupado.
- Primeiro vamos conhecer o local... - disse Sirius, abrindo a porta cuidadosamente, fazendo com que aos poucos a luz clara do outro lado adentrasse o recinto. Sirius o chamou com um aceno de mãos, fazendo com que ele se aproximasse da abertura.
A visão de ambos era a de estar em um túnel de livros. A torre era iluminada por linhas finas que desciam como uma cascata de globos de luz, os mesmos que Cavian vira nas mãos de Rizar tempos atrás. A torre era alta o suficiente para que as mesmas linhas sumissem ao subir dos olhos. As estantes circulares de raios maiores e menores pareciam deslizar entre si regularmente, com os ponteiros de um relógio em uma esplêndida e sábia engrenagem. A cada tramo um andar livre como o que estavam. Provavelmente deveria haver alguma escada por ali, mas era arriscado demais se exporem em um lugar tão iluminado como aquele. Certamente precisariam de um disfarce, um bom o suficiente para que tivessem tempo de achar Bacus em todo aquele mar de páginas desgastadas pelo tempo.
Esperaram um tempo até pouco antes do sol nascer, quando provavelmente mais pessoas estivessem dormindo. Sirius partiu sozinho, cobrindo-se com o capuz. Não correra como Cavian esperava, andava silencioso, como um cauteloso guardador, até que sumiu aos seus olhos cobertos pela fresta.
Sirius
Demorou bons minutos até que voltasse com alguns panos enrolados nas mãos. Fechou novamente a porta antes que finalmente voltasse a falar.
- Vista-se com isso! – ordenou ele entregando túnicas arroxeadas com tríades espiraladas em tom dourado. Apesar da cor, não chamavam tanta atenção, o roxo era opaco e escuro e as linhas douradas eram finas o suficiente para que somente pudessem percebê-las de perto.
- Parece algum tipo de uniforme – observou Cavian.
- Vi dois deles vestirem isso, e estavam lotadas delas em um armário de um quarto por aqui.
- Tem certeza que não perceberam você? – questionou o príncipe se vestindo, assim como ele também o fizera.
- Acorde, Cavian, mesmo que me vissem, achariam que se trata de uma obra de suas mentes ludibriadas pelo cheiro dessas páginas cobertas de mofo. Só havia um velho no quarto, estava dormindo e roncando como um urso. Até você poderia andar lá sem ser percebido.
Cavian franziu o nariz.
- Mesmo vestidos assim, temos que arranjar nomes, eles devem se conhecer entre si – continuou Cavian tentando prever as próximas dificuldades.
- Os andares são numerados, estamos no nono deles, ou seja, deve haver pelo menos mais cinquenta acima de nós.
- Este senhor que encontrou, não poderíamos perguntar a ele?
- Uma medida efetiva seria interrogá-lo, mas daí teríamos que matá-lo ou deixá-lo amarrado até que morra por si só... Mesmo assim poderiam perceber sua ausência – observou ele, pensativo. – Mas pelo que conheço de vossa majestade, acho que não gostaria que optássemos por qualquer uma dessas opções.
- Talvez se explicássemos a ele nossas intenções... Nem todos aqui são pessoas ruins, Sirius, Bacus é a prova disso. A maioria não passa de prisioneiros. – pontuou Cavian.
- Pode conhecer de prisões, dragão, mas não parece conhecer muito bem pessoas. Basta que achem que ganhariam alguma vantagem nos entregando e xazam! Nos entregariam com sorrisos limpos em seus rostos – disse ele subindo sobre a poltrona e batendo na madeira oca do teto.
- Alguma sugestão de como podemos otimizar nossas buscas? Com essa quantidade de andares seria impossível que verificássemos a tempo um por um.
- Bom, a divisão é por andares e pelos títulos que pude decifrar, os livros aqui são organizados por temas, nesse por exemplo falam sobre plantas, clima e coisas do tipo. Com certeza não haveria lugar melhor pra se esconder, ninguém deve vir aqui.
- Onde Bacus estaria? Por que tema se interessaria? Deuses? Religiões? Conflitos? – pensou Cavian em voz alta brevemente, tentando encontrar a resposta que buscava. - Acho que algum andar sobre história, talvez... Era o que ele costumava gostar pelo menos... – lembrou.
- Então basta que olhemos os primeiros livros de cada andar. Pelo menos ler aqui não será problema – disse Sirius abrindo a porta levemente enquanto cobria o olho direito com a outra mão. Que maluco consegue viver nesse lugar?, pensou ele enquanto analisava os corredores que quase o cegava - Vamos logo antes que decidam acordar. Se não acharmos nada ainda teremos que arranjar um lugar pra se esconder.
- Os nomes, Sirius – lembrou Cavian. - Pensei em Totinder e o seu... Sarmarkien, o que acha? Pelo menos parecem soar como o nome de sábios...
- Tanto faz, são tão horríveis que vou fingir ser um mudo para evitar de usá-los – resmungou finalmente saindo pela porta.
Partiram pelas escadas que encontraram. Um pequeno corredor levava ao que parecia ser a parte mais externa da torre. O mesmo parecia acontecer no lado oposto. As escadas tinham o solado fosco e áspero, mas as pedras escurecidas e lustrosas que cobriam as paredes eram as mesmas do castelo negro, com exceção da luz intensa que parecia perseguí-los. Ninguém precisaria delas ali, ninguém leria andando por aquelas escadas, mas também seria bastante provável que ninguém tropeçaria naqueles largos degraus que se contorciam em volta da torre.
Andavam a passos contidos na estrutura, com cuidado para que não esbarrassem em qualquer um que perambulasse por ali. Não haveria inimigos mais seguros. Provavelmente o tempo que se dedicavam ali produzia mentes fortes, mas músculos incapazes de carregar qualquer dúzia daquelas leves túnicas. Eram prisioneiros do mundo, assim como eles, não seus reais inimigos, era o suficiente para que dessem passos mais lentos e sem surpresas que fossem difíceis de lidar. Sirius verificava sorrateiramente as pilhas logo à frente de cada corredor, As linguagens dos povos esquecidos; Adonsoneiro para construção de muralhas; Técnicas para soleagem de Bívios; Combinações de linhagens: Evolução ou involução; O herdeiro dos deuses; o sacrifício de Gaya... Os títulos se replicavam aos montes sobre as estantes e já haviam subido mais de vinte andares quando finalmente encontraram algo que parecia se ajustar ao que buscavam, A batalha de Solaris, salvo engano ele já havia escutado algo sobre o evento que dera a fama aos leões de Fisbia. Imediatamente se voltou a Cavian, que aguardava vigiando as escadas.
- Ei, Cavian, acho que é esse o lugar! – exclamou ele.
- Vamos para cima ou para baixo?
- Também não sei. Mas não há mais tempo para procurar, daqui a pouco devem se levantar.
- Vi as batidas que deu no teto, talvez possamos descansar sobre as vigas até que anoiteça novamente.
- É o que temos por hora, estamos a passos muito lentos, dragão, temos que tomar cuidado para que o tempo não se esvaia antes que possamos realmente fazer algo.
Cavian assentiu.
Cavian
Acomodaram-se em um dos quartos vazios, parecia haver muitos por ali. Infelizmente não sobre a cama estreita de colchão confortável. Arrancaram algumas ripas do teto para que pudessem se acomodar entre as vigas, assim como fizeram com suas bolsas de viagem. A luz que adentrava pela janela iluminaria as frestas o suficiente para que encontrassem o melhor momento para agir. Poderiam descansar e pensar no que fazer, Cavian tentava utilizar seus poderes para verificar se alguém do porte de Bacus passaria por ali, mas a distância necessária para uma varredura mais ampla, além de nunca testada, provavelmente traria uma fadiga de difícil avaliação. Como próprio Bacus o ensinara, às vezes tentar ganhar tempo de qualquer maneira era sinônimo de perdê-lo. Sirius com certeza daria um jeito, ao menos até ali havia conseguido tudo o que havia prometido.
Enquanto isso, pensava em como Yuki estaria. Shasak pelo pouco que sabia não costumava ser gentil com seus inimigos e Yuki pareceu, em seu olhar, um dos principais troféus da prateleira. As faces presas nas paredes de pedras fizeram com que mal dormisse, assim como Sirius, ainda que não soubesse se pela mesma razão. Conseguia ver seus dedos se mexendo contornados pelas linhas azuladas perto dali. A velha mania das moedas, pensara ele. Nesse ponto Sirius lembrava um pouco de Yuki, ao menos pela sua inquietude sempre presente.
O luar avançava pelas frestas já por algumas horas, quando viu Sirius tatear a ripa de madeira solta. Puxou ao lado e desceu como um gato. Era incrível sua habilidade de cair tão silenciosamente como uma pena ao chão, ainda mais com vestes como aquela.
Sem a mesma destreza, Cavian arrastou o corpo até o buraco pelo qual entraram e esticou o corpo antes que finalmente soltasse suas mãos de suas laterais. Não fora tão silencioso como Sirius, mas era o que tinha a oferecer.
- Vou vasculhar os andares, se mantenha atento... – sussurrou Sirius, apontando os dedos para a porta. Pelo menos a falta de trancas facilitaria imensamente seu trabalho.
- Lembra da descrição? – questionou ele em mesmo tom.
- Não acho que haveria muitos mono-olhos que arrastam o pé por aqui, os que conheci estavam longe de serem interessados por livros.
- Bacus é terrivelmente esperto, Sirius, e forte como um urso. Por favor, tome cuidado.
- Relaxe, dragão, fique atento à pedrinha que Narthus te deu, se eu precisar de algo te avisarei.
Cavian assentiu.
Os minutos de ansiedade foram se passando, até que Sirius finalmente retornou. Ainda que não tivesse havido perigo até então, continuavam cautelosos. Passos lentos com a túnica permitiriam que se passassem apenas por pensadores com problemas para dormir. Chegou ao quarto indicado por Sirius, que abriu a porta de correr apenas o suficiente para que Cavian passasse impedindo que o mínimo de luz adentrasse o local. Ao passar da porta viu o corpulento corpo do ogro sobre a cama que mal o cabia. Estava de costas, com parte do lençol cobrindo somente uma das pernas. Andou cuidadosamente até a cama, tirou o capuz sobre a cabeça e tapou a boca do ogro com uma das mãos. Nesse momento, Cavian mal pôde conter o giro do ogro sobre a cama, assustado, olhando fixamente para seu rosto de maneira incrédula.
- Mestre Cavian, pelos deuses! – exclamou Bacus, sentando-se sobre a cama e tateando seu rosto. – Você está mesmo vivo.
Bacus estava vestido somente com um short de pijama listrado. Não estava em forma como em seus tempos áureos. A barriga descansava sobre as pernas já cansadas. Uma delas, a menor, estava ainda mais fina que antigamente, e as rugas contornavam a face acariciada pelo tempo.
- Ainda à procura das razões, meu amigo! – respondeu ele, feliz em rever o velho companheiro.
Bacus deu um abraço tão apertado em Cavian, que quase esmagara uma ou duas de suas costelas.
- Foi Yuki, não foi? Sua mãe fez com que eu a levasse naquele dia, fiz o melhor que pude, meu jovem, meus joelhos velhos não puderam fazer muito.
- Sim, foi ela que descobriu onde eu estava.
- Eu sabia! Aquela menina herdou os dons de vossa mãe, ela mesmo disse que aquela migalha bastaria! – disse o sábio de maneira levemente eufórica.
- Inclusive é por ela que estamos aqui, Bacus – explicou ele enquanto Bacus finalmente percebeu a presença de Sirius escorado à porta.
- Boa noite, meu senhor, é um prazer... – disse Sirius acenando com uma das mãos com um sorriso propositalmente falso.
- Pelo visto fez novos amigos, jovem mestre – observou Bacus.
- Não tenho tido muita sorte com os antigos – brincou ele.
- Me desculpe, meu jovem, nunca foi minha intenção abandonar sua irmã, só o fiz porque não havia mais nada que pudesse ajudá-la naquele lugar. Eles são tão talentosos em tudo que fazem e eu... Bem, eu sou só um grande homem que não sabe batalhar, um homem dos livros...
- Não seja bobo, Bacus, você faz parte da família – disse Cavian, arrancando um sorriso envergonhado e um robusto olho marejado da criatura de um olho só.
- Se me disser o que a senhorita Yuki precisa, não hesitarei em ajudar. – Exclamou Bacus.
- Sua execução está marcada para o próximo solstício, Bacus, em Blackhelm. – Revelou ele, no momento em que o rosto do ciclope entrou em choque.
- Mas, jovem mestre... Seu pai... Seu pai não permitiria, digo, ele não o matou, seria coerente que fizesse o mesmo com ela.
- Depois de tudo que vi, não acho que tenha sobrado mais algo que o salve, Bacus, o aviso pelo menos estava bastante claro pra mim. Yuki se tornou a principal rival dos planos dele e caso descubram que estou vivo, o que acontecerá em breve, ele não terá outra saída a não ser atender o chamado daqueles que o seguem. Tenha certeza de que ele fará isso sem hesitar.
- Tem um ponto, jovem mestre, a senhorita Yuki é uma líder nata e provavelmente a única que tenha capacidade de derrubá-lo do lugar que está. Não que o jovem mestre não seja uma ameaça também... Mas sabe tão bem quanto eu que seu pai nunca tolerou tais insubordinações... Assim como com vossa alteza... – observou Bacus visivelmente entristecido, provavelmente pelo fato da possibilidade que Cavian levantara não ser tão distante quando parecia alguns segundos atrás.
- Exatamente, viemos aqui porque precisamos do acesso aos mapas de construção de Blackhelm, Sirius acha que há informações aqui que nos ajudariam.
- E ele está correto, meu jovem, todo conhecimento do mundo está nesse lugar. Pelo menos o primeiro andar tem andado cada vez mais vazio.... Bem, mapasss?... – pensou o ciclope enquanto coçava a cabeça calva. - Sim, devem estar a três ou quatro andares no topo, já fui lá algumas vezes. Os assuntos de maior importância pra eles sempre assumiram os lugares mais altos.
- Consegue pegá-los pra nós?
- Sem dúvidas, os livros não podem ser retirados do local, mas há uma área de leitura, posso entregá-los a vocês sem que os vejam. Há tantos livros lá como aqui, não perceberão a falta de algumas páginas.
- Isso não te trará problemas?
- Mestre Cavian, confesso minha visão apaixonada e quase cega por este lugar – disse Bacus retomando o brilho no olhar. – Não gostaria que me entendesse mal... Não concordo com nada do que fazem lá fora. Não há dúvidas que as ambições dos novos deuses são pérfidas e abomináveis, mas esse lugar.... É a materialização de tudo que sonhei desde que me lembro de pensar. Apesar de tudo isso, sua mãe me deu um lar que nunca tive e vocês são como filhos que adotei na minha fugaz passagem por esse mundo. Deve se lembrar da lição que sempre os ensinava quando pequenos... Nunca devemos colocar desejos a frente de princípios. Independentemente do que precise fazer, faria de tudo para que pudessem viver pelo menos parte da bela vida que pude ter até aqui.
- Você é um senhor bondosamente incorrigível... – disse ele sorrindo.
- Não poderia manchar meu legado de ensinamentos vivendo de um jeito diferente das lições que tive o prazer de compartilhar com vocês, jovem mestre – disse Bacus ao se levantar enquanto vestia um chinelo de couro forrado de lã ao chão e caminhava até um dos armários na lateral do quarto. – Acredito que estejam com fome, viajando todo esse tempo – disse ao abrir as portas que revelavam algumas carnes penduradas e frutas secas, puxando algumas delas para a pequena mesa perto da janela. – Venham, sirvam-se, temos algumas horas e estou curioso para escutar como chegou até aqui, jovem mestre.
- Aceitarei o convite pelas ameixas – brincou ele. Sem dúvidas pareciam deliciosas.
Cavian
Pouco antes do sol nascer, Sirius trouxe as bolsas de viagem para o quarto e pouco depois Bacus partiu, vestido em sua túnica avantajada, Cavian viu quando arrastara os pés para o interior da torre. Segundo Bacus, poderiam descansar ali até que voltasse, ainda que Sirius insistisse em sentar escondido ao lado de um dos armários. Havia inclusive colocado uma trava entre a porta e a parede para que não fosse possível abri-la sem o sinal correto repassado a Bacus. Deitado sobre o chão perto da janela, olhando para o céu azulado acima deles, pensou em quais decisões teria tomado diferente caso não estivesse trancado durante tantos anos naquele castelo e depois nas paredes daquela masmorra. Tinha conhecido tão pouco do mundo e das pessoas que o pequeno caminho até ali tinha sido um resumo diário do que teria levado talvez anos para aprender.
Era início da tarde quando Bacus voltara, Cavian podia vê-lo atrás da porta dando duas batidas leves sem que nem tentasse abri-la. Sirius havia levantado animado quando Cavian finalmente abrira a porta, mas para surpresa de ambos Bacus não carregava nada consigo.
- Bacus, não vá me dizer que... – exclamou ele antes de ser interrompido.
- Se acalme, jovem mestre - disse Bacus, levantando a túnica e revelando as páginas coladas sobre a pele. – Essa túnica costuma ser bem quente quando se sobe tantos degraus – continuou arrancando-as de seu corpo e entregando-as em suas mãos, enquanto Sirius nem se movera do lugar, rindo da situação.
- Foi uma bela saída, confesso – disse ele sorrindo ao pegar cuidadosamente as folhas ainda molhadas cuidadosamente antes de distribuí-las no chão, fazendo com que Sirius se aproximasse com os braços cruzados e o nariz franzido.
- Já adianto que por tudo que li e pelo que já conhecemos daquele lugar, aquele castelo foi planejado cuidadosamente para ser impenetrável, jovem mestre. As masmorras ficam bem ao centro – observou Bacus apontando para um dos desenhos que mostrava uma visão de cima do castelo. - Mesmo com as passagens secretas, conseguiriam acessar somente a camada externa. Deve haver milhares de alarmes espalhados naquele lugar, muitos que nem existem nessas páginas. Não vejo nenhuma possibilidade que cheguem a ela antes de tudo isso os exponha. Além disso, segundo as informações que coletei junto a colegas de outros andares, Uruk já está por aqui, assim como Shasak que o senhor disse que também está, além do próprio Cusgar, o tenebroso guardião daquele lugar. Será uma tarefa árdua, jovem mestre. Cada um deles valem mais que uma longa legião de bons soldados.
- Os exércitos podem entrar pelas passagens, gerar alguma abertura, talvez? – questionou ele, agora ajoelhado tentando identificar as passagens que buscavam.
- São muito estreitos, jovem mestre, as passagens sempre foram reservadas para a nobreza, como uma garantia de sobrevivência em caso de derrota. Colocar alguns homens ali é bastante arriscado, se fossem soldados comuns não fariam qualquer diferença, e se fossem seus poderosos líderes, estariam confinados em um único lugar com o risco de sucumbirem sozinhos, fazendo com que sem suas presenças que seus homens fossem ceifados do campo de batalha em um piscar de olhos. Não entendo muito de guerras, meu jovem, mas aquele lugar foi construído para vencer.
- Poderíamos derrubar o portão principal, é a parte mais vulnerável do castelo – constatou Sirius, sentando sobre a cama de Bacus para observar os papéis ao chão.
- Seria necessário um poder de fogo jamais visto – observou Bacus.
- Se quiser derrubá-lo com um canhão sim, mas se acharmos os pontos de fixação daqueles portões sobre essas pedras, seria possível fazer com que fosse ao chão – disse Sirius apontando para o mapa.
- A parede de lá é pelo menos dez vezes mais densa do que dessa torre, jovem Sirius – observou Bacus.
- Não por fora, me refiro a explodi-las por dentro – retrucou Sirius.
- Mas seria impossível que levassem canhões pra lá, da mesma maneira que seria arriscado que levassem seus hábeis usuários das artes místicas, é tudo inclusive que querem, talvez os únicos que faltem – alertou Bacus.
- O senhor já ouviu falar da mistura de Terrinium e Oricalco? – questionou Sirius.
- Vagamente, meu jovem, água e montanha, uma mistura altamente instável usada por alquimistas antigos – disse Bacus.
- Sim, altamente destrutivas – observou Sirius, caminhando de volta à sua bolsa.
- Seria adequado, meu senhor – disse Bacus. - Mas as fortalezas da velha montanha não me parecem tão acessíveis no momento e apesar de saber que acabaram de vir das profundezas do reino das águas levaria dias para que pudessem reunir tais elementos.
- Tenho quilos disso guardados aqui, Bacus – revelou Sirius mostrando o cubo, metade vermelho sangue, metade azul com traços esbranquiçados, separados por uma fina camada transparente. - Se conseguir fazer com que a gente entre, farei um espetáculo que eles não se esquecerão.
- Teria que aguardar o avanço dos exércitos... – dizia Bacus enquanto fora interrompido pelo desespero em pegar desajeitadamente um dos pequenos cubos que Sirius jogara em sua direção. – Meu senhor, isso pareceu perigoso – continuou ele com o semblante assustado.
- Não sem isso – disse Sirius mostrando uma pequena caixinha em suas mãos. – Pagmo, meu irmão, estruturou um gel misturado a fragmentos de pedras de comunicação. Assim, caso apertemos nesse botão e falemos por aqui, na frequência em que vibram e na distância certa o gel se desfaz e kabum! Tudo irá pelos ares.
- Magnífico, jovem mestre! – exclamou Bacus, revisando o plano em sua cabeça. – Ainda assim teríamos outro problema. Vê aqui? – disse ele apontando para uma das páginas que trazia o desenho da estrutura do portão. - A plataforma de execução fica logo acima do portão, explodir essas ligas poderia levar tudo aquilo pelos ares.
- Não me compare com os serviços mal feitos executados por aqueles que conhece, por favor, sou um profissional – disse Sirius girando um dos cubos sobre suas mãos.
- Tem certeza, Sirius? Há muitas coisas em jogo aqui – questionou ele.
- Tenho uma fama a zelar, dragão, eu disse que conseguiria resgatá-la, não estava brincando quanto a isso – respondeu seriamente.
Passaram mais algum tempo analisando o melhor ponto de entrada. Cavian conhecia aquelas muralhas, aparentemente não teriam problema em entrar. A melhor delas parecia desembocar perto de um dos vilarejos. Parecia bom o bastante. Não poderiam perder mais qualquer dia naquele lugar. Sirius enrolara os papéis agora secos em um tubo de mapas de couro que Bacus fornecera. Esconderam as túnicas que usaram no armário e reabasteceram os mantimentos enquanto aguardaram o horário padrão.
- Muito obrigado, Bacus, sabia que podia contar com você – disse ele.
- Obrigado você, jovem mestre, os livros são magníficos, mas te ver aqui reaqueceu esse velho coração novamente – disse Bacus, dando um abraço de despedida em Cavian. - Mande um beijo pra ela por mim quando encontrá-la, diga que na próxima vez que a gente se encontrar, faremos nosso duelo dos tabuleiros.
- Só nossa mãe ganhava dela, Bacus, sabe disso – confrontou ele.
- Isso até que eu conhecesse esse lugar, jovem mestre. Acredito que agora eu consiga ter uma batalha justa - brincou Bacus, rindo. - Que os velhos deuses os abençoem nessa jornada.
Ele assentiu.
- Fique tranquilo que manterei nossa realeza a salvo - brincou Sirius, rindo, enquanto finalizava a amarração da bolsa. – Aliás, quando cansar desses livros velhos, poderá visitar seus pirralhos, tanto ele -quando Yuki quase choram toda vez que tocam em seu nome – continuou enquanto Cavian franzia o nariz.
- Conto com isso, jovem Sirius – disse Bacus com um sorriso ao rosto. Os pequenos haviam sido as únicas coisas que poderiam fazer esquecê-lo do amor imensurável que tinha pelas páginas velhas que o circundavam.
Cavian
Haviam terminado finalmente de subir todas as escadas. Uma pequena e estreita escada de madeira levava ao topo da torre. Era alto o suficiente para que quase fosse possível tocar a superfície da grande lua. Andaram até a borda da torre enquanto os ventos batiam com violência sobre suas vestes e suas capas farfalhavam com avidez. Os objetos na base da torre não passavam de minúsculos brinquedos na visão daquele lugar.
- Ei, Sirius, tem certeza que isso vai funcionar? – questionou Cavian um pouco receoso. Nunca havia subido em um lugar tão alto na vida. Não costumava ter medo, mas era impossível não ter calafrios ali.
- Só pule na direção das florestas, Cavian – disse Sirius, tomando distância, correndo e saltando em meio ao nada.
Sirius tinha razão. Ele podia vê-lo se distanciar, flutuando sobre o ar como um cometa cruzando o céu. Deu seus passos atrás, correu até a borda e saltou na mesma direção. Era como se realmente voasse. Seria comum para um Aquiriano, aprendiam voar até mesmo antes de andar e agora imaginava a razão. O silêncio e a liberdade pareciam fazer com que estivesse acima de qualquer coisa que o pudesse atingir. Era como se os problemas não pudessem alcançá-lo ali. Plainou e plainou por alguns minutos até que caísse e rolasse no chão, perto de onde vira Sirius pousar. Era hora de finalmente atacá-los e ele não decepcionaria. Não dessa vez.
Cavian
Haviam acabado de entrar no corredor de pedras, na lateral da colina que sustentava o enorme castelo de Blackhelm. A escalada não era tão alta e com as referências do mapa, não foi difícil encontrar a porta de pedra oca. Cavian não parava de pensar na vantagem que ganhariam ao utilizar aquelas passagens, ainda que não importasse mais. Uma escadaria longa que subia e se bifurcava em alguns corredores mal iluminados por buracos de luz que vinham do teto abaulado. Não eram limpos havia algum tempo, pelo menos era o que indicava as teias que cruzavam o estreito corredor. Sirius grudara um dos explosivos logo na saída da primeira bifurcação. Deveriam chegar ao sistema de movimentação dos portões. Provavelmente haveria alguns vigias ali. Mas não era o que mais os preocupava. Não saberiam dizer ao certo onde estariam os alarmes do castelo, armadilhas mágicas capazes de alertar sua entrada. Após isso, teriam pouco tempo para agir.
- Acho melhor que a gente se divida – disse Sirius. - Se formos pegos juntos, saberão pra onde estamos indo. Você será nossa isca. Eu cuido dos portões.
- Como fazemos para nos encontrar?
- Tome - disse o ladino retirando de um dos bolsos algo semelhante a um relógio pequeno de um único ponteiro de madeira sobre a base quadrada de ferro enferrujado e pulseira de corda, entregando-o a Cavian de modo apressado. - Cada batida, um minuto. Em setenta minutos, me encontre aqui. Até que entendam a situação e tomem alguma atitude maior já teremos partido.
- O que faremos caso eles nos encontrem?
- Só derrube todos que encontrar, a partir do momento que nos encontrarem, quanto mais, confusão melhor. Outra coisa, é provável que eu demore mais que você. Se ver que algo deu errado apenas suma daqui. Se der certo, explodiremos essa entrada e nem o mais numeroso dos exércitos poderá nos alcançar.
- Mas e o plano?
- O acionador tem um certo alcance. Estamos praticamente no fundo do castelo, bem abaixo de seu plano, nessa distância é impossível que alcance os portões.
Ele assentiu.
Sabia o que precisava fazer. Correu pelos corredores na direção oposta de Sirius, os degraus íngremes se multiplicavam e os corredores ora mais estreitos e ora mais amplos, de acabamentos tão diferentes, indicavam que assim como o castelo, pareciam ter sido feitos por mãos distintas, ainda que corredores secretos devessem ser, como o próprio nome sugeria, mapeados somente nas cabeças mais valiosas do reino. Quantas vozes haviam sido caladas para que algo como aquilo ganhasse vida? Eram questões que preferia apenas não pensar naquele momento, por mais que as perguntas insistissem em se criar.
Mais de dez batidas já haviam se passado quando os viu. Um grupo de guardas, pareciam um grupo de busca armado. Não seria um problema, mal cabiam duas pessoas por ali. Se havia alguém na vantagem era ele próprio.
Partiu com velocidade contra o escudo levantado com seu ataque. O chute frontal fez com que o guarda simplesmente fosse ao chão com o escudo amassado em suas mãos, assim como o que vinha logo atrás. Haviam mais dois por ali. O da frente se agachou sobre o chão, com o escudo cobrindo seu corpo, dando a abertura para a besta já armada. Cavian meneou a cabeça rapidamente para que o primeiro tiro não atingisse seu rosto.
Saltou sobre os corpos já deitados ao chão, energizando seu punho direito. Sentiu as pontas das setas, as armaduras e o escudo ao alcance de suas mãos. Os metais estavam vivos sob seu controle. Cerrou o punho e puxou para junto de si. O primeiro guarda conseguiu segurar o escudo, mas a besta pulou das mãos daquele mais atrás. Cavian avançou novamente, encostando uma das mãos sobre o escudo e com uma pequena descarga fez com que o guarda escondido desmaiasse ao chão. O soldado portador da besta que quase o acertara instantes atrás saiu correndo, quando Cavian sacou a espada. Atirou contra as pernas do guarda que urrara de dor quando a pacificadora atravessara sua perna direita, fazendo com que caísse contra o chão, tentando se arrastar em vão, até que Cavian chegasse até ele.
- Acabe logo comigo, bastardo! – implorou o homem em um brado de coragem, ainda que a testa suada e os olhos assustados entregassem seus pensamentos de temor.
- Não estou aqui por vocês – disse ele. - Quero saber quem está nesse castelo, fora Uruk e Shasak.
- Nem se eu soubesse entregaria informações a gente como vocês... Essa gente toda, é toda gente de bem, o chefe ficará orgulhoso de nós, nossos filhos... Nossos filhos receberão nossas medalhas.
- Seus colegas estão vivos, eu não vim para fazer nenhum mal.
- Acabe logo com isso – disse o soldado novamente cuspindo contra Cavian. – O chefe nos avisou que viriam, eles acabarão com vocês como moscas... – finalizou o homem antes de também desmaiar quando a mão de Cavian eletrificara seu elmo.
- Durma um pouco – disse ele, recuperando a espada ainda que nenhuma daquelas informações parecessem importantes. Um ataque era sempre esperado, se soubessem realmente o que viriam fazer, haveria muito mais dificuldades do que haviam encontrado até aquele momento.
Continuou. Um após o outro caiam pelos corredores e a quinquagésima sétima batida informara a hora de voltar. Os corredores cobertos pelas armaduras ao chão ao menos afugentariam quem tentasse correr em sua direção. Nunca é sensato que se corra atrás de uma pilha de corpos, ainda mais quando as pilhas fazem parte de um único grupo do qual você faz parte.
Reconstruiu na memória cada passagem e finalmente chegaram os primeiros guardas abatidos enquanto soava a sexagésima sexta batida. Chegara a tempo. Correu na direção por onde entraram na esperança de encontrar alguma pista de Sirius.
Finalmente a última batida chegou, estava na bifurcação onde ambos se separaram, sem qualquer sinal do amigo, mas antes que pudesse pensar em como agir, Sirius surgiu de um dos corredores. Os passos que o acompanhavam pareciam vir de um conjunto de soldados.
Cavian se dirigiu à passagem por qual entraram. O corredor inicial, transpassando a primeira bomba que Sirius havia implantado. Pôde ver quando Sirius freara os pés para também se adentrar o caminho da saída.
Arrancou a bolsa sobre as costas e jogou a Cavian. Assim que ele a pegou nos braços, viu que Sirius parou, no momento em que ele soube que havia algo errado.
- Ei, Cavian, mandarei seu beijo a ela – disse Sirius arrancando uma adaga da cintura e jogando contra o cubo preso ao teto, na metade da distância entre os dois. Cavian chegara a jogar a sacola ao chão e esticou a mão em vão. A explosão fez com que as paredes e a terra escura descessem ao chão até que a passagem fosse totalmente coberta. Sirius havia ficado, ainda que qualquer das hipóteses que passara em sua cabeça naquele momento não fizesse sentido.
Aliás, não havia tempo para pensar. Pegou a bolsa que acabara de jogar ao chão, cruzou em suas costas e correu. Precisava se apressar para que pudesse chegar aos libertos a tempo. Foi quando sacou a pedra dada por Narthus da bolsa.
- Ei, pessoal, sou eu, Cavian! Alguém na escuta?
- Cavian, é Mika, não podemos falar muito, mas precisamos que cheguem na floresta de Elindir. Conseguem?
- Como vou encontrar vocês?
- Não se preocupe, nós te encontraremos.
O HOMEM MAU
Quazar
Quazar estava em sua escrivaninha de madeira grossa marcada à tinta por lampejos de ideias que a cobriam, à luz da lamparina de cobre de corpo quadrado. Era um homem alto de cabelos que um dia haviam sido negros. Os dedos magros e leitosos que evitavam o sol a qualquer custo, esfregavam o bigode já impregnado com o cheiro de óleo queimado. O cotovelo já estava marcado pelas horas em que se escorara aguardando o cessar dos pensamentos que divagavam pelas possibilidades do que acabara de descobrir. Era realmente possível?, pensou ele depois de finalizar uma folha impregnada de anotações dos traços toscos.
Alguns dias antes tinha a certeza que não, chegou a, em um ato impensado, questionar o pedido feito pelo próprio rei, depois de anos de pesquisa, mas ali, naquele momento, uma nova realidade parecia não ser mais tão distante. Do que o rei de fato sabia? A união de mundos tão diferentes levaria a lugares que ninguém nunca estivera antes. Não tinha o temor pelo novo, muito pelo contrário, era aquela sua busca diária, mas estava diante de algo semelhante à descoberta do fogo. Uma alquimia viva, algo próximo ao poder abdicado pelos deuses daquele mundo. Já havia discutido algumas possibilidades junto a usuários das artes místicas por incontáveis horas, um deles inclusive seu amigo pessoal, mas todos eram unânimes ao descrever a dificuldade em se chegar próximo do feito. Logicamente entendiam pouco de ciência e a visão deles era limitada ao seu próprio conhecimento. Mas o que fazia seus olhos realmente brilharem era o surpreendente fato de que talvez, pela primeira vez na vida, fosse incapaz de entender algo. Por mais que o instigasse, sabia que o rumo que tomou limitaria seus próximos passos.
A vida que levava era luxuosa se comparada aos padrões normais da vila que seus pares costumavam viver e muito distante do que costumava conhecer. Próxima ao castelo, com tamanho digno de um trabalhador de alta casta em madeira nobre e detalhes metálicos. E com um pequeno lago ao fundo que construíra com as próprias mãos. Nillia, a mulher que o trouxera ainda que timidamente para uma vida no mundo real, tinha uma verdadeira paixão por água; se questionava às vezes se até mais do que por ele, o que também havia sido herdado pelas pequeninas. Era uma vida tão boa, tão pacata, tão diferente da que viveu quando mais jovem, que poderia até mesmo imaginar sua morte em uma casa no campo quando finalmente chegasse a hora, com uma xícara de café em mãos, adormecendo com o pôr do sol.
Todo aquele mundo construído pela história sangrenta que seus próprios olhos puderam presenciar estaria novamente em cheque, ainda que o prestígio e a glória fossem convidativos para uma vida que talvez jamais sonhara.
Talvez já tivesse ido longe demais, ao invés de escutar os chamados que lhe afagavam os ouvidos já um pouco surdos. Uma herança deixada pelo trabalho com os largos motores fumaceantes, antes de vender seus serviços ao rei de Audar.
- Papai, papai... – chamava sua pequena Dália, a primogênita. Tinha apenas três anos, mas era tão cheia de certezas que o lembravam de certo modo, ao entrar no quarto pela porta ranhenta ainda que aberta de forma cuidadosa.
- Oi, baixinha... – disse ele finalmente se virando na cadeira de base giratória, apoiando as mãos sobre os joelhos para a corrida da pequenina, que abraçara suas pernas com tanto entusiasmo que escutara inclusive o ranger dos pequenos dentes.
- Papai, papai...
- Oi, meu amor, papai está aqui... – respondeu carinhosamente afagando os cabelos lisos e curtos, cortados há poucos dias pela própria, utilizando uma das tesouras que esquecera por lá. A mais nova, Violeta, tinha cerca de quarenta dias e ainda lhe roubava algumas horas preciosas de descanso, ainda que sua mente habitualmente agitada, se deleitasse com as risadas sem motivo ou com os questionamentos que os adultos pareciam não ser mais capazes de fazer. Havia ele mesmo costurado um pequeno urso de retalhos e botões para que a pequena se acalmasse das costumeiras cólicas da idade. Era a única coisa que aparentemente a acalmava fora o peito da mãe.
- A mamãe disse que se o senhor não sair desse quarto seu rosto vai derreter... – murmurou a pequena com semblante sério, utilizando os argumentos da mãe para que esta parasse de ler tantos livros à luz de velas. Foi uma surpresa vê-la lendo tão cedo, mas certamente tanto ele quanto Nillia não gostariam que ela tomasse os caminhos dele próprio. Os olhos cansados e os cabelos esbranquiçados eram um preço até mais barato a se pagar do que a ausência nas noites do lado de sua amada.
- Papai já acabou... Vamos dormir? – propôs ele com um sorriso ao rosto. Até quando precisava, não se aguentava com os comportamentos adultos de uma criança que nem saíra das fraldas.
- Não consigo, papai, o monstro mau veio me buscar outra vez...
- Não dessa vez... – disse ele bradando com a voz heróica de um contador de histórias, enquanto passava a mão das costelas da pequena, arrancando-lhe as risadas que adorava escutar. - Papai vai estar sempre aqui pra te proteger, meu amor, não importa o que aconteça...
- Promete, papai? – Disse ela o encarando nos olhos com os braços ainda apertados sobre ele.
- Prometo – disse ele retribuindo o abraço da pequena, que finalmente se acalmara.
Quazar
Os campos de Audar estavam tão pujantes naquela primavera que a festa da colheita seria provavelmente a maior vista nos últimos anos. Do topo da torre em que trabalhava Quazar, podia-se ver as plantações balançando ao vento como se fossem ondas ao mar ao pôr do sol, e foi naquele dia ensolarado que tomara a decisão que se arrependeria não muito depois.
Preparava-se para partir. Pela manhã, ele entregara a Levi os esboços da máquina que seria capaz de reverter os processos da criação e com alguns anos talvez tivesse o poder até mesmo de replicá-lo. Seu ego o impediu que os destruísse, eram uma obra-prima tão bela e tão inútil sem ele que preferira guardá-la longe dali, sob cuidados de alguém que pudesse compreender suas consequências, dessa forma, esperava que fosse inibido da tentação de terminá-la. Por seus cálculos levaria centenas de anos para que chegassem à mesma conclusão. Dentro de Audar ninguém talvez fosse próximo de entendê-la, até mesmo Levi, o mais hábil dentre os estudiosos daquele lugar, e seu querido aprendiz não estivera perto de compreendê-la.
Quazar
Trabalhava no projeto de sua vida. Uma grande esfera ao centro, com pouco mais que o dobro de sua altura, criada pelo cruzamento de vários arcos de metais de liga nobre, acessíveis somente pelas mãos do reino, que dançavam entre si como se flutuassem umas sobre as outras. Um milagre do magnetismo e da boa engenharia. Ele e Levi o batizaram de Transformador Dysoniano Ativo de Arcos Assíncronos Livres, ou mais carinhosamente chamado de O Transgressor – um gerador de energia livre capaz de fazer com que motores ganhassem vida por horas com o simples toque de suas mãos, não haveria mais frio ou fome, a máquina que tinha o poder de transformar homens em deuses.
Era uma oficina espaçosa, com cadeiras almofadadas de tampo redondo e as mais diversas ferramentas presas pelas paredes. Desde martelos de cabo alongado para os serviços mais pesados até agulhas tão finas quanto fios de cabelo. O sonho de qualquer criador. Ao fundo, uma estante com tubos de couro empilhados e devidamente marcados com as canetas de tinteiro, sendo as laterais restantes cobertas pelos tampos das mesas que contornavam o salão, com exceção da área que abrigava a grande janela de bico alongado. Pelas mesas se espalhavam uma série de papiros alongados, alguns enrolados e outros abertos, revelando desenhos muitos mais belos do que as escritas de letras toscas que os acompanhavam.
- Levi, descobri! Descobri! – exclamou ele, fechando a válvula do rústico cilindro de cobre e arrancando os óculos de solda de lentes arredondadas e amareladas da cabeça, que transpirava com as gotas condensadas sobre o vidro.
- Sim, meu senhor, estamos muito longe? – questionou o ajudante, carregando uma pilha de papiros que ainda tentava organizar. Era sardento e tinha seu cabelo encaracolado provavelmente aparado sob uma tigela. Seu macacão anos atrás azulado e cheio de bolsos era o mesmo usado por Quazar naquele lugar.
- Felizmente ou infelizmente sim... Esses testes e ajustes que estamos tentando fazer estão na direção contrária ao que precisaríamos, é uma falha de conceito... Talvez com mais alguns anos e com uma equipe maior, talvez...
- Por qual razão, meu senhor?
- Equilíbrio, Levi, equilíbrio é a chave. Ahhh, mas que merda... – resmungou ele, relaxando em um dos bancos enquanto suspirava. – Anos de trabalho jogados no lixo... – continuou enquanto gargalhava em uma aparente falha de sanidade.
- Lutamos tanto, meu senhor, por tantos anos, não seria possível finalizá-la?...
- Você mesmo me questionou meses atrás se não estávamos fazendo algo além de nosso entendimento... – murmurou ele franzindo o cenho. Por meses Levi o desencorajou e agora tentava fazer o oposto. O jovem provavelmente havia enlouquecido junto com ele.
- Sei o que disse, meu senhor... Mas nada garante que irá funcionar como esperamos, não é? – observou ele com olhar preocupado. - E temo por nossas vidas também... O rei sabe do estado do projeto e temos somente mais alguns meses, ele não negaria mais recursos se pedíssemos... Se o entregarmos algo que minimamente funcione, poderemos viver como reis nesse lugar... Caso contrário, o futuro que nos espera é a masmorra, o senhor é um homem sábio, me diga se não é verdade? – continuou Levi visivelmente transtornado. O medo poderia fazer com que homens como ele negassem até seus próprios princípios.
- É exatamente por saber disso que precisaremos fugir daqui... – concluiu ele se levantando e enrolando alguns papéis, enquanto os protegia em tubos cilíndricos de couro que utilizavam para conservar os projetos. - Tome – continuou ele pegando mais alguns já acondicionados e os entregando a Levi. - Preciso que leve esses para o reino de Dypsia, especificamente para Noch, entregue somente em suas mãos, entendeu? – ressaltou.
- Meu senhor, se fugirmos...
- Levi, conhece o rei o suficiente... – exclamou ele ao interromper o aprendiz, colocando uma das mãos sobre o ombro direito do rapaz e o encarando nos olhos - Eele fará o que acha que precisa ser feito... Mesmo que isso signifique, na melhor das hipóteses, nos trancar nesse lugar, entende?
- Sim, meu senhor, sem problemas, se é a única saída... – lamentou o jovem, enquanto ele caminhava de volta apressado, retornando sua atenção às anotações sobre as mesas.
- Anuncie-o no portal principal e diga meu nome, ele irá recebê-lo e protegê-lo – ordenou ele - Partirei hoje à noite na carroça a vapor e pelos meus cálculos, com óleo suficiente, chegarei lá um dia depois de você. Não se esqueça de contornar Faldram, aquela floresta é traiçoeira, muitos já se perderam por lá.
Levi assentiu.
- Farei como me pede. Boa sorte pra nós, meu senhor... – desejou o ajudante timidamente.
No fim, Quazar sabia que era um bom menino. Tinha certeza que não tomaria qualquer outro caminho que não fosse o pedido. Foram anos trabalhando ao seu lado. Era um rapaz das ruas, antes de conhecê-lo e adotá-lo como seu filho. Quazar não tinha dúvidas de que o rapaz quisesse viver benesses ainda maiores do que as que havia proporcionado, era o que ele próprio havia prometido ao jovem ao fim do trabalho, uma nova vida, e ele não deixaria de cumprir a promessa que fora feita, ainda que fosse longe dali.
- Vamos precisar de toda sorte que puder nos acompanhar.
Quazar
Quazar chegou em casa tarde da noite como costumeiramente fazia. Havia trazido consigo alguns galões de óleo da oficina que cobrira com alguns pedaços de ferro. Não era incomum que levasse sucatas para casa, era autorizado pelo próprio rei. Assim podia se dedicar a outros projetos pessoais em casa, um privilégio de poucos.
- Nillia!... Nillia! – gritou ele, esbaforido, ao adentrar a porta principal.
- O que foi, meu amor? – respondeu ela, assustada, próxima à porta.
- Prepare a mala das crianças... Partiremos ainda essa noite.
- Pelos deuses! Pra onde? – disse ela segurando suas mãos suadas.
- Dypsia provavelmente, Noch nos ajudará...
- Você não o vê há anos, Quazar, como sabe que está vivo?
- Apenas sei, por favor, se apresse... Não temos muito tempo... Pegue só o necessário. Preparei algumas distrações, mas acredito que amanhã pela manhã já estarão à minha procura. Peguei óleo o suficiente para que não paremos por um segundo sequer. Até descobrirem para onde fomos e nos alcançarem já teremos alcançado nosso destino.
- E Levi?
- Já partiu pela manhã.
- Converse com o rei, Quazar, explique a situação... – disse ela calmamente, apoiando as mãos sobre seu rosto, tentando acalmá-lo. - Talvez possa convencê-lo.
- Ele não é o que pensa, minha senhora... – respondeu ele meneando a cabeça. - O que ele pediu que eu fizesse não servirá para salvar ninguém, disso eu tenho certeza. Ele sabe exatamente o que quer e eu só fui entender isso bem mais tarde do que precisava. Se eu não entregar o que me pede... Ele trancará vocês nas masmorras daquele castelo até que eu o faça. É um risco que não quero correr.
Nillia assentiu.
- Não queremos... – disse Nillia erguendo os pés para que beijasse sua testa, arrancando-lhe um sorriso enquanto se entreolharam.
Era impressionante como sua mente atrapalhada encontrava paz toda vez que a encarava, era seu remédio diário, como ele mesmo dizia. O único vício que fazia questão de sustentar.
- Me encontre na oficina – disse ele beijando seus lábios carinhosamente com a brevidade que a situação exigia. - Vou verificar tudo antes de partirmos.
Quazar
Já havia perdido a conta dos dias passados em claro, não que dormisse muito, mas as olheiras profundas entregavam sua jornada até ali. A carroça fora transportada por um dos navios mercantes do porto de Audar. Não existia qualquer meio mais discreto de chegar ao destino que pretendia ou mais seguro, o mar era traiçoeiro e desconhecido pelos traços de sua caneta, por saber nadar como as âncoras dos barcos o teria evitado se pudesse, mas não havia caminho ao norte que não passasse por ele. Certamente os registros o entregariam, mas cavalos dormiam enquanto seus motores poderiam funcionar para todo sempre depois que chegassem em Fisbia.
Apesar de todos os percalços, não poderia reclamar da jornada até ali, bem mais tranquila do que imaginava. Dália havia se comportado exemplarmente como se entendesse a gravidade da situação. De vez em quando ainda era surpreendido com a maturidade da pequena jovem. Já a pequenina parecia ter gostado do balanço das estradas pouco exploradas. Das frutas secas só haviam sobrado as maçãs, mas eram tantas delas que poderiam ainda sobreviver por meses pelas estradas. A carroça tinha em seu topo pontudo uma estrutura de lona espelhada escondido que se alimentava das raras chuvas naquela época. Uma das milhares engenhocas que inventara para manter água fresca sempre à disposição. Imaginava, em seus devaneios matinais, grandes pirâmides espelhadas alimentadas pelo mar com motores e dutos criando rios entre as dunas.
As piscadas longas cessariam em poucos dias. A cidade de árvores traiçoeiras e robustas, habitada pelos enigmáticos seres da floresta já caminhava ao seu lado e o mar não estava muito longe dali. Não eram poucas as histórias das pessoas que se perdiam ao adentrá-la. Quando pararam por poucos minutos no caminho, encarou-a por tempo significativo. Poderia estar louco, mas tinha a certeza de que vira por um instante seus troncos caminharem entre si. Talvez olhos poucos treinados não pudessem perceber tais movimentos, mas ele, acostumado aos encaixes de pequenas peças, não poderia deixar de repará-los. Apesar disso não tivera tempo para chegar a qualquer conclusão final naquele estado.
Apontou os dedos contra o pôr do sol e mais quatro horas restariam antes que o sol fosse tomado pelas estrelas. Foi quando minutos depois se deparou com uma legião de corcéis. Seu ouvido ruim impedira com que adentrasse a tempo à floresta ou se jogasse ao mar antes que estivessem próximos demais. No segundo caso, a estrutura da carroça, mesmo pesada, flutuaria tempo suficiente para que encarassem o mar perto da costa e se mantivessem distantes tempo o suficiente para que pensasse em algo.
Quando os percebeu, já estavam à distância de seus olhos, em pisadas pesadas e numerosas, eram pelo menos uns vinte deles, cavaleiros com o brasão dos moinhos de vento de Audar estampados nas armaduras pesadas e lustrosas. Os cavalos não eram menos protegidos, a estrutura de metal cobria a fronte da cabeça à crina e grande parte do dorso, preparados para guerra, sem dúvida, ainda que os conflitos raramente se apresentassem naqueles tempos. Somente um deles se diferenciava dos demais. Parecia menor sem dúvida, talvez pela armadura leve de couro preto que cobria todo seu corpo, mesmo tom da pelagem de seu cavalo. Seu elmo era ornado em detalhes dourados que corriam pela estrutura metálica como pequenos riachos. A frente convergia para uma única linha vertical ao centro e a abertura nos olhos mais largas que o normal, uma proteção bastante incomum e pelo menos aparentemente não tão efetiva quanto as demais. Ainda assim estava à frente, indicando que se tratava do líder da pequena legião.
Os cavalos eram tão rápidos quanto sua carroça motorizada, mas mais ágeis. Como chegaram até ali? Tinha refeito os cálculos tantas vezes. Seria impossível que chegassem até ele. Era impossível, droga, pensou junto a si mesmo. Estava à frente dos animais que se aproximavam pelo lado esquerdo, mas antes que tentasse sobrecarregar o motor para tirá-los dali, as lanças voaram em direção às rodas. Tentara tirar o máximo possível de peso da estrutura para que se tornasse mais veloz, mas a ideia também o deixara frágil. Claramente não o tinham como alvo, provavelmente o quisessem vivo, assim como Nillia e as pequenas para que pudesse chantageá-lo. Só torceu para que nenhuma os atingisse, mas ainda que muitas delas tivessem cravado ao chão, uma delas atravessara uma das rodas vazadas, a arma no primeiro momento tivera a ponta cravada ao chão como as demais, mas com o corpo transpassado sobre a roda de aço, começara a girar junto da estrutura circular, fazendo com que metal inflexível partisse uma das rodas. O desespero fizera com que freasse no momento seguinte. Agora não poderia mais ganhar dos animais que se aproximariam segundos depois pela traseira da estrutura estilhaçada. Nillia fora orientada a se manter quieta caso o pior acontecesse. Alçapões espalhados pela estrutura criariam um caminho pelo qual poderia fugir. Por mais que estivesse preocupado com sua amada e com as filhas, não poderia entregá-las. Saltou da carroça o mais rápido que pôde e correu em direção à traseira do veículo esfumaçante, correndo os olhos sobre a estrutura para se certificar de que estava íntegra. Ele tinha certeza que sim, projetara-as habilmente para que não cedessem mesmo em casos como aquele. Só então correu em direção aos cavalos com as mãos levantadas.
- Eu me rendo, eu me rendo! – gritou desesperado, distanciando-se o máximo que conseguiu. Os cavalos seriam inúteis na floresta e estavam a alguns passos dela. Precisava apenas ganhar tempo e com sorte abater alguns deles.
Os cavalos finalmente cessaram seus passos diante dele.
- Onde está o projeto da máquina? – questionou a voz aguda do exótico cavaleiro que havia acabado de descer da montaria e se aproximava. Shasak não carregava nenhuma espada em sua cintura. Aos olhos de todos pareceria alguém incapaz de combater qualquer um que fosse. Um mensageiro talvez.
- Nunca chegou a ser desenvolvido, senhor... Eu só disse que faria por temer pela vida de minha família... – respondeu ele com a voz trêmula.
- Novato, traga o baú até aqui – ordenou o líder a um soldado ao final da cavalaria, que assentiu imediatamente. Era o menor dos homens ali. Desceu da montaria e desprendeu as travas de uma pequena caixa que carregara cuidadosamente até os dois como se fosse uma cesta de ovos. Abaixou a caixa sobre o gramado e a abriu, revelando um conjunto de esferas brilhantes, bem acondicionadas sobre tecidos macios. Tinham uma malha metálica que cobria uma estrutura envidraçada. Em seu interior os raios de sol ainda vigorosos revelavam uma substância turva e alaranjada. - O que são essas esferas?
- Incendiárias, meu senhor, queimam por dias antes que possam ser apagadas – lembrara ele das armas que construíra. Passara tantas coisas em sua cabeça naquele momento. Uma delas a de que certamente poderia ter se preparado melhor. Talvez se não tivesse gasto tanto tempo com problemas inúteis tivesse pensado naquelas que de fato importassem. A certeza das variáveis de seu plano o cegara. Não que um pequeno arsenal fosse fácil de ser transportado sem levantar questionamentos por aqueles que o atravessaram pelo mar e nem que fosse hábil com as ferramentas que criara, mas pensar era a única coisa que fazia e ainda assim falhara.
- Foi você que fez, não foi? – questionou Shasak.
- Sim, a pedido de nosso rei – respondeu Quazar, encarando o homem esguio.
- Onde está o projeto da máquina? – insistiu em tom ríspido. – Se algo se mexer naquela carroça, jogue-as contra ela – ordenou aos homens que começaram a avançar com o trotar vagaroso pelos lados do soldado próximo a eles, fazendo com que fossem armados um a um.
- Eu já disse que não o tenho, meu senhor... Eu lhe imploro, juro que farei o que me pede se as deixarem ir... – implorou ele com os olhos sujos e avermelhados que se debulhavam em lágrimas, encarando o homem e a caixa sem poder fazer nada.
- Se qualquer parte dele estiver em algum desses bolsos é melhor que me dê agora.
- Por favor, meu senhor, trabalharei todos os dias que quiser por quanto tempo desejarem... Só deixe que minha família vá embora, eu lhe imploro, por favor.
- Tsc...tsc...tsc... tsc... Bom, não pode me dizer que oportunidades não lhe foram dadas – observou o homem arrancando o elmo e revelando a face felina.
- O que é você? – questionou, nunca havia visto alguém como ele. Um homem-fera coordenando exércitos audarianos? Como não o conhecera antes? Como nunca ouvira falar dele em tal posto em tantos anos?
- Somente um homem que vive de buscar a verdade – disse Shasak dando um sorriso.
Precisava de uma distração e a coisa mais próxima que via era o baú. Se o alcançasse explodiria todos ali. Quando viu Shasak ameaçando levantar o braço, correu contra o objeto com todas as forças que tinha. Shasak não o impediu e o soldado assustado fechou a caixa rapidamente e puxou para junto de si, jogando-a atabalhoadamente para trás. Antes que tentasse sacar a espada, Quazar pulou ferozmente sobre o homem que caira ao chão. Nunca empunhara uma única arma na vida, mas naquele momento arrancaria o rosto do cavaleiro com as mãos caso precisasse. Subiu por cima do homem e deu alguns socos sobre o duro elmo de metal, partindo-lhe as mãos, bastaria que o homem se desorientasse e o próximo passo estaria bem diante de si, quando o elmo finalmente se desvencilhou da cabeça do soldado. O rosto que viu o paralisou. O rosto choroso de Levi era confrontado pelas gargalhadas de Shasak e dos outros soldados.
- Eles já haviam avisado, meu senhor... Disse que me matariam... – justificou o ajudante, com o olhar assustado e lágrimas nos olhos.
Quazar ficou em silêncio por um instante, encarando-o, ofegante, enquanto a razão terminara de se esvair de sua mente. Agarrou o pescoço de Levi com ambas as mãos, enquanto o aprendiz se debatia e grunhia, tentando afastar-lhe os braços. Nem mesmo aqueles soldados poderiam, seus dedos cravaram no fino pescoço com tanta avidez que suas mãos já estilhaçadas se tornaram uma só com o sangue que jorrava dali. Quando os olhos de Levi finalmente perderam o brilho, ele partiu para seu próximo objetivo. Cambaleou por um instante enquanto se levantava e antes que partisse de encontro ao baú, sentiu a lança atravessada por seu estômago rapidamente indo e voltando como uma agulha.
Encarou Shasak com a mesma ferocidade que contrapora Levi, mas continuou a frente rastejando com a mão no estômago, antes que o pé de Shasak empurrasse seu peito contra o chão.
- Segurem-no e mantenham seus olhos abertos, farei com que contemple sua criação – ordenou o algoz, enquanto os homens obedeciam às suas ordens.
Arrastaram-no e o colocaram de frente com a carroça diante de seus olhos. Os punhos foram travados com algemas largas, separadas por uma pequena corrente.
- Pelos deuses, por favor, parem... Minhas crianças estão lá... Por favor, parem... – gritava Quazar aos soluços rezando para que os deuses as tivessem tirado dali. Na confusão que criara, certamente Nillia havia fugido, tinha certeza que sim. Aqueles idiotas não teriam nada, NADA!, pensou ele enquanto começou a gargalhar repentinamente.
- Agora – disse Shasak com um sinal à frente, enquanto as esferas lançadas viajaram pelo ar.
Quando caíram, o fogo se espalhou como óleo, e as chamas cobriram o chão como um gramado incandescente, vivo e sem fim. Fechou os olhos, antes que o motor explodisse. O barulho não fora tão alto aos seus ouvidos, mas os cavalos bufaram e relincharam, ainda que sob controle das rédeas repuxadas.
- Papai... – chamou a voz sonolenta, quando abrira os olhos. Dália caminhava em passos cambaleantes à frente, segurando o pequeno ursinho de violeta no braço que ainda lhe restava.
Ele correu na direção da pequenina até que pudesse agarrá-la em seu colo. Os passos desgovernados cessaram quando ela encostara o rosto em seu peito. Sua respiração baixinha era como as ondas que iam e viam.
- Papai, está tudo tão escuro – resmungou ela, esfregando-lhe a barba fumegada com a pequena mão.
- Está tudo bem, minha filha... Está de noite agora... É hora de dormir... – disse ele, com as lágrimas lhe tomando o rosto enquanto a abraçava contra o peito, pendulando de um lado para o outro como a fazia para acalmá-la.
- O senhor... O senhor... Pode contar uma historinha pra mim? Tá doendo tanto...
- Vai passar, meu amor... Shhh... Shhh... Shhh... - sussurrava ele baixinho em seu ouvido.
- O monstro mau... Ele não pode pegar a gente, né? – disse ela antes de adormecer na paz que trouxe consigo, em meio ao seu soluço inconsolável de dor. Seu pequeno mar da mais pura paz. No fim, o monstro mau havia vencido.
Quazar
Deu o último abraço antes de depositar o pequeno corpo sobre o chão. Uma das mãos ainda segurava o pequeno urso quando ele se voltara de joelhos para encará-los, amaldiçoando cada um deles com os olhos. Sabia que não havia nada a fazer, mas fotografara cada pedaço de rosto exposto, cada marca em suas mãos, cada detalhe que pudesse o levar de volta até eles se um dia pudesse. Pedia a benção de qualquer um deles, oferecia sua alma em troca pelo destino cruel daqueles homens. Se os dessem mais um dia, um único dia, ele os faria pagar. Foi quando o farfalhar das folhas e dos passos pesados se aproximaram como uma manada em sua direção.
Um jovem acinzentado de cabeça calva e rosto marcado saiu das florestas. Narthus estava vestido com roupas de linho comum, ainda que os braços expostos fossem vistosamente largos, as mãos estavam arroxeadas pelas amoras que coletara perto dali. Trombara inicialmente com o dorso lateral de um dos cavalos, fazendo com que jogasse o cavaleiro montado para trás junto com o animal, continuando sua trajetória em direção a Shasak.
O comandante desviou do corpo desgovernado, mas ao tentar aparar o golpe do dorso do braço do gigante, foi arremessado contra outros dos cavalos. A confusão fez com que alguns cavalos se assustassem e poucos cavaleiros conseguissem se manter de pé.
- Vamos, peguem-no – bradou um deles, agora não mais risonho, antes que avançassem sobre o rapaz desarmado, que correu em direção a Quazar.
O jovem, talvez até mais rápido que os cavalos, agarrou-se e o jogou sobre o ombro esquerdo, voltando-se novamente em direção à floresta a passos largos e alcançando a sombra das copas, impedindo que os cavaleiros os alcançassem.
Por cima do ombro do homem, pôde ver Shasak jogando a adaga que girara no ar. Não conseguiu fazer nada. Narthus era tão forte que ele sequer conseguira mover seu débil corpo ou alertá-lo a tempo. A adaga perfurara as costas do gigante que pareceu tê-la sentido por um momento ao arquear o corpo por um breve instante, antes que continuasse a adentrar a mata e sumisse em meio aos troncos e folhas.
Sua cabeça sempre cheia de planos finalmente se esvaziou.
O JARDIM SECRETO
Rixi
Izilium era a mistura entre terras, o chão rochoso e pouco plano impedia que alguém a explorasse de forma adequada, em volta, as montanhas que a protegiam da confortável brisa que vinha do mar. Esparsa entre os corredores rochosos por pouco não se transformara em pequenos desertos. Um verdadeiro labirinto verde entre as montanhas.
Os pequenos seres mágicos de fogo já haviam se afeiçoado pelas travessuras de Rixi, talvez pela sua origem próxima ou pela alegria da fada comum aos mais jovens, que lembrava os amigos que costumava brincar muitos anos atrás. O fato é que permaneciam entretidos após tudo que havia acontecido.
Se pretendiam chamar a atenção dos iluminados corpos nas noites por ali, fariam com que se tornassem pequenos faróis, a dificuldade com as fogueiras também não era mais sentida a dias, e o paradeiro de Cavian e Sirius era verificado todos os dias por Narthus, no mesmo horário, um sinal breve pelas pedras, só para garantir que estavam vivos e bem.
Poucos dias se passaram quando finalmente o sinal esperado chegara ao fim da tarde, para o alívio de todos. Uma voz juvenil ecoada das árvores os chamara.
- Deixem as criaturas de Kerradum e a fada em paz... – ordenou a voz parecendo se movimentar, um menino provavelmente, já que não era possível ver ninguém atrás delas.
- Não somos seus inimigos... – disse Narthus erguendo os braços. Talvez por seu tamanho fosse difícil não se apresentar como uma ameaça.
- Viemos trazer informações de Yuki... – complementou Mika, enquanto Melgar assentia.
- E onde está a exploradora? – questionou novamente a voz.
- Foi capturada pelos reinos aliados... Provavelmente movida para Fisbia – continuou Mika.
- Se ela foi capturada, como chegariam até aqui sem ela? Quem lhes repassou a informação sobre esse lugar? O protocolo não permite tais ações... – resmungou o menino, tentando engrossar a voz.
- Ela não nos contou... Nós é que deduzimos pelas informações que tínhamos, senhor voz das árvores - resmungou a fada. - Chame logo alguém que resolva as coisas antes que a gente perca mais tempo... – ordenou.
- O protocolo é o mesmo pra todos... – retrucou a voz.
- Que protocolo de merda é esse? Acha que quatro adultos e três crianças vão invadir seu esconderijo...
- Se não me responderem adequadamente, terão que achar o caminho sozinhos... – resmungou a voz.
- Desculpe, não é nossa intenção... – disse Narthus gentilmente, com a calma habitual – Como minha companheira revelara foi um bom chute... Ainda que realmente tenhamos realmente pressa... A jornada a pé nos tomou preciosos dias até aqui...
- Senhor grande líder, me informe seu nome por gentileza... – disse a voz, ignorando o franzido nariz da fada.
- Narthus Sarduin... de Faldram... – respondeu ele, ainda que desajeitadamente.
- Um minuto, meu senhor... Verificarei o que pode ser feito... – disse a voz de maneira formal.
Demorou alguns minutos de fato até que retornasse. Aguardaram pacientemente ainda que as crianças tivessem medo de tanto verde. As mãos quentes não poderiam tocar quase nada por ali e Melgar tentava entretê-las com uma de suas histórias antigas, visto que a fada de cara emburrada parecia não estar tão disposta a utilizar suas artes mágicas, deitada sobre um pequeno galho ao lado, com a cabeça escorada sobre o velho sobretudo.
- Caminhem pelo caminho iluminado, por gentileza... – disse a voz antes que algumas pequenas luzes se acendessem entre as árvores.
Caminharam pelo corredor esperando que não precisassem decorar o caminho de volta. As árvores pareciam todas iguais e igualmente espaçadas até que se deparassem com uma porta bastante semelhante à vista na casa de Rizar, de batente largo, porém, com aspecto mais rústico. Além disso, era seguida de outra e de outra em sequência, eram pelo menos vinte delas, formando o que parecia um corredor de portas, ainda que não fosse contornada por qualquer estrutura.
- Sejam bem-vindos, meu nome é Percigon... ou Gon se preferirem, eu serei o seu guia... – disse o menino, escorado à estrutura com os braços cruzados, provavelmente Audariano, rechonchudo como se a boa comida não lhe faltasse, com o rosto todo pintado com a área vermelha sob seus pés. As pernas abaixo do joelho haviam sido substituídas por estruturas de ferro, em formato bastante semelhante às naturais, com exceção dos pés, um par de pequenas rodas acobreadas. A prótese era um conjunto de sucatas remendadas, ainda que bem montadas. Uma das mãos tinha somente três dedos, e na outra só dois deles, na qual o pulso carregava um relógio quadrado e longo, do tamanho de uma tavassa. Na cintura, carregava um cinto de pequenos bolsos com um maior ao centro. Nos menores, era possível verificar alguma das pedras de comunicação, que pareciam ter sido ordenadas propositalmente.
- Obrigado, meu jovem... – agradeceu Narthus.
- Me chamo Mika... – apresentou-se a drow, levantando a mão ao rapaz, com um sorriso tímido.
- Melgar, Rondor, Eldror e Oberor... – continuou Melgar apontando para cada uma das assustadas crianças.
- Então era você o menino desbocado... – resmungou Rixi, voando próximo ao menino o encarando com a cara amarrada.
- Não tanto quanto a senhora... – retrucou o menino, enquanto ela franzia o nariz. Que sujeitinho desbocado, pensou, ainda que tentasse se manter calma dentro do possível.
- Rixi é seu nome... – revelou Narthus.
- Hammm... – resmungou ela assentindo.
- Muito prazer – cumprimentou Percigon sorrindo, enquanto as rechonchudas bochechas pareciam espremer seus olhos. - É importante que só passem por essas portas comigo – orientou ele, apontando para o relógio e aproximando-o em uma das esferas da porta que se iluminara. - Caso contrário... Bem, não posso dizer o que acontece porque nunca o fiz... Mas peço para que não o façam, o.k.? Não quero problemas pra mim... – implorou o jovem abraçando as mãos, enquanto fazia uma cara de súplica até que assentissem.
Percigon entrou pela porta seguido pelos demais.
Saíram sobre uma parede rochosa. E Percigon esperou até que Narthus passasse por último para que levasse o relógio novamente à porta. Parecia um sistema de chaves e fechaduras mais rebuscado do que havia em Tessan. O lugar que encontraram não era um salão como na casa de Rizar e sim um vilarejo. Era grande, verde, e apesar de rodeado de rochas, era iluminado em seu topo por um grande buraco, uma floresta confinada dentro do coração das cavernas, recheada de pessoas de todos os povos como as cidades livres.
O topo, apesar de translúcido, não era uniforme, assemelhava-se a um topo de vidro, e Narthus pôde ver quando alguns esquilos pareceram caminhar sobre o ar, apesar dos pequenos animais parecerem não os perceber sob as pequeninas patas.
- Bem-vindos a Makia, o terceiro dos sete purgatórios – revelou o menino aos rostos enjoados, principalmente Melgar, que colocara a mão aos joelhos. O portal, diferente do antigo, parecia não se tratar só de uma porta de passagem. Alguns habitantes treinavam ao longe com espadas de madeira contra bonecos de palha fincados sobre o campo, outros pareciam recolher legumes e frutas sobre uma esteira. Alguns braços mecanizados, alimentavam-nas, coletando-os de tubos de adonsoneiro compridos, perfurados como peneiras, fazendo com que dos pequenos buracos florescessem uma floresta sem copas. Ao longe, casas e mais casas se espalhavam, umas sobre as outras, como em Faldram, ainda que se cruzassem e se grudassem às paredes rochosas como se fizessem parte dela. – Como podem ver, temos crescido como grandes formigueiros... Aqui costumam ficar os mais novatos como eu, até que passemos pelos testes para ascender.
- Isso explica porque tem se mantido por tanto tempo... – observou Mika com olhar surpreso, que pareceu ser inclusive a única não afetada pela situação.
- Recebi ordens superiores para que os mantivesse aqui, eles devem recebê-lo no domo... – disse o menino estranhamente animado, apontando para uma estrutura mais ao fundo. Bem ao meio do vilarejo, no mesmo eixo da fenda translúcida acima de suas cabeças, podiam ver a ponta de uma estrutura arredondada coberta por galhos e folhas.
Caminharam entre os corredores das casas construídas com os mais diversos tipos de materiais, na maioria metálicos, pedaços largos de madeira quebrado, semelhantes aos usados nas embarcações, rodas tortas de metal, pedaços uniformes de couro, entre outras coisas que virariam lixo nas mãos de mentes pouco criativas. Nada parecia ser desperdiçado ali, inclusive no ponto que mais chamara a atenção. Pelo menos metade deles, assim como Percival, pareciam carregar as chagas da guerra estampadas em seus corpos. Pés, mãos, braços e até mesmo corações pareciam ter sido substituídos pelas máquinas que não costumavam mais habitar a superfície. Não que fossem aprimoramentos, eram rústicos em toda sua maioria, mas serviam ao que se propunham.
Não eram economizados sorrisos por onde passaram, estes reais. Talvez tivessem perdido tanto que o mínimo parecia ser muito.
O domo tinha um portal largo, e mais parecia um jardim dos grandes castelos, com flores tão coloridas quanto as borboletas estampadas, que passeavam tão tranquilas, que pousaram sobre a cabeça calva de Narthus como se encontrassem um novo abrigo.
Passos mais atentos pelos corredores revelavam que não se tratava exatamente de um jardim, era ali onde enterravam seus mortos. As pedras brancas que o enfeitavam eram cobertas pelos nomes dos que haviam partido. Uma flor plantada para cada um deles, uma pedra para relembrá-los pela eternidade, era a regra estabelecida pelo protocolo. Era belo como a vida e talvez por isso conseguiam ser afastados da lembrança da morte.
Ao centro, havia algumas mesas redondas com bancos de pedra, onde os mais idosos e mais novos compartilhavam os vícios dos tabuleiros. Uma grande mesa vaga fora apontada por Percigon.
- Pediram para que a gente esperasse aqui – orientou Gon.
- É lindo... – observou Rixi de pé, com os olhos encantados, enquanto segurava uma das orelhas de Narthus. Fazia tempo que seu espírito não se acalmava daquela forma. Talvez por saber que Persus pisara sobre aquelas terras, ou por mais tarde ter que rascunhar todas as coisas novas que vira, ou até mesmo por lembrá-la de Faldram, com o costume que inspirara o lugar. No coração da floresta, os mortos viravam árvores, mas certamente era impossível ali, a não ser que arrumassem uma montanha maior.
- Fazemos companhia uns para os outros... Mal sabem os de lá de cima que quanto mais partimos lá em cima, mas belo deixam esse lugar – gargalhou Percigon. – Eu mesmo já quase escolhi minha... Dizem que na casa de nosso rei... O homem que me fez essas pernas, há um lago contornado por dálias e violetas! – exclamou o menino meneando as mãos. - Acho que vou escolher a segunda, uma bem azul... Mas ainda não sei...
Rixi gargalhou.
- Vá viver primeiro, garoto... – ironizou ela. - Pense em morrer só quando não conseguir mais caminhar sobre esses gravetos...
- Prefiro não arriscar, vai que fico chato igual a você... – retrucou o pequeno, para o riso de todos, quando a fada estalou os dedos e criou fagulha nos cabelos do jovem, que rodeou a mesa tentando abafar os cachos fumegados.
Pouco depois, algumas pessoas longe dali começaram a se curvar, o braço direto cruzado sobre o peito, a palma da mão estendida cruzando o coração, e um dos joelhos ao chão, era como os libertos escolheram reverenciar seu rei, que diferente dos bem-nascidos, cumprimentava gentilmente todos que podia.
- É ele, é ele! – exclamou o menino em êxtase, enquanto também o saudava. – Eles disseram que viria...
Ela o reconhecera de Faldram, mas Quazar guardara pouco daquela época. Os óculos de solda, agora com lentes transparentes, que antes o acompanhavam somente no trabalho, agora pareciam grudados sobre o rosto. As orelhas foram arrodeadas por conchas que se cobriam umas sobre as outras. Mas havia detalhes ainda mais curiosos. O pequeno urso, já desgastado pelo tempo, fora mantido em sua cintura e o rosto ainda se encontrava sujo como da última vez que o encontraram anos atrás.
- Ouvi dizer que haviam chegado até nós - revelou Quazar.
- Lembro de você.... Não é Quazar? - questionou Rixi, esfregando o lado da testa com os olhos espremidos, enquanto tentava resgatar as lembranças.
- Temo que sim... - respondeu o engenheiro.
- E comanda essas pessoas? - questionou novamente ela.
- Nisso está enganada - retrucou Quazar, rindo. - Todos são livres aqui... Pelo menos dentro dessa montanha...
- Desculpe, meu senhor – interrompeu Percigon. - Tenho que alertá-lo que a dona fada é um pouco encrenqueira, eu mesmo tive que contê-la mais cedo... Posso levá-la a outro lugar se desejar – propôs firmemente sob os olhares risonhos da fada, que levava as mãos à boca.
- Agradeço pela preocupação, meu rapaz... Gon, não é? – questionou Quazar, fazendo com que Percigon assentisse com um sorriso que não cabia em si. - Sabe bem como ficam fora daquele paraíso em que nasceram... – justificou ele. - Aliás, na minha opinião, a mais bela de todas que já conheci... Creio que conheça Noch, estou correto? – questionou, dirigindo o olhar à fada.
- Por muitos anos... – respondeu ela com uma classe incomum. O tom formal estranho aos ouvidos de seus companheiros tinha um motivo. Noch era o único entre os Falirianos, a alta casta de Dypsia, a se manter fora dos portões do reino depois de seu fechamento. Diferente dos Vinolianos como ela, haviam sido criados pelos próprios deuses, e assim como os humanos tinham suas famílias e histórias. Ainda assim, foi o único deles a enfrentar os novos tempos ao invés de se esconder. Alguém que merecia seu respeito.
- Ele ficará feliz em revê-la... – revelou Quazar. – Aliás, você é o único do qual não poderia esquecer o nome – disse ele agora apontando os olhos para Narthus. – Cresceu ainda mais, meu rapaz... Sabia que andava por aí e quando ouvi o nome nos portões desse lugar, fiz questão de recebê-lo... – disse Quazar para surpresa de todos, menos dela.
- Já faz algum tempo... – disse Narthus envergonhado. – Fico feliz que esteja vivo... Tínhamos pensado que...
- Que eu tinha morrido... – interrompeu Quazar. – Confesso que era meu desejo... Mas eu fiz um trato naquele dia... E infelizmente ainda não tive a oportunidade de cumpri-lo...
- Prometeu construir quantos lugares como esse? – questionou Rixi, curiosa.
Quazar gargalhou com a voz pigarreada.
- Foram mais uma consequência... Um desejo compartilhado por outros descartados como eu... – sorriu Quazar. – Ainda que muito mais competentes. Como vêem, já somos velhos conhecidos, só não havíamos sido apresentados formalmente... Sentem-se, por favor, vamos tratar de nossos amigos em comum...
- Já deve saber que precisamos de ajuda... – disse Mika.
- Não é ajuda quando os desejos são mútuos – respondeu Quazar, fazendo com que Mika assentisse. – Rizar é um grande amigo... Me ajudou a fazer com que lugares como esse se tornassem possíveis... Mas Yuki talvez fora a exploradora com mais feitos entre os libertos, mais até do que os mais velhos como Persus... Garanto que todos aqui não negariam ajuda a quem quer que fosse, mas por ela certamente muitos deles morreriam. Ela e suas legiões trouxeram muitos até nós até lugares como esse...
- Então já deve saber o que teremos que enfrentar... – afirmou Mika.
- Em torno de mais de cinquenta mil soldados armados, sob a proteção de uma das fortalezas mais intransponíveis já criadas e sob o comando dos reinos aliados... – suspirou Quazar. – Bem... O que posso adiantar é que nunca enfrentamos nada parecido.
- E o que temos ao nosso lado?
- Considerando a data que temos em mãos, conseguiríamos movimentar entre os outros acampamentos mais próximos, cerca de dez a vinte mil... Não mais do que isso – lamentou Quazar. - Há muitos movimentos incomuns na superfície e a execução de Yuki parece só ser a cereja do bolo... Segundo as informações que chegam ao nosso conselho, os reinos aliados se preparam para um grande ataque armado, dessa forma, é provável que inclusive tenham encontrado uma forma de encontrar parte de nós ou todos nós... Ainda que não tenhamos nenhuma pista de como puderam fazer isso... Ainda que estejam aqui... – brincou ele.
- Entendo... Parece pouco pra aquele lugar... - observou Mika. – Mesmo que Cavian e Sirius consigam derrubar o portão e igualar as forças...
- O plano de Cavian era garantir o apoio dos povos das florestas, ainda o temos, eu acho... - observou Narthus.
- Tem um ponto, grandalhão, mas até conseguirmos falar com Gaya, quando Faldram começar a pensar em se mover, esse jardim já terá crescido... – observou Rixi.
Mika assentiu.
- Pelos métodos tradicionais não... – observou Quazar. - Onde acham que estão?
- Izilium? – questionou a drow, confusa.
- Errado... – observou ele, apontando a ela o dedo indicador. – Não posso dizer onde, mas estamos bem mais a noroeste, ainda que não tenhamos finalizado nosso projeto de comunicação à distância, posso fazer com que cruzem o mar em alguns minutos.
Explicaram o plano pelas horas que se passaram, Quazar os questionara em tantos detalhes que qualquer um deles pudera entender porque os libertos haviam se tornado tão resilientes.
Finalmente tinham um plano, parecia inclusive um bom deles. Se perdessem mais flores nasceriam naquele Jardim, como Rixi bem observara, mas se ganhassem, bem, talvez elas pudessem finalmente começar a florescer fora dali, verdadeiramente livres.
ENTRE O SONHO E A REALIDADE
Sirius
Sirius aproveitava o fluxo intenso dos guardas para transpassar as defesas do castelo. Pelo menos a armadura que coletara em meio às pilhas de corpos ao chão, provavelmente não seria percebida. Fez questão de convencer os demais que arrastá-los com suas armaduras dificultaria o trabalho, assim teriam dificuldade de correlacionar o número de homens com o de armaduras. Confessava a si que Cavian tinha feito um ótimo trabalho, ainda que carecesse de certa brutalidade. A maioria ali só teria dores de cabeça por dois dias ou mais, nada que os ajudasse no que estava por vir.
Pensou em envenenar parte de seus suprimentos, algo sutil. O suficiente para não ser percebido ao mesmo tempo que retirava parte de suas forças. Não poderia ser sobre a água, pois esta provavelmente poderia ser servida a Yuki, ainda que duvidasse que tratariam qualquer prisioneiro que fosse com tamanha benesse. As bebidas seriam suficientes. Fez questão de descobrir onde se faziam os festejos. A armadura era um pouco larga pra ele, mas era como se tornar invisível por ali. Durante o dia seria sua proteção, à noite as sombras bastariam.
Conhecia mais algumas saídas secretas, tinha certeza que conseguiria tirar Yuki dali. Não conhecia os outros prisioneiros, mas infelizmente era necessário definir prioridades e nunca foi seu plano ser qualquer salvador como Cavian pretendera. Era inclusive bom que não estivesse ali. Seus passos barulhentos e suas decisões pouco efetivas fariam com que o número de pessoas resgatadas subisse e as chances de sucesso declinassem.
Deixara a armadura escondida abaixo de uma pilha de sacos de juta amontoados. Era onde descartavam os restos da cozinha, ninguém mexeria ali, pelo menos não até o sol nascer novamente. Precisava chegar ao salão principal. Provavelmente estaria habitado ainda naquele horário. Guardas eram especialmente bons em não fazer nada, principalmente em tempos nos quais nada deles era exigido.
Foi exatamente o que encontrara. Sobre o mezanino vazio, vira alguns pequenos grupos ainda por ali, menos de dez. Provavelmente o álcool havia subido tanto em suas cabeças que não seria capaz de distingui-lo de qualquer outro por ali. Era perfeito. Precisava descer. Barris e mais barris estavam depositados sobre aquelas paredes. Algumas gotas de veneno de Gonevidre faria com que seus estômagos se remoessem por alguns dias, mais do que cinco faria com que conhecessem a morte em provavelmente algumas horas. A segunda alternativa era arriscada demais, Shasak estava ali, não deixaria que seus soldados morressem, mas um ataque sutil talvez passasse despercebido aos seus olhos, afinal, os sintomas da ressaca eram comuns e quase nunca contados aos seus mestres. A única certeza que tinha era que soldados não ficariam sem suas bebidas, assim como as plantas não podiam viver sem o sol. Muitos dos rebeldes que os enfrentariam em alguns dias ficariam devendo suas cabeças a ele, mesmo que nem sequer soubessem de seus débitos.
Arrancou a capa, antes de descer as escadas, e pegou a primeira caneca que vira a sua frente, cambaleando entre as fileiras de mesas vazias e sujas de restos. Nem porcos fariam tamanha bagunça. Restos de ossos, carne e bebida se misturavam nas extensas mesas de madeira. Inclusive ficou surpreso quando viu uma pata de urso por ali. Sua carne mal havia sido tirada do osso, a única coisa que talvez ainda sobrasse parcialmente inteira por ali. Um bom sinal aliás, gigantes não estariam por perto. Fazia muito tempo que não enfrentava um.
Assim que chegou perto, um dos homens o interrompeu.
- Venhaaa... Meu jovem guerreiro... – soluçava um deles. - Venha comemorar... a glória dos heróis... dessas terras.
Sirius sequer respondeu. Virou a boca de sua caneca ao chão assim como o próprio corpo, e fez um sinal de negativo com a outra mão, indicando que falta de bebida era sua prioridade no momento. A virada da caneca fora suficiente para que ele mesmo fosse ao chão, arrancando a gargalhada dos poucos que o assistiam. A encenação até ali precisava ser minimamente convincente, estavam vulneráveis, mas não eram idiotas completos, apesar de estarem bem próximos disso.
Aproveitou o chão para se arrastar abaixo da altura das mesas. Assim garantiria mais um tempo sem que fosse notado. Ergueu se apoiando nos barris que se sobrepunham uns sobre os outros, fingindo uma terrível fraqueza em suas pernas. Atrás deles, havia um reservatório maior, uma caixa de madeira parecia abastecê-los, o que tornava seu trabalho ainda mais fácil. Enquanto abraçava um dos barris da pilha à esquerda, contou rapidamente a quantidade de barris, levou a mão à cintura e sacou a pequena seringa. Escondeu o braço direito da visão das mesas, cravou a agulha na superfície amadeirada e pressionou o êmbolo o suficiente, um pouco antes de chegar ao final.
Voltou a seringa ao cinto e se dirigiu à torneira logo ao lado, completando a caneca até quase transbordar. Acenou rapidamente aos homens que riam copiosamente e batiam nas mesas com as histórias que careciam de certo pudor.
Aproveitou o barulho para caminhar até onde viera, passando atrás de um dos pilares já distantes e se escondeu nas sombras. Virou a caneca de cerveja ali mesmo antes de subir as escadas. A última leva saudável dos próximos dias.
Subiu novamente as escadas, recuperou sua capa e saiu em direção à torre mais próxima da masmorra. Eram interconectadas. Sabia o caminho, os corredores largos e as poucas luzes o acompanhavam como bons aliados. Desceu finalmente as escadarias da torre mais próxima. Abriu a porta e encarou o campo aparado de grama. Uma estrutura abraçava a torre enquanto dois guardas guardavam a porta. Não poderia abatê-los, não até que libertasse Yuki. Mal sabia o que lhe aguardava lá embaixo. Janelas estreitas, não suficiente para que passasse. Impossível de entrar sem se expor.
Paciência, gritava em sua mente para si mesmo. A paciência era a criadora das melhores oportunidades. Uma hora ou outra um dos guardas falharia. Fizera aquilo tantas vezes no passado que quase passara a ser um dom premonitório. Separou as pedras mais afiadas que encontrara ao chão e aguardou atrás de uma das carroças de feno próximas dali. Um dos guardas finalmente saiu de seu posto. Provavelmente a bexiga cheia não aguardaria até o amanhecer. Assim que tomou certeza da distância, Sirius puxou o estilingue que carregava consigo. Era composto de três pernas de mesmo tamanho, mas duas delas se abaulavam em formato de U. Esticou o máximo que conseguiu e aguardou o guarda caminhar para fora do campo de visão do portão, atirando contra a nuca do homem desavisado. Um único tiro certeiro, fazendo com que ele desabasse, como se um fantasma o tivesse atingido. O barulho da armadura ao chão foi suficiente para chamar a atenção do outro, que andou cautelosamente para ver o corpo do companheiro, correndo em direção a ele assim que o viu estendido. Nenhum alarme seria soado ali. A pedra provavelmente sumiria na penumbra e tudo não passaria de um evento gerador de teorias pela manhã. Aproveitou a distração, girou sobre o outro lado da carroça e caminhou rapidamente até ao portão que guardavam. A adaga foi sacada e enfiada no vão do portão. Levantou seu dorso cuidadosamente, sentindo o peso da tranca sobre ela. Assim que a adaga se livrou, empurrou uma das faces da porta, adentrando na primeira barreira. Simples, como nos velhos tempos, pensou ele, voltando a tranca na mesma posição. Via a entrada para o calabouço ali, na escada reta que descia para a linha abaixo do chão. As lanternas de óleo nas laterais levavam a um corredor único. Era problemático, outros prisioneiros poderiam dedurá-lo caso o vissem. Não teria escolha a não ser arriscar.
Nem sinal de guardas, tantos lá fora, poucos lá dentro, o cenário padrão de todos os cofres. Caminhou silenciosamente, entre as barras fixas. Alguns corpos deitados ao chão, algemados e silenciosamente imóveis. Um deles tinha uma barba e um cabelo mais grossos e longos que seus próprios membros. Provavelmente já estivera há anos ali, definhando com o sopro do tempo.
Eram muitas celas, talvez por isso sua localização fosse tão ao centro, assim teriam tantos hóspedes quanto fossem necessários. Um único par de olhos o encontrara, atônito e esbranquiçado, que o encaravam como um vulto encapuzado. Estava preparado para matá-lo, mas não o fez. Talvez estivesse convivendo tempo demais com Cavian e os outros. Mesmo que duvidasse que o velho poderia fazer algo, era sempre uma melhor opção silenciar as vozes de vez.
Caminhou mais alguns passos até que finalmente a encontrou. Os cabelos prateados e longos reluziam sobre a luz fraca e cobriam parte de seu rosto. Estava estirada sobre uma plataforma de pedras junto à parede, sozinha. Abriu um sorriso sem qualquer motivo. Havia a encontrado, disse que o faria, mas sempre no fundo ainda restavam dúvidas. De qualquer forma, dentro de si sabia que era mais do que o desafio que o motivara.
Examinou a fechadura de Trilium assim como suas barras. Podiam resistir à magia, mas não a mãos hábeis como a dele. O conjunto de espetos de ferro parecia com um molho de chaves com diferentes grossuras e pontas. Limpou o rosto do suor que escorria por sua testa, tentando sentir as travas nas pontas dos dedos. Foi abrindo uma a uma, até que escutou um estalido baixo no mesmo momento que a porta da cela finalmente se abriu. Yuki virou rapidamente sobre o chão, com as mãos em riste, enquanto se ouvia o tintilar das correntes. Defenderia-se a qualquer custo e sempre que pudesse, mas Sirius finalmente tirou seu capuz. A dama de gelo parecia não acreditar no que seus olhos viram diante de si.
- Ei, princesa, sua cavalaria chegou – sussurrou baixo, antes que ela partisse em sua direção. Ela não o reconhecera? O que estava acontecendo ali?, pensou ele, quando as correntes travaram os braços de Yuki, jogando-a contra o chão.
- Fuja, Sirius... – ela disse antes que ele pudesse sentir. Era como se o ar ficasse pesado em volta de si. Fazia tempo que seu coração não experimentava a sensação de desespero que tomara seu corpo naquele momento. Sentiu seus nervos tremerem como na vez que estivera em Opanum. Mal precisou virar seu rosto para vê-lo. A armadura pesada e enegrecida. Um ser daquele tamanho não poderia ter aparecido em suas costas sem que percebesse. Assim que girou para atacá-lo, sacando a adaga em suas mãos, o punho serrado encontrou seu estômago. Foi jogado contra as grades com violência, como se fosse um boneco de pano, enquanto o sangue escorria por seus lábios.
- Mais um ratinho preso na gaiola – disse a voz grossa e abafada.
Mal conseguia respirar. Um único soco o desmontara por completo, não havia como fugir ou como se esconder.
Sirius
Os punhos acorrentados doíam menos que sua cabeça latejante. Foi jogado à cela por dois guardas, caindo sobre o chão de pedras. Levantou meio atordoado ainda. Suas armas e truques haviam sido todos retirados de si.
- Sirius... – escutou a doce voz de Yuki, ainda tentando desembaralhar sua silhueta ainda embaçada.
Haviam-no prendido ao lado dela. Ao menos uma boa notícia, pensou ele se aproximando da grade de onde ela o chamava.
- Desculpe, princesa, como pode ver um bom espetáculo precisa de dificuldades – brincou Sirius exibindo as mãos nuas.
- Você é louco, Sirius, ninguém entra nesse lugar sozinho.
Ele não poderia falar de Cavian. Seu caminho fora limpo, para todos só um homem os teria abatido e fingido sua fuga, sequer desconfiariam que Cavian poderia ter fugido com qualquer coisa que fosse. O detonador estava a salvo, ou seja, sua provável salvação e a de Yuki estavam bem guardadas fora do alcance de qualquer um de seus inimigos.
- Bom, digamos que entrei... Só não consegui sair. Imagino que não tenho nada para dor de cabeça aí, tem? – disse ele apertando os olhos, enquanto massageava o dorso de sua cabeça. A dor era intensa, aquelas grades quase amassaram seu crânio na noite anterior.
- Sirius, pare de brincar, não entende a situação? Eu não sairei viva daqui e agora nem você.
- É pra isso que vim, princesa. Quando te disse que não seria um troféu em minha prateleira, eu falava sério. Era a oportunidade que eu precisava para que acreditasse em mim.
Yuki simplesmente se calou, mas o sorriso em seu rosto fora talvez o tesouro mais ousado que encontrara em toda a sua vida.
- Não sei o que dizer, você consegue ser insanamente adorável.
- Do jeito que fala vou pensar que tem escondido algum interesse sobre mim.
- Algum não, alguns – disse Yuki, puxando-o pela grade e beijando-o com intensidade.
O beijo apaixonado o fez esquecer de onde estava. Diziam que a proximidade da morte intensificava os sentimentos. Não sabia se era verdade, mas preferia morrer naquela semana com ela, do que uma vida inteira sentado contando os incontáveis tesouros que viria a ganhar fora dali.
Sirius
O baixo número de hóspedes e as poucas luzes dificultavam a interação com quem quer que fosse. Era até estranho que estivesse ali ao lado dela. Não acreditava em sorte, não ali. Quase poderia farejar o estranho futuro próximo de si, uma sensação de que algo ruim estivesse prestes a acontecer.
Talvez a falta de confiança em Cavian. Desde o começo achava a sua ideia de confrontar o rei dos dragões algo impossível, mas ter ido até ali, bem, não foi somente a confiança própria de que pudesse realmente resgatar Yuki. Seu pai lhe ensinara a sempre ter uma saída, um plano de fuga caso as coisas fugissem daquilo que haviam planejado, e o que tinha até ali era ter depositado sua fé em alguém que provavelmente desconfiasse da capacidade. Era estranhamente lógico pensar que, por um momento, sua mente tivesse sido enganada, ainda mais com seu ceticismo sobre certos e felizes desfechos.
- O quanto acredita no seu irmão? – questionou Sirius, sentado no banco de pedra ao fundo da cela, com um braço apoiado sobre a única perna dobrada, que tentava achar espaço no estreito espaço. O chão frio e sujo parecia uma opção bem menos atrativa de qualquer forma.
- Uma pergunta estranha, senhor Sirius – respondeu Yuki, ainda deitada, como se estivesse refletindo sobre opções que nunca poderiam se concretizar na situação em que estavam. - Digamos que nunca o vi desistir diante de meus olhos, nem diante da mínima possibilidade de sucesso. Ele nunca se deixou levar pelos números como eu.
- É uma boa qualidade, diria até que ele é quase como eu, ainda que lhe falte bem mais bom senso.
Yuki sorriu.
- De fato, é tão teimoso quanto você, mas isso não tem a ver conosco, tem?
- Em parte sim, sempre duvidei das palavras dele desde que o conheci. Achava que ele um maluco que não podia distinguir seus sonhos da realidade, mas se ele pudesse mesmo derrubar seu pai do poder, seria o iniciar de uma nova era, um novo mundo.
- Não é tão simples como acho que ele acha que é, mas não é impossível como muitos acham que é. Não que importe pra nós, provavelmente partiremos antes de ver qualquer possibilidade de isso acontecer.
- É uma mulher de pouca fé, minha princesa. Talvez devesse passar a acreditar em milagres.
- Os únicos que presenciei saíram das mãos dos homens, não de deuses.
- Pois então, sou um homem não sou?
Yuki riu.
- Das mãos dos homens livres.
- Talvez eu não seja o único capaz de fazer milagres.
- Confesso que ter chegado até aqui, foi bastante próximo de um.
- Preciso te confessar uma coisa – disse ele sussurrando baixo ao se aproximar das grades da cela. – Eu poderia ter te tirado daqui, mas daí provavelmente você fugiria de mim, então acabei optando por essa fúnebre opção.
Yuki riu.
- Faz as coisas ficarem mais leves, sabia? Pressão nunca foi um problema pra mim, mas seu jeito de lidar com isso realmente é novo pra mim.
- Penso que o peso de nossas decisões já é fardo demais para qualquer um de nós, princesa, mas fico feliz que tenha se dado bem com a sua restrita vizinhança - disse ele enquanto cruzava os olhares com ela, antes de ambos voltarem a atenção para os passos nos corredores mal iluminados pelas tochas, que exalavam o cheiro dos vulcões cuspidores de fogo.
Dois dos guardas se aproximaram das celas. O molho de chaves pendurado na cintura do primeiro se chocava contra sua armadura a cada passo, fazendo com que o tintilar do metal ecoasse pela masmorra.
- Ei, tire os colares do pescoço e os deixe aí no fundo da cela – disse um deles se dirigindo a Sirius, assim que parou à frente de sua cela.
Sirius se aproximou deles rindo, como se desdenhasse de seus pedidos.
- Infelizmente não posso, mas podem me levar do jeito que estou, como podem ver não tenho tido muitos compromissos por aqui - retrucou ele, levantando as mãos nuas e acorrentadas.
- O mestre disse que você não o faria e pediu para levar a moça no lugar caso se recusasse a obedecer às nossas ordens.
Shasak sabia o que estava fazendo. Ele arrancaria cada gota de desespero dos dois. Ela quebraria cada pedaço de suas mentes antes de partirem. Ele os faria sangrar até que eles mesmos implorassem por partir. A morte era sua recompensa e o desespero sua diversão.
- Sirius, por favor, essa guerra não tem nada a ver com você – suplicou Yuki, prontamente se levantando. Nunca vira o semblante de desespero em seu rosto. Sequer por um momento, nem mesmo diante de Killsqual. Era estranhamente reconfortante ver sua reação, ainda que preferisse algumas dessas respostas em um ambiente bastante diferente daquele.
- Eu me rendo – sorriu ele abaixando as mãos, enquanto Yuki o olhava com reprovação. – Já é noite, princesa, chegou a hora de dormir. Não se preocupe, negociarei nossa saída daqui – finalizou ele sussurrando, ainda que os próprios guardas pudessem escutar, enquanto o primeiro deles jogava um capuz de juta e um par de algemas enferrujadas para dentro da cela.
Sirius
O capuz foi retirado de sua cabeça enquanto os passos do metal sobre as pedras se distanciavam de seus ouvidos. Ainda vira as celas perto dali. Provavelmente só estivera em outro lugar da masmorra. Estava sentado sobre um banco. As algemas de ferro haviam sido movidas para seus pés e as mãos foram separadas por uma de madeira já travada sobre uma mesa. À frente dele, havia um arsenal de ferramentas sobre a mesa e sobre os pregos fincados nas paredes de pedras. Pinças longas, tesouras, martelos e até mesmo foices de tamanhos diversos decoravam o amplo salão, tingidas por cores pouco convidativas.
O mesmo homem do outro dia afiava de costas uma pequena faca sobre um bloco de pedra acinzentada. O atrito do metal era suave, como o som vindo das mãos dos hábeis artesãos. Cusgar parecia calmo e sua armadura era a mesma de sempre, com superfícies toscas e enegrecidas, que não deixavam brechas para qualquer abertura. O corpulento martelo estava apoiado um pouco mais longe na parede, próximo a uma pequena mesa de dois lugares que comportava alguns baldes acima de si.
O cheiro de sangue putrefato dominava o lugar e as manchas vermelhas escuras se espalhavam como traços de pinturas mal feitas e inacabadas.
- Você é o rei por aqui, não é? – começou Sirius sem que houvesse qualquer traço de medo em sua voz. – Lembro de Shasak falando sobre o rei do castelo negro. Ele nunca se referia a você com o desdém habitual, então sempre imaginava que fosse uma figura imponente o suficiente para que pudesse contê-lo. Apesar disso, durante esses anos nunca havia me dado a oportunidade de matar minha curiosidade – continuou, enquanto Cusgar continuava silencioso ao raspar o metal. - Fiquei pensando em como me descobriu naquele dia e única explicação que veio em minha cabeça foi a de que você dormia por aqui, mas aí me perguntei, que rei faria isso?
- Fala demais pra alguém em sua condição – interrompeu Cusgar com uma voz rouca que causaria calafrios à maioria que a escutassem. Parecia trazer consigo o presságio da própria morte.
- Ah... Não se engane, já estive em algumas piores – disse ele franzindo o nariz, enquanto esfregava o pé nu contra o chão, até que a coceira no solado se aliviasse. - No fim penso que você é mais uma marionete no tabuleiro, seguindo as ordens daquele gato velho. Nenhum rei de verdade se rebaixaria tanto, o que pra ser sincero acabou me decepcionando um pouco.
- Não me interessa seus conceitos sobre o que quer que acha que saiba desse mundo, meu rapaz, sou somente um garantidor da justiça dos homens – respondeu o algoz de maneira fria.
Sirius riu.
- Fala como um sábio, vossa majestade, mas não passa de um tolo se acha que faz qualquer justiça escravizando seu povo, independente de qual deles você faça parte.
- Faz parte do trabalho. Nem todos podem ser livres para que a verdadeira paz se concretize. A liberdade requer responsabilidade, meu caro, que poucos infelizmente parecem dispor. Dessa forma meu dever acaba sendo protegê-los de seus próprios interesses impuros.
- E eu estou preso nessa mesa sob qual acusação? – questionou Sirius, enquanto Cusgar finalmente terminava os trabalhos na lâmina e se encaminhava em direção à mesa.
- Traição ao tratado, incitação de caos social, tentativa de libertação de contraventores, invasão ao reino de Fisbia, deserção e mais alguns outros que listados fariam com que eu me estendesse além do necessário – disse, puxando o banco de madeira e se sentando à sua frente. Talvez Sirius reconsiderasse algumas de suas palavras anteriores. Seu coração levemente acelerado pareceu perceber antes que sua mente com o que estava prestes a lidar.
- Havia pensado em me defender, mas provavelmente a maioria dessas acusações me parecem corretas – concordou ele sorrindo. - Um pouco exageradas, confesso. Falando do jeito que falou, pareço ser mais competente do que me considero, o que não é pouco, mas em sua primeira frase pude perceber que sua cegueira provavelmente vem de sua própria fé, o que talvez mereça perdão.
- Deixei de acreditar em milagres vindos do céu já faz um certo tempo meu rapaz, mas se quiser lhe darei o tempo para rezar aos seus deuses antes que eu comece. Peço somente que seja convincente o suficiente para que venham até mim, para que implorem por piedade enquanto eu nego suas ofertas – respondeu Cusgar passando o dedo da manopla na lâmina que acabara de afiar. – Somente a justiça, pura e simples.
- Ia pedir para que limpassem esse lugar, que caso não tenha percebido, está com um cheiro está insuportável, mas pode começar se quiser.
- Geralmente trabalho sozinho, mas Shasak insistiu em participar dessa vez.
- Ah, sim, seu mestre... Ele realmente adora espetáculos, mas lugares sujos como esse não costumam fazer seu estilo, entende? Se me soltar, posso pensar em te dar umas dicas, ainda que ache que você encontre algumas dificuldades, já que parece passar tempo demais lambendo suas botas – satirizou Sirius, encarando os pequenos globos brancos de pupilas esbranquiçadas pela fresta de seu elmo, ainda que estranhamente não conseguisse encará-lo por não mais que um breve momento.
- Que bom que está à vontade, logo ficará ainda mais ao me contar seus maiores segredos – disse Cusgar, parecendo ignorar as brincadeiras. – Garanto que quanto mais interessantes, mais rápida será nossa conversa.
- Shhhhhhh... – disse Shasak se aproximando deles, com os braços cruzados atrás das costas. Estava com uma túnica branca que destoava totalmente daquele lugar, refletindo, assim com os olhos amarelados e a pelagem dourada de sua face, a pouca luz que vinha das tochas presas às paredes. – Como fala, Sirius... Podia escutar seu ruído ao longe.
- Parece que se acostumou a pedir para que os outros façam o seu serviço por você.
- Ah, meu caro, tão eloquente, tão confiante... Poucos têm essa coragem quando chegam aqui, sabia? Conseguem até manter a pose nos primeiros segundos, mas depois... – disse Shasak, rindo como se boas lembranças vissem a sua mente.
- Haha... Tome cuidado, vou achar que está feliz ao me ver novamente... – brincou Sirius.
Shasak gargalhou.
- Confesso que vê-lo nessa situação é prazeroso, mas é por razões que desconhece que meu sorriso transborda ao rosto. Preciso te confessar que não chegou onde chegou por mero acaso, meu caro Sirius, mas caminhos errados são errados e hoje você aprenderá a lição por furtar seu mestre – continuou morosamente enquanto se aproximava pela lateral de Sirius.
Sirius cuspiu em seus pés.
- Tem tanto orgulho dessas mãos não tem? - Disse Shasak colocando a mão sobre seu ombro - Que a sinfonia comece! – exclamou Shasak.
Cusgar enfiou lentamente as pequenas lâminas sobre a carne abaixo de suas unhas. A dor era excruciante e os gritos tomaram o silêncio das celas. Dedo a dedo suas unhas foram lascadas como pétalas. Não citara qualquer palavra, qualquer acontecimento ou qualquer pista que pudesse levá-los a lugar algum. Sua consciência fora tomada algumas vezes, ainda que as injeções de Shasak o trouxessem de volta, com o impulso das batidas aceleradas de seu coração. Seus olhos estatelados só conseguiam enxergar com clareza o sangue escarlate correndo sobre a mesa e nem seus gritos de dor eram capazes de abafar as risadas do monstro que servira por tantos anos. Eram tão límpidas aos seus ouvidos e ecoavam em sua cabeça como se seus pensamentos tivessem fugido dali. Os dedos arrancados um após o outro, pedaço por pedaço até que não sobrasse nada de suas hábeis e treinadas mãos. Nenhuma arma mais seria meneada por elas, nenhum ouro mais apareceria em suas palmas e tampouco moedas dançariam entre seus dedos.
Sirius finalmente se calara.
Yuki
Os dias que se passaram eram poucos, mas pareciam como os mais longos anos e o horror que Yuki vira naquelas celas a impactara mais do que esperava dela própria. Não que não estava acostumada com tais atrocidades, até hoje as imagens do incidente de Makia lhe vinham à mente, mas vivenciá-las rotineiramente era uma tarefa que dessa vez não parecia tão simples. Separados pelas grades da prisão, ela utilizava o pouco poder que conseguia através do colar de Trilium que envolvia seu pescoço para tentar controlar a infecção e o sangramento do que restara dos antebraços de Sirius. O pouco de pano enrolado não faria qualquer milagre, não restaria muito tempo até que se fosse, ela sabia disso e provavelmente ele também. Os dois eram alimentados com restos e em quantidade totalmente insuficiente. Yuki tentava inutilmente fazer com que ele comesse sua parte, ainda que por certas vezes pensasse em deixá-lo partir. Talvez tomasse a atitude com a maioria das pessoas que estivesse ali. A frieza que corria em seu sangue na maioria das vezes ditava o tom, mas seu egoísmo não permitia que ele a deixasse. Faltava pouco, no próximo dia provavelmente veriam o sol novamente e pela última vez. Seria importante que fosse com ele e surpreendente da mesma forma, em algo que achou que nunca pudesse sentir, a última coisa que tinha desistido de viver. Talvez um aviso de que não havia mais nada a ser feito, que poderia partir sem arrependimentos e vivendo tudo o que gostaria de ter vivido. Era o que sua mãe teria desejado.
Sirius gargalhou repentinamente.
- Eles acham que podem me parar nos dando restos? Quando éramos crianças, mal tínhamos isso pra dividir. Precisava ver a cara deles, Yuki, quando viram que saíram sem nada, até Shasak parou de rir.
Yuki escutou atenta, já havia escutado a história algumas vezes desde que voltou.
- Pare de ser teimoso, precisa comer...
- Você come, eu como, daqui a pouco eles chegarão, eles vão nos resgatar, Yuki, seu irmão me prometeu.
- Tudo bem... Vamos juntos então – disse ela levando os pedaços à sua boca. Logo depois de que voltou havia comentado que Cavian e os libertos tinham um plano para libertá-los. Nem todos seus exércitos tinham força para algo como aquilo. Talvez em alguns anos, um tempo que não tinham para dispor. As histórias ao menos o mantinham consciente, um modo de fugir daquele lugar talvez, ao menos por algum instante.
- Quando me abraçou naquela caverna pela primeira vez... Imaginei que estivesse recebendo uma dádiva dos deuses por meu bom comportamento... Cheguei a acreditar que pudesse haver outra vida além daqui no mundo deles, sabia? – continuou ele de boca cheia.
- Acho que eu estava tão feliz de tê-lo encontrado e por você tê-lo salvo que passei um pouco dos limites – disse ela limpando cuidadosamente os restos de comida dos lábios ressecados.
- É engraçado porque por um momento sequer sabia porque tinha salvo seu irmão, daí momentos depois nunca havia ficado tão feliz de tê-lo feito – brincou Sirius.
Yuki riu.
- Nem vou comentar... O que significavam esses colares em seu peito? Shasak pareceu ter um certo interesse por eles... – perguntou Yuki, segurando em uma das mãos os colares que Sirius havia pedido para que ela colocasse de volta assim que recobrou a consciência. O mais chamativo tinha um corvo unindo suas asas com uma lua minguante, o mesmo da capa que tinha em sua capa. Os detalhes que não deixavam dúvidas em relação às mãos hábeis do artesão que o havia confeccionado, tamanha sua perfeição. Já o segundo, de uma liga ferrosa escura, apesar de tosco, revelava um Aqüil, um mamífero marinho que se adaptava facilmente em qualquer local, e que apesar de raro, era visto tipicamente na região de Landris, conhecia-o bem. Conhecido como o vigilante dos mares, geralmente o encontro com Aqüis simbolizava bons presságios e não era raro ser utilizado como símbolo de proteção.
- Ah, sim... Isso? Acabei não mencionando, mas meu pai já conhece você... – revelou Sirius para sua curiosidade. – Esse primeiro é recebido por cada filho de Nymo – disse apontando com o que restara do braço o colar com a presença do pássaro.
- Nymo? Nymo é o pai que tanto mencionara? – questionou ela, e mais uma vez pensou que tudo não passava de um delírio, apesar de ser incomum seu conhecimento sobre ele.
- General Nymo do quarto esquadrão, o poderoso guerreiro de Aquia que liderou seus exércitos à glória na batalha dos mil dias e que ensinara os herdeiros do trono sobre tudo o que poderia ser dito sobre as artes da guerra. Ah, e antes que eu me esqueça, o único homem capaz de ter roubado o poderoso rei dos dragões – disse Sirius como se anunciasse a chegada de algum nobre. – Cansei de ouvir as histórias sobre o seu reino quando pequeno.
Era impossível, não poderia ser invenção de sua cabeça. Não com tantos detalhes certeiros como aqueles.
- Era... Digo... Nymo era nosso professor...
- Sim, eu inclusive fiz perguntas ao seu irmão sobre os generais dragões quando o encontrei. Acho que ele ficou impressionado... Quando falei de Cavian para ele, o velho ele quase surtou. Ele nunca pôde se expor, todos os ataques e furtos que fez, aqueles que os reinos aliados reivindicaram para si, serviram para alimentar e criar várias crianças como eu. Mas ele ficou feliz quando reencontrei seu irmão, eu acho, o velho quase nunca sorria, era coisa dele... Mas tenho certeza de que ele guardava algum apreço pelos filhotes de dragão, inclusive achava que você deveria ser a próxima rainha daquele lugar...
- Ele sempre foi uma de minhas inspirações... – revelou ela sorrindo.
- Enfim, deve saber da história de quando ele fugiu daquela montanha. A lua representava sua esposa, ele dizia que sempre nos protegeria dos pesadelos durante a noite. Como a maioria de nós tínhamos dificuldades para dormir quando éramos pequenos, isso ajudava de alguma forma, pelo menos ele fazia com que acreditássemos nisso... O velho sempre foi bom em convencer as pessoas... – revelou Sirius em tom nostálgico. - Já esse aqui – apontou ao colar enegrecido –, pelo que o velho me contou, foi dado por minha mãe biológica antes de ela morrer. Disse que me protegeria, mas parece que não tem funcionado muito... – completou Sirius, caindo na risada.
- Você está vivo, não está? – questionou Yuki com um sorriso no rosto.
- É... Se for pensar por esse lado, você tem razão, na última vez que o tirei acabei perdendo as mãos... – brincou ele, rindo, enquanto levantava os antebraços enfaixados de tecido pardo com as manchas de sangue já arroxeadas.
- E eu pensando que ninguém se importaria com alguém tão impertinente... Parece ter sido importante na vida delas...
- De fato... O velho é sem dúvidas fora de sério... Não me lembro dos meus pais de nascença, mas esse colar sempre me trouxe uma boa sensação... – disse ele em tom pensativo, cutucando o colar Landriniano.
- Dá pra perceber que sim... Quanto a Nymo, ele acabou partindo de Aquia quando eu ainda era pequena, logo após o ataque dos gigantes, mas até hoje é tido por muitos como o maior general que o reino já teve. Eu mesma aprendi muito com as escritas deixadas por ele, fica me devendo um encontro com ele quando sairmos daqui.
- Haha, eu acho que o velho vai enlouquecer se te encontrar. Ele deve te acompanhar pelas conversas por aqueles becos, mas acho que se te visse pessoalmente e relembrasse seu bom passado, talvez faça com que ele fique menos rabugento....
Yuki
Yuki viu Sirius se contorcendo durante a noite. A dor deveria estar o definhando por dentro. A ferida não cicatrizava e o encharcar de suas roupas demonstrava que a infecção provavelmente se alastrara. Ela tentava tirar mais uma vez as correntes de seu pescoço, mas lhe faltava força. Não que tivesse qualquer esperança, mas o desespero levava a atitudes impensadas na busca de milagres que nunca viriam.
- Sabe, Yuki, estava pensando, podíamos fazer alguma promessa para quando sairmos daqui – disse ele com a voz debilitada, virando-se para se levantar da cama de pedra ao fundo da cela.
- Até que não é uma má ideia, hein. O que você sugere? – disse ela, sorrindo a ele, vendo que o companheiro de cárcere mal conseguia ficar de pé. As olheiras cobriam seu rosto pálido, assim como a barba mal cortada.
- Estava pensando aqui, você é uma princesa, certo? Seu pai ficaria furioso se você se casasse com um plebeu, então você poderia fazer uma promessa de se casar com um deles, o que você acha?
- Hmm... Ah, sim – disse ela, franzindo o nariz, encarando-o. - Imagino até que você tenha alguma sugestão pra mim – disse ela se aproximando das grades da cela, curiosa.
- Lógico que sim, passei um certo tempo pensando na ideia durante a noite, sabia? Em primeiro lugar, deveria ser alguém que desafiou seus ideais publicamente... Isso é essencial, ele não toleraria alguém com tal comportamento, não é? – questionou enquanto ela assentia. - Em segundo, teria que ser algum humano... Meu pai disse que ele costumava odiar nossas fraquezas, correto?... Hmm, por último, imagino alguém dependente de você, com toda essa energia que tem, caso achasse alguém muito parecido com você, não daria certo, entende? Alguém que você precisasse cuidar por um longo tempo, talvez.
- Pelos deuses Sirius, isso é um pedido? – disse ela com as mãos à boca, fingindo-se surpresa.
- Depende, se você me dizer que vai aceitar – respondeu ele sorrindo.
- Na verdade, tenho uma outra proposta para te fazer... – revelou ela para o rosto surpreso do ladino. - Acho que não devemos esperar até sair daqui, o que acha? Vou adiantar isso para que a notícia chegue mais rápido aos ouvidos do meu pai... – sussurrou ela, aproximando-se das barras que os separavam. - Imagine, além de tudo um prisioneiro! Com certeza seria uma vergonha inestimável ao seu poderoso reino.
- Nesse caso temo dizer para a senhorita que não há muitas opções, sou o único por aqui – brincou ele.
- Pois bem, senhor Sirius, em nome de Gaya e dos velhos deuses, peço sua mão em casamento.
Seu rosto pareceu surpreso, não que presenciasse muitos pedidos, mas eram geralmente os homens que faziam seus pedidos.
- Ham.... Bem... – disse o ladino limpando a garganta. - Senhorita Yuki, seria um prazer imenso me ter ao seu lado pelo resto de sua vida – continuou enquanto o suor escorria por seu rosto.
Suas testas se encostaram entre os vãos das grades.
- Você agora é meu, senhor Sirius, pelo resto de sua longa vida – disse ela antes de beijá-lo, provavelmente pela última vez.
Yuki
A batida das espadas contra as grades pela manhã parecia com as badaladas dos sinos das catedrais, eram pelo menos dez deles. Yuki mal se mantinha de pé, havia gastado suas últimas energias para tentar conter a dor dos braços de Sirius, mas seu esforço não passava de mãos pouco geladas. No fim o resgate não veio, as esperanças se esvaiam e só se perguntava se Sirius ainda estava por lá. Quando os guardas o pegaram, ele ainda respirava. Veria o sol com ela pela última vez.
- Ei... Minha princesa... – sussurrou Sirius nos braços dos guardas, espremendo os olhos contra os poucos raios de sol que surgiam tímidos longe dali. – Vai ficar... tudo bem... – disse Sirius com um sorriso no rosto até que ela não conseguisse mais fingir e as raras lágrimas marejassem seus olhos pela segunda vez desde que nasceu.
MENTES AFIADAS
Shasak
A sala de reuniões cheirava a madeira molhada no quartel feito às pressas. Uruk se apoiava no peitoril da janela, vendo a imensa montanha coberta de árvores altas à sua frente. Opanum era uma terra de oportunidades após a queda de Monlok, um dos dragões Originários, e Shasak havia acabado de encontrar um dos tesouros escondidos entre as montanhas.
- Onde ele está? – questionou ele a Uruk, depositando sua lança sobre a mesa de pedra rústica e as luvas que acabara de tirar das mãos.
- No calabouço aos fundos. Um dos batedores disse que Cusgar chegará com o nascer do sol – respondeu Uruk secamente. Estava escorado em uma das paredes, longe do feixe ensolarado que adentrava a sala. Os troncos arredondados eram grudados uns aos outros com uma espécie de argila e o chão rachado coberto pela mesma mistura revelava que os construtores não dominavam com maestria os segredos das artes dos grandes artesãos. De qualquer forma era uma estrutura grande, com pouco mais de seis metros e com lamparinas que garantiriam as reuniões ao tardar da noite.
- Não podemos esperar. Ele é um ativo valioso demais para perdermos tempo, além disso, não fará qualquer diferença Cusgar estar aqui ou não. Vocês dois são guerreiros e não maestros da orquestra.
- Concordo... Dão importância demais àquele idiota...
Shasak riu.
- Sei que esperam de mim paciência, mas guarde sua ignorância pra você, por gentileza, meu nobre amigo... – disse Shasak em um suspiro profundo. - Não engoliu até hoje o que aconteceu, não foi? – continuou direcionando um sorriso sarcástico a Uruk.
- Tenha cuidado do jeito que fala Shasak, ao contrário dos demais, não tenho qualquer temor pelas lendas que dizem sobre você, não poupei meu próprio irmão, esqueceu? Imagine só o que faria com você...
Shasak gargalhou.
- Sabe o que me livrou do destino daqueles como eu? Eu, ao contrário deles, nunca questionei minha posição. Não se enfrenta ninguém mais poderoso que você, meu caro, e aquele homem era um perigo aos anseios de todos quando estava do outro lado. É por isso que estou nesse lugar... Perca seu tempo sendo útil e não ache que sua linhagem real o protegerá... Afinal, como você mesmo disse, se Bahamut não poupou o próprio filho, imagine o que seu pai faria com você? – ironizou Shasak, erguendo as sobrancelhas, enquanto esfregava os dedos caminhando pelo outro lado da mesa.
Uruk se calou, franzindo o cenho, parecendo tentar interpretar a fala que acabara de escutar. Mantinha-se com os olhos em direção às montanhas. Sem sequer virar para olhá-lo. Ele sabia que o príncipe estava enfurecido e se deleitava com a situação. Uruk poderia ser burro e impulsivo, mas não a ponto de agir. Até mesmo seu orgulhoso pai se curvara a Bahamut.
- O que fez com os civis? – questionou Shasak novamente, tentando retomar o foco da pequena reunião.
- Os que nada têm a oferecer foram úteis para preencher a vala que passou com seus cavalos.
- E o restante?
- Suas esposas já tiveram alguma serventia na noite anterior... Os herdeiros das correntes foram todos acorrentados como filhotes adestrados. Precisava ver o silêncio em seus olhos.... – gargalhou Uruk, finalmente esboçando um sorriso. - Era como se a alma tivesse fugido de seus corpos.
- Não os empurre demais... Poderão ser leais soldados daqui um tempo. Alimente-os o suficiente e verá o quanto poderão ser gratos.
- Esses humanos fracos não passam de pedaços de lixos, Shasak, mal conseguem carregar seus próprios corpos, imagine nos servir... – resmungou, finalmente o encarando.
- Jogue-os para matar seus irmãos então, assim nos poupará tempo e recursos. É necessário pensar mais como um burocrata, Uruk, logo terá um reino para administrar – continuou tentando massagear o ego ferido.
- Volus nunca precisou disso para sobreviver. O que precisamos sempre tomamos para nós.
- Mas me lembro dos carregamentos vindos de Audar, as mãos que estão ali são as mesmas usadas naqueles campos – disse ele sarcasticamente. - Só estou dizendo que humanos já criados não servem bem seus donos, expiram rebeldia, acredite em mim... É melhor que os ensine a obedecer antes que aprendam a falar.
Uruk deu os ombros. Provavelmente não entendia metade das coisas que ele dissera, tinha a certeira impressão de que discordava às vezes sem qualquer motivo apenas para parecer que sim.
- Não estava com pressa para ver o aleijado? Ele deve estar te aguardando – finalizou ele, enquanto Shasak pareceu se contentar com a resposta.
Persus
Persus estava ajoelhado sobre o feno. Suas mãos foram amarradas a um pequeno tronco que transpassava sua nuca. Não poderia reclamar de tudo, afinal, era um quarto extremamente espaçoso, que caberia pelo menos uma dezena de prisioneiros sem que se privassem de qualquer conforto. Uma única janela na porta permitia que os raios de sol adentrassem. Sempre gostou particularmente deles, não à toa levara sua face até que eles pudessem atingi-la, fechando os olhos e sentido o calor que vinha de cada linha de luz. Talvez fosse a saudade de voar. Sentia-se tão perto do sol quando dançava pelos ares. Quando fechava seus olhos, era como se conseguisse se transportar pra lá. Um transe que fora interrompido pelo ranger da abertura repentina da corpulenta porta de madeira.
- Olá, meu caro! – exclamou Shasak alegremente. Sua armadura de detalhes dourados era excepcionalmente bela e sem qualquer sinal de arranhões. Não vestia o elmo habitual, ou as luvas, ou as armas. Viera como um mero expectador com as mãos cruzadas às costas, uma postura que costumava repetir. – Uruk disse que não foi fácil pegá-lo....
- Deveriam ter mandado mais homens... – brincou.
- Certamente um erro de cálculo... Mas quem imaginaria que fosse atacar sozinho aquelas carroças de escravos. Seria muito ousadia para quem quer que fosse, não é? Tsc...tsc...tsc... – disse o rosto felino, aproximando-se enquanto se agachava. - Não me entenda mal, sou um apaixonado pela ousadia, mas me permita lhe dar um conselho valioso... Se continuarem assim, realmente temo que nossa diversão não durará mais do que alguns dias e seria uma pena, não? Vocês têm ido tão bem...
Ele riu.
- Não se preocupe, não sou como eles, eu luto apenas por meus próprios ideais e rezo todo dia para que os deuses me abençoem.
Shasak assentiu, se erguendo e caminhando até uma das paredes.
- Entendo... Espero que eles o escutem daqui – disse Shasak dando leves batidas na parede de barro, madeira e pedras. Não parecia ser tão difícil sair dali, mas as muralhas eram robustas e altas o suficiente para impedir os ímpetos mais pujantes. - Eu mesmo ficaria admirado se um deles intercedesse a seu favor. Inclusive, se vierem aqui, eu mesmo farei questão de pedir aos guardas que o libertem – ironizou ele.
- Você zomba da minha fé, mas não me importa se você acredita ou não, eu não a tenho por você, eu a tenho por mim. A eles pertencem o caminho, a verdade e a vida. Eles decidirão a hora de me libertar de meus votos...
- Fala bonito, Lumeriano, mas se engana se acha que a decisão é deles. Pelo contrário – disse Shasak se aproximando, agachando-se novamente diante dele com os braços sobre os joelhos. As garras da mão direita do homem fera se ergueram por um instante, pouco antes de abraçar seu pescoço como uma serpente. – Se acha que quem tem o poder de libertá-lo dessa vida é seu deus, deveria começar a rezar para mim.
- Por que não corta minha garganta? – questionou ele encarando seu algoz. - Vê? Pra mim, parece que não tem o poder que diz que tem, ao menos não em suas mãos.
Shasak riu.
- Você é alguém perspicaz, Persus, não teme a morte apenas por acreditar em uma mesa ilusão. Isso me dá tantas ideias... Eu mesmo talvez devesse usá-la em meus homens. Imagine! Se eu criasse alguns deuses poderia fazer com que matassem e morresse por mim com um simples gesto! – exclamou Shasak animado.
- Não pode manipular o amor por seus líderes, Shasak...
- É aí que se engana, meu caro... Eu sou aquele que pode criar heróis ou vilões por minha simples vontade – observou Shasak com o rosto se transformando no próprio Persus. – Eu poderia te tornar o último Lumeriano e me tornar o herói pelo qual escreveriam por décadas, ou me passar por uma simples senhora – continuou ele alterando sua face novamente de uma velha com um dos olhos arroxeados e mandíbula torta, que exibia uma voz aguda. - Que espalharia histórias sobre a crueldade que os libertos costumam tratar nossos escravos. Eu sou a história, Persus, eu as escrevo por aqui. Vocês são somente peças no meu tabuleiro.
- Deve ser difícil ser o dono da história e não ter ninguém para contá-la. Espero que realmente encontre a paz que procura – observou Persus quando Shasak deu um tapa em seu rosto com o dorso da mão, segurando-o depois pelo queixo.
- Me certificarei que apaguem seu nome delas – disse Shasak, enraivecido, ainda que mantivesse o sorriso no rosto. - Depois de hoje restarão somente mais dois ou três sobreviventes de seu povo. Um deles, um desertor como você. Me certificarei que ele se vá também para garantir que as próximas gerações sequer saibam quem vocês são.
Shasak
O dia acordara com um amanhecer neblinoso. As brumas pareciam flutuar sobre o gramado baixo que cobria as montanhas que se multiplicavam perto dali. Shasak acompanhara Uruk logo em um café de manhã farto e luxuoso, bem diferente do que fora reservado aos soldados. Logo depois saíram pelo forte com olhares observadores. Daqui a alguns dias, fariam uma nova remessa à aliança que se formara anos atrás. Muitos forasteiros frequentavam aquela região em busca de glória, mas eram os reinos aliados que detinham os melhores recursos. Eram pilhas e mais pilhas de pedras de alto valor, que atraía todos aqueles que almejavam o poder e revelavam a verdadeira natureza dos seres daquele mundo.
- Senhor, as crianças foram soltas – disse rapidamente um dos soldados a Uruk, enquanto se ajoelhava sem conseguir encará-lo.
- Está louco?! – gritou Uruk visivelmente transtornado.
- Des... Desculpe, meu senhor, só segui as ordens que me foram da... Dadas – gaguejou o soldado, mantendo-se sobre as pernas que de tão bambas pareciam mal conseguir sustentar o próprio corpo.
- Idiota! – esbravejou Uruk dando um chute seco com a sola de sua bota no peito do soldado, que caiu de costas na lama, com o sangue escorrendo pela boca.
- Sen... Senhor... – gaguejou novamente tentando se rastejar de volta aos pés de Uruk, com as lágrimas que se misturavam à lama e tingiam seu rosto. - Foi... Foi o mestre Cusgar, meu senhor. Não quis desobedecê-lo.
- Cale a boca, idiota, quem manda aqui sou eu, entendeu? Dane-se o que aquele lunático pensa....
- Me... Me desculpe, meu senhor, ju... Juro que não tive qualquer intenção de de... desafiar suas ordens.
- Deixe-o, Uruk - ordenou Shasak, abaixando o braço de Uruk, que já se encaminhava para o segundo golpe. - Agradeça por não ter soltado os demais. Essas crianças morrerão de fome em meio a essa selva, não há nada nem próximo daqui. Estarão na ceia dos acampamentos próximos dentro de poucas horas.
- Continue apoiando essas decisões e perderá as poucas utilidades que esses vermes ainda têm! – bradou Uruk em tom irritado.
- Tenho certeza que encontrará meios de resgatar esse sentimento de nossos homens, Uruk. Cusgar é um aliado poderoso, sabe disso, não deixe que sua raiva afete sua razão.
Uruk desdenhou da fala de Shasak, mas se voltou à direção de seus aposentos, até que outro soldado o chamasse a atenção.
- Senhor, tropas e mais tropas, senhor... No portão principal ao norte, muitos rebeldes! – exclamou outro dos guardas esbaforido correndo até ele.
Persus
- Achei que demoraria mais uma semana pra chegar - disse Persus com rosto já deformado pelos dias naquela cela. Suas mãos acorrentadas se apoiavam sobre os joelhos enquanto se sentava sobre restos de feno e lama.
Yuki riu.
- Achei que fosse dar mais trabalho a eles, por isso me atrasei - brincou ela, saindo de um buraco ao chão.
- Eles vão nos achar logo, logo, o guarda não fica mais de dez minutos sem vir aqui e já se passaram oito deles – alertou Persus.
- Digamos que eles estão um pouco mais ocupados agora - disse ela abrindo os pinos que prendiam as algemas como um pequeno dispositivo mecânico sanfonado de metal, tão especial quanto o que cobria os pulsos do anjo.
- Yuki, não me diga que...
- Fique tranquilo, nenhuma vida será perdida hoje, a não ser a nossa se não nos apressarmos. A trupe do circo de meu pai deve estar se reunindo nesse momento.
Shasak
- O que é isso no portão? - questionou Shasak ao guarda principal.
- São vários deles, senhores, saindo de trás das árvores, íamos atirar, mas não se aproximaram o suficiente. Estão em pé e imóveis como se fossem estátuas – disse o comandante.
- Estão se preparando para atacar, alimentem os canhões e não tenham pena desses vermes - ordenou Uruk.
- Sim, senhor! - exclamou o comandante das tropas, já se preparando pra sair.
- Espere... - interrompeu Shasak erguendo um dos braços. - Não faz nenhum sentido que esperem que a gente se prepare para que possam avançar. São idiotas, mas não a esse ponto. Quantos guardas moveu pra cá?
- Praticamente todos, senhor, os guardas das torres estão alertas e não viram nenhum sinal de perigo nas outras direções até o momento.
- Chega dessas suas conspirações, Shasak, eles estão esperando que mais cheguem, quanto mais cedo atacar melhor – zangou-se Uruk.
- Fique quieto! – bradou Shasak apontando a lança na direção do pescoço de Uruk. - Acha que apareceriam se fosse esse o motivo? Pense um pouco antes de tomar decisões estúpidas. Encaminhe metade das tropas para os fundos do castelo. Reforcem o controle das celas. Não deixem que ninguém saia daqui.
- Mas, senhor, o portão principal...
- Faça o que mandei! - esbravejou Shasak, fazendo com que o homem se movesse quase tropeçando sobre seus pés.
- Está perdendo a noção das coisas, não pense que não farei nada a respeito, eu não sou um rato seguidor de ordens como você – retrucou Uruk friamente, enquanto o ódio exalava por seu olhar.
- Faça o que quiser... – retrucou, ignorando-o enquanto pensava.
- Ainda fala como se suas ideias fossem capazes de derrotar exércitos – continuou reclamando Uruk. - Se esquece de que se eu descer desse lugar posso dar cabo desse exército de insetos. No fim é a força que importa...
- Senhor... - apoiou-se sobre o joelho para respirar, outro dos guardas. - A sala do liberto foi violada... Não há mais ninguém lá... Ele desapareceu, meu senhor...
Shasak pegou a lança com o rosto enfurecido e atravessou no peito do soldado, encarando Uruk ferozmente, enquanto o sangue respingava sobre o metal branco..
- Vê? Espere que tenha seu discurso preparado, filho de Volus, o conselho certamente é menos tolerante do que eu – disse Shasak, antes de caminhar em direção aos fundos do castelo, enquanto o silêncio de Uruk pairava no ar.
A NEVASCA DE BLACKHELM
Yuki
O sol estava radiante como não se via há tempos. A multidão e os exércitos se trombavam no espaço que dava visão ao topo do castelo. Não era pouco de forma alguma. Toda a cidade estava ali para assistir, além de todos os exércitos da noite anterior. Eram tantos deles que até dos telhados das casas e estabelecimentos era possível ver os olhos atentos à espera do que estava por vir.
Seria impossível que tantos aguardassem a fria execução. Yuki estava com as mãos e cabeça atadas por uma imensa algema de madeira e ferro, assim como os outros rostos pouco ou muito conhecidos que se alinhavam lado a lado. Sirius estava logo à sua esquerda, mas duvidava de que ele ainda pudesse sentir qualquer dor. Balbuciava algo inaudível e os olhos opacos talvez nem pudessem enxergar mais. Sua mente provavelmente se partira, ninguém aguentaria tanto tempo naquele estado.
Rizar também estava ali junto daqueles que partilhavam de seus mesmos sonhos. Encarava-a com um sorriso, talvez sabendo que aquilo o aguardava um dia, mas Yuki sabia o que aquilo realmente significava para ele. Era um apaixonado pela vida, talvez mais do que qualquer outro que pôde conhecer.
Ela continuou a observar a multidão atônita. Seria possível que tantos apoiassem aquilo? Defendessem tal ato? Era por eles que havia lutado todos aqueles anos e ainda assim muitos daqueles olhos eram como de urubus esperando que os restos fossem jogados às suas bocas famintas. Nem assim se arrependeria. Lutou pelo que acreditava, e aqueles poucos anos desde que se libertara de um sonho que achava ser seu, foram sem dúvidas os mais próximos do sonho que sonhara pra si. Como sempre um passo à frente, pensou ela sorrindo nostalgicamente, enquanto relembrava as tardes claras na companhia de sua mãe.
Seu pulso doía, o sol a cegava. Os seus algozes estavam sentados logo atrás dela na larga plataforma de madeira envolta pelo cinturão de pedras, logo acima do portão do castelo, um lugar perfeito para que todos pudessem ver o espetáculo. Malfien não estava ali, seu pai não estava ali. Talvez não tivessem a coragem de que tanto se gabavam. Gostaria de ao menos ter se despedido de seu pequeno irmão encrenqueiro. A vida seria dura pela frente e teria que trilhá-lo sozinho como talvez nunca o tivesse feito até então.
Talvez os libertos o ajudassem como fizeram com ela, talvez o futuro do reino realmente passasse pelas mãos de quem menos queria tal poder. Em seus sonhos era o que escolhera para ser seu mundo. Era o que provavelmente todos à espera da morte fizessem. Era possível escolher o futuro que desejassem, quando pela primeira vez na vida a verdade não lhe importava mais.
As trombetas soaram.
Ela viu quando os homens corpulentos adentraram pela larga escada lateral. Os machados eram tão grandes quanto seus portadores e provavelmente tão amolados que seriam capazes de fatiar o próprio ar. As armaduras de couro preto deixavam apenas os braços largos expostos e seus elmos de corte reto e pontudo que cobriam suas cabeças, que reluziam como grandes pirâmides metálicas balançando ao sol.
Viu também Cusgar e seus exércitos em meio à multidão. Os cavaleiros negros cruzavam por eles, enquanto alguns veneravam sua passagem. Destes, aqueles mais animados aplaudiam efusivamente. O rei que fora escolhido para eles. Para muitos um tirano, para outros, um salvador dos anseios sanguinários dos libertos.
- Morte aos rebeldes! – gritava um deles.
- Justiça pelos filhos dos deuses! – gritava outro.
Shasak se levantou, assim como Uruk na chegada da tríade de Kirins que caminharam até a frente do tablado de madeira. Trajados com o uniforme padrão de capacetes arredondados e túnicas avermelhadas, o menor deles impusera dois dedos sobre a garganta antes de iniciar seu discurso.
- Meu caro povo de Fisbia e todos aqueles acolhidos por esta abençoada terra! - bradou com uma voz que transpassava pelas multidões. A magia sobre suas cordas vocais fazia com que a sua voz ficasse clara até mesmo aos ouvidos do último dos homens. - Caros soldados que derramaram o sangue de seus inimigos para proteger suas famílias. Caros pais... Que hoje choram ao túmulo de seus filhos e entes queridos. Sabemos que as mãos de falsos líderes foram lavadas com o sangue seus irmãos e irmãs, seus filhos e esposas, mas hoje não viemos aqui somente para relembrá-los das tragédias que abalaram o coração de todos, mas sim para dar a vocês uma oportunidade, dar ao povo o merecido poder de retribuir um pouco do sofrimento que lhes fora causado. Hoje são eles que cairão diante de seus pés.
As palmas viajavam de leste a oeste, ao som repetido das mesmas trombetas.
Os carrascos se aproximaram lentamente e ergueram os machados sobre suas cabeças, aguardando o sinal de mãos de Shasak, que sorria com satisfação. A posição mais centralizada de Yuki e Rizar não foram ao acaso, eles teriam que partilhar a dor daqueles que os seguiram até ali. Não seria rápido, não perderiam a chance de ouvirem seus choros de desespero e aflição. Yuki e Rizar seriam os últimos, o prato principal, mas antes que as lâminas pudessem deslizar sobre o ar, outro som se sobressaiu. Um ruído alto vindo dos céus, um trovão em plena luz do dia alcançou seus ouvidos, vindo da ponta da torre mais alta de Blackhelm. Ainda que o sol atrapalhasse, era possível ver seu semblante contra o sol.
- Maldito... – enfureceu-se Uruk com uma das mãos acima dos olhos. Cavian cravara a pacificadora no topo da torre, a mais alta delas que dera o nome ao castelo. – É aquele pirralho, Shasak, não deixarei que escape dessa vez.
- Se certifique de terminar o que Bahamut não teve coragem de fazer - disse Shasak, enquanto Uruk correu brevemente e saltou em direção à torre, encaixando as largas mãos sobre as pedras. Era incrível como se conseguia deslocar naquela distância. Fisicamente era o mesmo adversário formidável que haviam presenciado anos atrás.
Shasak finalmente deu o sinal, mas ao contrário da ação que solicitara, o primeiro carrasco caiu ao chão com o pescoço torcido, enquanto uma adaga precisa se grudou no pescoço daquele localizado logo após, fazendo com que a lâmina do machado caísse e se afundasse contra o chão, enquanto uma densa cortina de fumaça se levantava entre ele e as algemas de execução.
- General! Sirius disse que viria... – exclamou Yuki espantada, vendo o ex-general do exército de Aquia aterrissando à sua frente.
- Vim por ele, mas preciso que me ajude a libertar seu povo o mais rápido possível. Essa fumaça logo se dissipará.
Yuki assentiu, enquanto Nymo rapidamente liberava uma das trancas com um conjunto de espetos de metal de pontas diversas. O antigo mestre era pequeno o suficiente para se manter sobre a estrutura de madeira acima da cabeça de Yuki, enquanto manejava a ferramenta com destreza. De repente, um zunido se aproximou em um instante e com um giro sobre o próprio corpo, Nymo desviou a rota da lança que viera em sua direção.
A cortina finalmente se dissipara com a força do vento e os olhares de Shasak se cruzaram com o do ex-general Aquiriano, enquanto finalmente terminava de libertar Yuki.
- Deixe que eu cuido dele! – exclamou Yuki. - Depois que libertar os demais, por favor leve Sirius o mais rápido possível para longe daqui antes que seja tarde demais – pediu ela confiante, passando a mão sobre seu pescoço dolorido. Era como sentir novamente o sangue fluindo em suas veias.
- Está fraca, princesa – alertou Nymo.
- Não se preocupe, mantenha sua promessa e o tire daqui. Tenho mais do que o suficiente para derrotá-los.
Nymo assentiu partindo em direção de Rizar, enquanto Yuki caminhava em direção a Shasak.
- Vocês acham realmente que conseguirão se safar disso? - questionou Shasak. - Você passaria a vida se remoendo pelas milhares de mortes que causou se não fosse minha generosa piedade, princesa... Não deixarei que viva para carregar esse fardo – continuou ele retirando a capa pesada e adornada que vestia, jogando-a no chão. O rosto felino de olhos amarelados e amendoados tinha um aspecto humanizado, mas a pelagem dourada o aproximava mais dos filhos do deus das feras. Sua verdadeira face, uma visão rara reservada provavelmente somente àqueles que tinham seus rostos estampados naquelas pedras, era um sinal de que estava disposto a cumprir a vontade de suas palavras.
- Continua prepotente como sempre, esquece somente que diferente de seus soldados, as pessoas que estão aqui hoje só estão por sua própria vontade! – exclamou ela, flexionando as mãos castigadas pela masmorra. – A queda do império do qual faz parte começa hoje – finalizou enquanto o vento gelado arrodeava seus finos dedos, partindo para cima do homem fera.
Cavian

Cavian saltou do topo da torre sobre o chão de pedras logo abaixo. O plano era que conseguisse separar Uruk dos demais. Manter os líderes afastados garantiria que os exércitos se dividissem e se enfraquecessem. No fim, a missão de salvar sua irmã nunca esteve em suas mãos. Nymo era o mais rápido e experiente. Garantiu que libertaria todos desde que dessem a abertura que precisava para salvar Sirius. Além disso, ninguém além dele próprio poderia se locomover com tamanha facilidade entre aquelas torres e despertar tanto interesse de Uruk ao mesmo tempo.
Caminhava para a ponta da estrutura esperando que Uruk se revelasse, quando no instante seguinte ele o fez. A criatura estava ainda maior do que na época que conhecera, mas não o amedrontava. Não era mais o garoto assustado de antes.
O som da gorjeada dos pássaros reverberou pelo ar quando Cavian girara a pacificadora. Uruk partiu em sua direção exatamente como previra, enquanto fez o mesmo. Dobrou os joelhos e se inclinou deslizando sobre o chão e desviando do tetsubo que corria em direção ao seu peito. A arma passou a milímetros de sua cabeça, enquanto seu corpo transpassava lateralmente ao de Uruk. A espada dançou sobre o ar e a lâmina negra foi manchada com sangue. O corte profundo alcançou os tendões do pé direito, fazendo com que Uruk se ajoelhasse ao chão. Cavian não viu a expressão de dor no rosto de Uruk, mas sem um de seus pés um corpo grande como aquele teria dificuldades de se movimentar. Certamente todos os sermões de Yuki o ensinaram bem.
Cavian colocou a espada nas costas, fazendo com que ela colasse a ele como um ferro atraído por um ímã, enquanto rodeava o corpo do general para confrontá-lo a uma distância em que os braços de seu inimigo não o alcançassem.
- Desgraçado! – bradou Uruk. – Você será massacrado junto aos seus amigos, eu esmagarei seus crânios um a um – completou ele raivoso.
- Sabe qual o seu principal problema, Uruk? Você luta com alguém que já está morto – disse Cavian parando à frente de seu inimigo. – A pessoa que ajudou a mandar para aquela masmorra não voltou de lá.
Uruk riu.
- Você acha que evoluiu por conta de um golpe de sorte? Seus olhos transpiram medo, bastardo.
Cavian avançou novamente sem que os olhos de seu inimigo o alcançassem. A lâmina em riste alcançou o pescoço do herdeiro do trono de Volus em um piscar de olhos.
- Vamos, sei que você quer o sangue, não é muito diferente de mim, eu quero o trono de meu pai tanto quanto você quer o do seu – disse Uruk, sorrindo com a cabeça erguida.
Os pensamentos de Cavian se embrulhavam. Uruk estava certo, seu olhar estampava o medo. Não o da criatura a sua frente, mas o de decepcionar todos outra vez, mesmo ali, com tudo contando ao seu favor, com tanto poder que lhe fora entregue pelas pedras solitárias, sua cabeça ainda insistia em tentar impedi-lo.
Uruk se aproveitou do momento de distração. O largo punho encoberto com uma manopla de espinhos de ferro alcançou o estômago de Cavian, jogando-o pra trás. O golpe foi forte o suficiente para que sua visão se embaralhasse enquanto o chão se movia em balanço. A mão que levara a sua barriga em meio ao couro despedaçado se encharcou de vermelho.
Sua distração lhe custara caro. Uruk não era um oponente indefeso, muito pelo contrário.
Uruk arrastava a perna golpeada indo em sua direção. Estava de joelhos, com sua espada distante de si.
- Eu disse, pirralho, nunca se deve levantar a mão contra seus deuses – disse Uruk, erguendo Nangu com ambas as mãos acima de sua cabeça, prestes a aplicar um golpe potente e mortal.
Não poderia decepcioná-los, não mais uma vez. Seria adequado tirar a vida de seu inimigo? Era isso que se tornara? A vitória sobre Splenze poderia não ser lembrada, mas fora por suas mãos que a vida do general havia sido ceifada. Se tivesse feito antes, talvez tivesse poupado a vida de outros tantos. Com os deuses fora dos céus, talvez a única justiça que se pudesse esperar era realmente por meio das mãos dos próprios homens. Era o que seu pai gostaria que tivesse feito anos atrás. Era do que havia fugido a vida inteira.
Antes que a arma descesse, concentrou a energia na palma de sua mão. A pacificadora veio como um raio correndo pelo ar em sua direção até que alcançasse seus dedos.
Cavian foi mais rápido. Meneou a lâmina para cima contra a descida do golpe de Uruk. O tetsubo caiu ao chão com o corte profundo no ombro direito de Uruk, que cambaleou para trás. Bastava o golpe final. A guarda aberta permitiria um ataque direto e sem qualquer defesa. A pele da criatura poderia ser mais rígida que as rochas da velha montanha, mas não o suficiente para que impedisse que a lâmina da tempestade alcançasse a luz do sol atrás de seu oponente. Não fora o que decidira. No último instante, ele girou a espada, voltando a ponta da lâmina em sua direção e acertando a linha central do estômago da criatura com o cabo de sua espada em um golpe potente. O príncipe de Volus deu mais alguns passos para trás até que suas costas alcançassem o chão. Não tiraria sua vida naquele momento, mas também não poderia garanti-la de qualquer forma.
Com seu inimigo caído, caminhou até a ponta da torre. A dor do golpe sofrido era insuportável. Retirou a armadura de couro que vestia e com o pedaço de tecido que rasgara de sua camisa, tentou conter o sangramento, pressionando-o contra o ferimento. Repôs a armadura e se preparou para descer, enquanto a capa acinzentada farfalhava ao vento. Olhou para o abismo que o aguardava, quando escutou os passos de Uruk. Não era possível que seu adversário se levantasse. Um dos tornozelos de Uruk com certeza estava rompido e um dos braços inabilitado, fazendo com que não fosse possível carregar nada além do que as próprias mãos nuas. Ainda assim este avançava em sua direção como uma locomotiva desgovernada, arrastando-se sobre o único braço e perna que lhe restaram íntegros.
Pulou sobre Cavian como uma fera dando o bote em sua presa, com o corpulento corpo ainda no ar, tapando o sol que chegava à sua face enquanto era guiado por seus pensamentos de vingança.
Cavian pulou, rolando ao lado, enquanto o corpo de Uruk saltava no vazio.
Narthus
Ele e Mika se revelaram em meio aos exércitos. Libertos e soldados se confundiam no mar de gente que se formara. Muitos haviam vindo junto com eles, mas visualmente o exército dos reinos aliados parecia mais numeroso e certamente dispunham de melhores armas.
Mika abateu soldado após soldado que aparecera em sua direção. Não eram excepcionalmente fortes. Ele os jogava ao chão como um elefante brigando com formigas, mas certamente em algum momento estariam esgotados, em uma batalha numérica difícil de vencer. Faziam parte do grupo responsável por impedir que o pequeno exército de Cusgar e o próprio cavaleiro alcançassem os portões do castelo. Ainda assim, os cavalos encouraçados dos reinos aliados pareciam estar dispostos a passar por cima até de seus próprios exércitos.
Uma flecha de fogo acertara ao longe o primeiro. Não conseguiam ver de onde viera, mas certamente não se misturava com aquelas vindas do castelo. Naquela distância seria difícil que algum arqueiro se mantivesse de pé por muito tempo, mas aproveitariam cada brecha deixada por quem quer que fosse.
Posicionaram-se entre o portão e o pequeno grupo de cavaleiros que cavalgavam nos cavalos negros cobertos pelas placas de ferro, que subiam e desciam no passo em que avançavam. O trotar era contínuo e passava pelos soldados como se estivessem em um campo de pés de algodão. Cusgar os liderava, girando seu longo martelo que lançava corpos em meio às multidões mais próximas. Enquanto todos se afastavam abrindo o caminho, somente um homem se postou diretamente contra os cavalos. Narthus parou sobre o gramado na direção que os cavalos apontavam, enquanto Cusgar mantinha o ritmo sem sequer dar atenção ao homem à sua frente.
Cusgar era pesado, o que indicava que seu cavalo também dispunha de certo vigor, naquela velocidade, mesmo para um ser do tamanho de Narthus, seus cascos certamente o afundariam sobre o revirado gramado, afinal, qualquer um não teria dúvidas que não se tratava de um gigante, somente um homem maior que seus pares. Não seria páreo pra um cavalo de guerra, ainda mais para aquele que se aproximava.
Narthus cravou os pés no chão e abriu os braços. O impacto do cavalo não o jogou como qualquer um poderia imaginar. Um odor fétido cobriu suas narinas enquanto ergueu o animal e Cusgar ao mesmo tempo, jogando-os ao lado. As patas dos cavalos à esquerda esbarraram no corpo do animal caído e vários animais e cavaleiros se amontoaram ao chão, com pedaços de terra e grama voando pelos ares, enquanto eram transpassados pelos demais que desacelerariam metros à frente, fazendo com que somente três deles se mantivessem de pé.
Narthus se levantou do chão, enquanto viu Cusgar fazer o mesmo, puxando seu martelo que abrira uma vala sobre a terra. Por sorte não estavam sozinhos. Os demais cavaleiros ao chão viam espadas e machados voarem sobre seus corpos caídos. A vantagem dos cavalos não existia mais e Cusgar havia sido parado. O primeiro objetivo estava concluído. Rixi chegaria com os Natelurianos a qualquer momento, um pouco mais de tempo seria o suficiente.
Ele sentia a opressão em volta do ar que o cercava, não era algo natural, parecia mais pesado do que antes, mais lento do que antes e o temor parecia querer criar raízes em seu coração. O primeiro ataque veio, o martelo manejado com destreza avançou pela lateral, fazendo com que fosse obrigado a jogar seu corpo para trás. Uma sequência de ataques ocorreu em seguida, até que o martelo foi investido em direção ao seu peito. Ele o parara. Provavelmente ninguém o havia feito em anos, ainda que também fosse fato de que ninguém tivesse durado por tanto tempo. A cabeça chata de metal era grande e pesada como a âncora dos grandes navios, mas ainda assim Narthus conseguira amortecer o golpe em suas largas mãos, até que Cusgar finalmente o largou. Avançara de uma forma rápida e os punhos do cavaleiro vieram contra um dos seus joelhos antes que ele tivesse tempo de reagir. Uma pequena lâmina saiu do dorso da manopla e perfurou seu joelho esquerdo de forma frontal. O próximo golpe acertou a lateral do outro, fazendo com que o gigante desabasse, enquanto o martelo caía ao lado. A armadura de ferro rústico de Cusgar repentinamente pareceu ter o peso de faixas de algodão. Estava de joelhos aos pés de um inimigo que não seria capaz de enfrentar, mas antes que encarasse seu destino, uma lança veio de longe, acertando a lateral da costela de Cusgar. Narthus aproveitou a brecha e segurou os dois braços de seu inimigo. A lança havia perfurado seguramente por alguns centímetros, o que faria com que caísse em alguns minutos.
Narthus arqueou a cabeça pra trás e testou o elmo de ferro, fazendo com que Cusgar fosse jogado a alguns metros à sua frente. Seus joelhos já não se moviam mais e seu pesado corpo não sairia dali sem alguma ajuda. Ao menos havia cumprido sua missão, assim como Mika, que chegara desesperada ao local.
- Vim o mais rápido que pude... – disse ela apoiando em seu ombro, observando seus ferimentos. O sangue escarlate que o pintava se misturava à terra novamente devassada pela guerra.
- Estamos quites agora – brincou o gigante, enquanto seus olhos presenciavam com temor a cena que se desenhava em sua frente.
Mika
Antes que pudessem comemorar, o braço de Narthus a jogou para o lado em direção às suas costas. Mika só pôde entender instantes depois sua ação repentina, quando viu o cavaleiro que havia acertado se reerguer diante deles. Arrancara a lança em sua costela, jogando-a ao lado. Narthus percebeu que a ponta de ferro e o corpo de madeira não estavam sujos de sangue e sim de um líquido enegrecido de odor fétido. Certamente se tratava de uma criatura banhada pelas trevas, do contrário não teria sido capaz de se levantar depois daquele golpe. Persus havia comentado sobre as magias proibidas dos deuses uma vez, uma delas era a que Gaya havia usado para salvar sua vida. A ponta da lança tinha ao menos três dedos de largura, era larga o suficiente para derrubar um gigante sem maiores problemas. Ele simplesmente se comportou como se o objeto mal tivesse o arranhado.
Mika se desvencilhou do braço de Narthus.
- Mika, saia daqui! – implorou desesperado. - Se trata de uma criatura amaldiçoada, não pode ser morta por nossas mãos.
Cusgar os ignorava enquanto Mika e Narthus encaravam a mão da criatura pressionar os dedos sobre o cabo do grande martelo. Foi quando uma explosão vinda do castelo atordoou a todos. O rangido alto de ferro retorcido e finalmente o som da batida oca do imenso corpo de ferro contra as pedras ecoou sobre o campo de batalha. O portão de ferro havia caído e Blackhelm desde sua criação nunca estivera tão exposta.
Mika viu quando Cusgar fizera um sinal com a mão direita, três de seus dedos rotacionaram sobre o ar. Parecia magia, mas nunca havia visto um selo como aquele nas páginas velhas de seus livros. Nenhum elemento havia sido manipulado, mas ainda assim podia-se escutar o trotar de seu cavalo ao longe. Viera do norte, das costas do próprio cavaleiro. Não tinha qualquer intenção de deixá-lo partir, mas não foi só o cavalo que chamara para si, um de seus cavaleiros apareceu a sua esquerda, o maior de todos eles, ostentando um mangual de espinhos de ferro nas mãos. Percebeu que outro deles se aproximava das costas de Narthus. Era um chamamento. Libertos tentavam se interpor contra os cavaleiros sem qualquer sucesso. O mangual rodou no ar, voando em seguida em sua direção. Mika desviou com destreza, segurando a corrente amarrada à bola de ferro em suas mãos e a puxando em sua direção. O corpo do cavaleiro veio. Mika girou o corpo e apoiou o imenso cavaleiro sobre suas costas, completando o movimento de alavanca e o jogando contra o chão. Quando voltou seus olhos para frente, Cusgar já estava montado ao mesmo tempo que Narthus aparava a lâmina da espada do outro cavaleiro em uma das mãos. A escolha óbvia seria impedir Cusgar, seguir com o plano. Não poderia deixar com que chegasse ao castelo de forma alguma. Do outro lado, era provável que mais cavaleiros chegassem e Narthus ficasse em perigo. Da outra vez voltara à vida, mas não tinha certeza de que poderia novamente fazê-lo. Se Cusgar se afastasse, poderia se preocupar com os demais. Ela se preocupava com todos, mas não devia nada a qualquer um deles. Não arriscaria perder outra vez tudo o que tinha. Me desculpe, Cavian, não posso perdê-lo, pensou antes de correr em direção a Narthus, enquanto Cusgar sumia em meio ao campo de batalha.
Yuki
- Ainda domina a magia, princesa? – questionou Shasak à sua arquirrival, sacando duas espadas curtas embainhadas à esquerda de sua cintura.
- Vamos descobrir – disse ela estendendo a mão e criando uma lâmina de gelo que se alongou para ambos os lados.
As lâminas atacaram Yuki rapidamente enquanto Shasak girava seu corpo. Uma, duas, três, quatro deles foram bloqueados pela arma gélida antes de uma delas quase atingi-la. Yuki pulou para trás girando no ar e apoiando uma das mãos sobre o chão enquanto a outra segurava a lâmina de maneira firme.
- Não imaginei que estivesse tão lenta! – exclamou Shasak confiante, enquanto girava as espadas sobre suas mãos – Quem sabe não queira desistir para que não veja a chacina que está acontecendo lá embaixo.
- Nunca irá entender o que nos move, não é? – questionou enquanto partia novamente. A arma girou sobre suas costas fazendo com que Shasak se defendesse com ambas as armas o ataque que atingiria as costelas. Girou ao contrário, fazendo com que Shasak arqueasse as costas contra o chão para desviar do ataque. O próximo o atingiria frontalmente, mas antes que a lâmina atingisse o rosto de Shasak, ele aplicou um golpe veloz, despedaçando o pedaço de gelo. Da outra mão da princesa veio um novo golpe de outra lâmina recém-criada em suas mãos nuas. Yuki girou a mão, enquanto o pedaço afiado de gelo contorcera o metal que a atacava, jogando-o para longe de si. Shasak imediatamente pulou pra trás assim como ela.
- Não conseguirá se sustentar por muito tempo, princesa. A essa hora, a cabeça de seu irmão deve estar sendo massacrada pelos pés de Uruk. Ele tem um jeito exótico de tratar suas vítimas. Não que eu concorde, é lógico... É um pouco como podemos dizer... Tosco... Rudimentar... Algo que não combina com a superioridade advinda do poder.
Yuki sorriu.
- Nem em um milhão de anos ele venceria Cavian – disse ela confiante. – Quando seus exércitos não o detiveram naquela masmorra, acabaram criando um monstro ainda pior do que eu... Pense um pouco... Acha que ele não sabia que enfrentaria Uruk? Ele escolheu essa batalha, não o contrário – retrucou Yuki firmemente. – Quem está lutando contra o tempo aqui é você – completou enquanto escutava atentamente o choque de madeira contra madeira das algemas abertas, assim como o tintilar do som do aço e dos passos que vinham lá debaixo. Exércitos chegariam a qualquer momento, ainda que não fossem páreo pra Nymo. As falas de Shasak não eram isentas de verdade. Os dias naquela prisão haviam sido penosamente difíceis. Seus reflexos não estavam tão ágeis como gostaria, mas ela tinha certeza que Cavian não cairia para Uruk. Não o Cavian que lutara com ela sob aquelas águas turvas. Ela se moldara em meio ao caos, mas era ele que havia se construído a partir dele.
Em meio aos pensamentos e observando os movimentos de Shasak, o som da explosão tomou seus ouvidos. Sirius disse que o portão ruiria, ele disse que os resgatariam, finalmente a realidade contrariava a falsa lógica que insistia em ludibriá-la.
Viu um pequeno temor nos olhos de Shasak, era sutil, quase como um estalido. Era impossível que previsse tudo aquilo, nem mesmo ela poderia, mas era necessário que desse tempo a Nymo. Se ele parasse para derrubar aqueles exércitos, certamente as coisas se complicariam. Foi quando uma lâmina de gelo saiu de suas mãos, atravessou o palco de madeira maciça, rodopiando pelo ar, e o primeiro soldado não soube de onde fora atingido. Shasak aproveitou a brecha deixada pelo ataque. Ela mal conseguiu desviar e pôde sentir por um instante a sensação do metal gelado pouco abaixo de seu olho direito, quando, em um chute girado, Shasak a acertou, jogando-a para trás, fazendo com que seu corpo fosse arrastado pelo tablado. A escada era larga demais. Estava fraca demais, mas seus olhos recuperaram a esperança quando viu o corpo de Uruk caindo da torre. Cavian havia vencido como previra.
Antes que Shasak pudesse alcançá-la novamente, agachou-se e apoiou ambas as mãos ao chão fazendo com que uma onda gélida se espalhasse pelo chão. Shasak saltou. Mas os soldados, em suas armaduras pesadas, estavam à mercê de sua magia. O gelo subiu pelas armaduras e congelou seus pés, grudando-os contra o chão e fazendo com que fossem incapazes de se mover. Utilizar magia daquela extensão naquelas condições era confiar que Cavian chegaria a tempo. Ela sabia que ele estava pronto.
Shasak arrancou de sua cintura várias adagas de lâmina curta, pouco menores que a palma de sua mão, atirando-as em sequência contra Yuki, que rolou ao lado para desviar, fazendo com que se enfileirassem ao chão. Não poderia descuidar dele, mas seria incapaz de atacá-lo agora. Shasak aterrissou no chão congelado. Ambos sabiam que ela estava vulnerável.
Seu cinto parecia ser um arsenal de lâminas. Arrancou mais duas delas agora de suas costas, correndo em sua direção. Foi quando Shasak percebeu que Cavian pairava logo acima de suas cabeças. A pacificadora veio na direção de Shasak, que desviou com certa destreza, fazendo com que ela passasse a milímetros de seu braço esquerdo antes de se cravar ao chão. Quando voltou a si, levou a mão em seu peito. Três das adagas que atirara antes haviam o acertado, enquanto Cavian aterrissava na borda da plataforma de execução como uma pena tocando o chão.
As adagas não eram profundas, mas a batida acelerada do sangue fluindo nas veias do monstro das mil faces pelo furor da batalha faria com que o veneno tomasse seu corpo em segundos. E ele finalmente se ajoelhou ao chão, com o sorriso no rosto, rindo copiosamente enquanto Yuki se aproximava.
- Não o tem, não é? – questionou Yuki perguntando sobre o antídoto. Todo mestre de venenos carregava o seu, mas Shasak particularmente nunca precisou se preocupar em ser acertado, tampouco poderia sentir qualquer compaixão por seus inimigos. Provavelmente a inutilidade do item fizera com que ficasse negligente, ou ainda permitir que alguém ousasse a pensar que ele talvez pudesse ser derrotado.
- Nossos destinos sempre estiveram selados, princesa, mas ainda que eu me vá, continuarei habitando o pensamento de todos vocês até que pereçam - Shasak gargalhou. – Ele saberia hoje, de qualquer forma... A cidade seria finalmente minha. É uma pena que eu parta sem que tenham esse privilégio. Sabe... Ele nunca foi escolhido porque era o mais forte deles... Mesmo que quem não devesse saber da verdade a descubra, acredite em mim, é melhor deixá-lo partir. Conheço ele quase como um pai conhece um filho, disseram que o dele partiu sem ao menos chamar por ele. Eu o salvei de um destino bem pior... – continuava Shasak com palavras que até o momento não faziam sentido. - Está confusa, não está? Sobre quem eu estaria falando? Talvez você já saiba quem ele é, mas deixarei esse último desafio em nome dos velhos tempos...
- Você infelizmente não saberá a resposta! – exclamou Yuki enquanto levava seu dedo indicador à testa de Shasak. Cavian segurou seu braço por um momento, mas bastou o olhar esbravejado na direção do irmão para que ele a soltasse. Um único toque gélido fizera com que fosse coberto pela camada reluzente de cristais de gelo. - Não temos tempo para moralismos com estes que já fizeram tanto mal, meu irmão. Além disso, ele partiria de qualquer jeito – justificou ela ainda pensando naquelas palavras. Cavian certamente sabia que ela o faria, mas suas ações não se tratavam de misericórdia ou vingança, e sim de garantir que ele nunca mais pudesse fazer mal para aqueles próximos de si.
- Ainda tento pensar se há outro caminho além desse… a cada dia é me provado que talvez não exista outro de fato...
- Se há alguma pessoa que possa encontrá-lo, é você faísca. Aliás, por que demorou tanto? – brincou Yuki, estendendo uma das mãos ao irmão, agarrando um seu braço até próximo de seu cotovelo, como ele também o fizera. Um cumprimento saudoso dos Aquirianos, antes que finalmente se abraçassem.
- Foi um pouco difícil sem as instruções que sempre me dava... – retrucou ele sorrindo levemente.
- Como vê, não há mais nada a ensinar – disse ela retribuindo o sorriso, enquanto desviava o olhar procurando Nymo. Para seu alívio, já estava prestes a soltar Sirius. Também viu Rizar de pé, sobre o baixo peitoral frontal do castelo, logo acima do portão que desabara. Suas mãos certamente faziam parte de um plano que gostaria de analisar daqui a algumas horas, bebendo um belo vinho ao lado de seus amigos, assim como sempre faziam ao final das pequenas conquistas entre os povos livres. Um pequeno tributo à vida pelos que sempre partiam.
Não havia percebido, mas um pequeno corte em seu rosto a fizera entender as primeiras palavras de Shasak. Era do tamanho de um grão de arroz, mas não haveria nada que pudesse fazer naquele lugar, tampouco poderia abandoná-los sem que alcançassem qualquer desfecho. O tempo passara a ser seu principal inimigo.
Seu corpo estava tão exausto que provavelmente desabaria se ousasse fechar os olhos por alguns segundos. Viu o ferimento de Cavian, mas não pareceu ser grave o suficiente para impedí-lo de jogar sua espada com tamanha precisão segundos atrás. Rizar estava com as mãos livres para fazer o que fazia de melhor e Nymo, o condecorado general estava ao lado deles, um aliado poderoso e valioso naquela situação. Com apenas mais um general de pé, mesmo com um número menor de soldados, a queda da última linha de comando certamente os levaria à vitória.
O desespero no olhar de alguns soldados que ajudavam uns aos outros com golpes das espadas sobre o gelo que agarrava seus pés, certamente poderia ser atribuído ao medo do que o futuro os reservava, mas ao invés de fugirem se alinhavam rapidamente uns aos lados dos outros, ajoelhados em sinal de uma subserviência.
A falta de entendimento de Yuki sobre a situação vinha justamente de onde não poderia enxergar e para surpresa e alívio de seus olhos, não precisaria ir atrás da solução, já que esta viera até ela. Os passos pesados sobre a escadaria anunciavam sua chegada e Cusgar finalmente apareceu com o martelo acima do ombro, imponente, ainda que sozinho, provavelmente insuficiente para confrontá-los.
Cavian
Os Natelurianos não haviam chegado até aquela hora e os Libertos não tinham número suficiente para confrontá-los, a ajuda vinda e prometida das florestas era essencial para que houvesse alguma chance, ainda que a força dos guerreiros parecesse se multiplicar como um milagre dos velhos deuses. Mesmo com armas e armaduras menos robustas, era como se sua força de vontade se pronunciasse no campo de batalha, fazendo que a batalha inesperadamente não se tornasse tão desigual. Os guerreiros moldados pelas mãos de Rizar, que se posicionava de pé sobre o peitoril do cordão de pedras, continuavam a surgir, escalando os muros do castelo como aranhas, o bastante para distrair a linha de arqueiros que atiravam contra fantasmas imparáveis e dos cavaleiros que não sabiam se auxiliam as linhas de frente ou se tentavam impedir que soldados inimigos adentrassem o castelo pelo imenso portão agora aberto.
Acima da grande abertura, Cavian encarava seu passado, o homem que o prendera anos atrás estava novamente em seu caminho.
- Yuki, vá ajudar Sirius, eu cuido dele – disse Cavian, agora confiante.
- Você está ferido, Ian.... – observou Yuki, preocupada.
- E você quase desabando – retrucou ele. - Não seja teimosa... Sabe que pode ser muito mais útil a ele do que eu. Não precisa mais me proteger.
Aquelas últimas palavras pareceram convencê-la.
- Não caia, meu irmão! – disse ela enquanto chacoalhava seus cabelos, assim como fazia quando crianças.
Cavian assentiu com um sorriso. Não queria preocupá-la. Com certeza ficara mais forte desde a última vez, mas Cusgar era provavelmente o mais forte dos generais. O único deles nomeado rei entre os novos deuses.
Ele sacou a pacificadora novamente. Cusgar não era um alvo lento como Uruk. Ele sabia que a postura do cavaleiro poderia enganar, assim como já havia sido feito antes.
Avançou sobre Cusgar, que levantara seu martelo acima da própria cabeça, descendo-o em direção a Cavian, que rolou ao lado de forma distante para desviar do golpe, que estilhaçara o chão de madeira. Não havia distância para um golpe que pudesse causar qualquer dano. Cusgar sabia disso, só não contava que enganá-lo era justamente o que Cavian havia planejado. Concentrou a energia dessa vez na ponta de sua espada, como havia feito com Narthus tempos atrás. Girou o braço e estendeu o corpo e a espada como se fossem uma linha única do chão à ponta da espada, encostando-a no peitoral do aço de Cusgar quando a explosão aconteceu, lançando o cavaleiro de ferro para longe. Quando o cavaleiro alcançou o chão, o metal se arrastou pela madeira, lascando-a por alguns metros até que finalmente parasse. O martelo havia voado das mãos do cavaleiro negro em pleno ar e certamente cairia da plataforma se não pesasse mais do que seu próprio portador.
Os outros soldados dos reinos aliados, mesmo assustados, não se moveram, e Cusgar se ergueu, como se tivesse apenas tropeçado em seus próprios pés. Seus movimentos estavam tão íntegros quanto antes, e mesmo que se sentisse orgulhoso, Cavian se manteve perplexo. Até mesmo Narthus demorara mais para se levantar de um ataque menos potente, e se Cusgar estava ali, quer dizer que nem mesmo ele e Mika haviam sido capazes de detê-lo. Rezava em seus pensamentos por seus amigos e para que suas mãos fossem capazes de superar sua própria desconfiança.
Cusgar continuava a caminhar pra frente sem qualquer temor.
Cavian desferiu um novo ataque, mas dessa vez Cusgar não permitiu que a ponta o alcançasse. Segurou a lâmina com as próprias mãos. Cavian simplesmente deixou com que o fluxo normal se reestabelecesse, fazendo com que a corrente fluísse totalmente pelo corpo do cavaleiro. Novamente se tratava de um ataque direto, mas mesmo que a corrente encontrasse o caminho pela densa armadura enegrecida, aquele que a vestira sequer se moveu. Cusgar puxou a lâmina para próximo de si, aplicando uma joelhada no estômago de Cavian. A dor do golpe, somada ao ferimento anterior, fez com que perdesse o ar e caísse ao chão de joelhos. Cusgar arrancou a espada de sua mão e jogou ao lado, fazendo com que rodopiasse no chão para longe dali. Cavian levou uma das mãos à barriga enquanto estendia a outra. A pacificadora voou em direção a sua mão, mas Cusgar chutou seu braço no momento em que sua mão estava prestes a alcançá-la, arrancando-a novamente de si. A pequena lâmina da manopla encouraçada de Cusgar foi ao encontro de sua face, mas pensando nas coisas que haviam passado até ali, buscava o que havia mudado dentro de si desde a última vez. Não estava confiante, sabia que não era páreo para ele, mas tampouco estava com medo de seu destino. Talvez essa fosse a resposta que procurava. Não era mais a criança afoita de anos atrás, lutava por um objetivo maior do que ele e fora cauteloso em seus passos pela primeira vez.
Levantou a mão para se defender e a lâmina atravessou a pequena tira de couro e a palma de sua mão de uma vez só, impedindo que ela alcançasse seu rosto. A dor cruzou sua espinha. Seus dedos se apertaram contra a manopla de metal e dessa vez não deixou que se dissipasse. Concentrou o poder na palma de suas mãos e viu o metal denso se avermelhar e aos poucos derreter. Cusgar tentou um novo ataque com a outra mão. Seria impossível que desviasse sem largar a mão de seu oponente, que segurava com tanto afinco. Concentrar a energia em sua outra mão para repelir o ataque, faria com que perdesse seu objetivo principal e caso erguesse seu braço direito para se defender, ele seria facilmente despedaçado pelo ataque. Partiria fazendo com que Cusgar não pudesse empunhar sua arma com a destreza necessária, dando alguma vantagem para que os demais terminassem de derrotá-lo. Naquele momento estava sem qualquer temor em seu coração e o sorriso de satisfação veio a sua face sem que pudesse evitar, mas antes que a mão de Cusgar pudesse alcançá-lo, um vulto negro passou diante de seus olhos e um pilar de gelo surgiu do chão, atingindo seu peito e o jogando para trás no chão deslizante. Cavian pôde ver a mão de Cusgar voando pelos ares.
- Deixe o garoto em paz! – exclamou Nymo, aterrissando ao chão ao transpassar os dois, enquanto duas pequenas lâminas negras e curvas dançavam sobre as pequenas garras.
Yuki estava a metros dali, com Sirius apoiado sobre si. Cavian não conseguiu deixar de notar a brutalidade da guerra desenhada no corpo de seu companheiro. O corpo definhado e as mãos que não conseguiam mais abraçá-la. Mesmo assim mantinha um sorriso ao rosto ao lado de Yuki. Certamente havia cumprido sua promessa e a acompanhado naqueles dias sombrios.
Puxou as presilhas e arrancou a armadura do corpo para que pudesse respirar. O ar parecia escasso como no topo das montanhas. A faixa que cobria o ferimento estava encharcada e percebeu a palidez de suas próprias mãos. Se continuasse a se movimentar daquela maneira certamente pereceria.
Seus olhos presenciavam o que havia sido incapaz de fazer. Cusgar meneava a mão pelos ares enquanto os ataques de Nymo rasgavam a densa armadura como se fosse feita de seda. O grande cavaleiro não era capaz de encontrar os rápidos e sucessivos ataques. Até mesmo seus próprios olhos tinham dificuldade de acompanhá-lo. Era um verdadeiro duelo entre deuses, do qual ainda estava distante.
Os soldados da escada já haviam partido, não restara qualquer um para se interpor na batalha. Provavelmente partilhavam de sua mesma impressão, a de que seria impossível se meter na briga entre seres de tamanho poder. Sob seus elmos seria impossível que Cusgar os identificasse em uma eventual derrota, e na vitória de Nymo certamente pensavam que estariam fadados à morte. Qualquer uma das razões era suficiente para que partissem dali. Divio, Nuriel e os demais prisioneiros já haviam partido provavelmente para se juntar ao exército abaixo de seus pés. Rizar se mantinha imóvel com palma das mãos apontadas para as escadarias abaixo de seus pés. Era um alvo fácil para qualquer arqueiro que o percebesse. Mas era tão pequeno e parecia tão frágil que fosse mais provável que achassem que estivesse rezando aos seus próprios deuses. A criação do falso exército mágico daquela distância esgotaria seu corpo em mais alguns minutos provavelmente. Já Sirius estava com os cabelos molhados e com o rosto quase desfalecido que pingava de suor. O aspecto pútrido dos seus ferimentos indicava que a infecção se alastrara por seu corpo de maneira sistêmica. Até mesmo os cuidados de Yuki não seriam suficientes por muito mais tempo, já que mesmo ela parecia ter se desgastado demais contra Shasak.
Cavian precisava agir, derrotar Cusgar seria o caminho mais rápido para tirá-los dali.
Com a armadura ao chão, puxou novamente a pacificadora em suas mãos, mas antes que pudesse pensar em fazer algo, Nymo finalmente acertou Cusgar com uma lâmina cravada no coração do cavaleiro. O ex-general Aquariano havia acabado de desviar do golpe da única mão que sobrara do cavaleiro, quando esta acertou o chão arrancando mais lascas de madeira, que continuavam a se multiplicar pelos ares. O corpo de Cusgar estava arqueado em direção à pequena lâmina.
Nymo provavelmente esperava que ele caísse, mas para sua surpresa, uma nova mão surgiu no braço em que havia sido ceifada. Era uma mão arroxeada como as folhas de Qualim e que exalava um odor dos corpos que já haviam perecido sob aquelas terras. Esta alcançou de surpresa o pescoço de Nymo, que se debatia em vão. Cavian juntou as forças que restara, mas estava muito longe e muito fraco para alcançá-lo a tempo. Cusgar cabeceou o crânio do mestre Aquiriano, jogando-o ao lado, quando o leve corpo aterrissou ao chão imóvel. Percebeu que Yuki também deixara Sirius e viera na direção de Cusgar. No ataque combinado, a pacificadora atravessou uma das muitas brechas na armadura deixadas pelo general, transpassando o corpo de Cusgar como se fosse um grande e macio boneco de estopa. Yuki também o atingira. A lâmina de gelo cruzou das costelas do lado direito ao topo do ombro esquerdo em um fino e longo corpo translúcido que pareceu florescer do corpulento cavaleiro.
Nem mesmo isso fez com que parasse. Seria mesmo um dos deuses disfarçado entre mortais?, Cavian se perguntara. O dorso furioso da mão de Cusgar jogou Yuki para longe na direção das escadas, enquanto seu pé chutou Cavian, fazendo com que este se chocasse contra uma das algemas de execuções.
Ao invés de atacar seus oponentes já derrotados, partiu para o mais indefeso de todos eles: Sirius, que se arrastava na direção de Yuki, ainda que parecesse se mover sem que sua consciência o guiasse. Um corpo movido à simples e pura vontade.
Cusgar parou diante dele e pela tira de couro que transpassava seu tórax o ergueu. Sirius meneava os braços no ar, tentando acertá-lo como um pequeno menino desafiando um oponente de porte maior.
- Por que alguém se preocuparia com um ser inútil como você? – disse Cusgar erguendo o corpo de Sirius pela gola de sua camisa, quando se deparou com os colares que o ladino carregava consigo, expostos e brilhantes ao sol. Encarou-os fixamente por alguns segundos e eles pareceram hipnotizá-lo, principalmente o que ostentava a criatura aquática Landriniana.
- Onde arrumou isso?! – esbravejou Cusgar, enquanto Sirius continuava a tentar atacá-lo em vão. – RESPONDA, SEU VERME! ONDE ARRANJOU ESSE COLAR?!
Cusgar passou a lâmina de manopla derretida transversalmente sobre a blusa de Sirius, pouco abaixo de seu tórax. A cicatriz que o corte revelara pareceu não ser somente uma coincidência.
- ONDE ARRUMOU ISSO DROGA? QUEM É VOCÊ? QUEM TE ENVIOU? – soltou o corpo de Sirius sobre o chão, enquanto se ajoelhava. – QUE DROGA É ESSA? VOCÊ NÃO PODE SER ELE! VOCÊ NÃO PODE SER ALPHONSE! – gritava Cusgar mergulhado em uma mistura de desespero e transtorno. – Eu o vi naquela pilha, meu irmão, todos estavam lá, não estavam? Por que esteve ao lado dele todo esse tempo? Eles o tiraram de mim, os malditos deuses o tiraram de mim... – chorava o grande cavaleiro em desespero, conversando com o corpo inconsciente de Sirius que o encarava com olhos inexpressivos e opacos. Foi então que retirou o elmo revelando sua verdadeira face. Todos que pudessem vê-lo certamente o reconheceriam. O eternizado herói das eras, o poderoso Baran, ainda que tivesse o antigo e belo rosto de outrora coberto pela morte. Uma face que começara a se desfazer no vento, com o destino equivocado que havia traçado pra si. - Me perdoe, Al, vou revê-los antes de você – disse o cavaleiro negro tocando o nariz de Sirius com a ponta de seu dedo indicador, enquanto as manchas do corpo de Sirius, já estirado ao chão, começaram a se dissolver junto com o corpo que sustentava a armadura diante de si. O rei de Blackhelm, o homem mais próximo do poder dos novos deuses havia se dissolvido com o vento, tornando a pilha de metal que o envolvia uma casca vazia.
A batalha havia finalmente chegado ao fim. Cavian olhou para Rizar, que também sucumbira à exaustão e tentava se erguer com as dificuldades que seu pequeno corpo lhe impunha. Cavian pensava o que teria acontecido com Rixi, com Narthus, Mika e os outros. Torcia para que ao menos pudessem ter tido a chance de fugir dali.
A queda de Rizar fizera com que os exércitos dos reinos aliados novamente se unissem, ainda que estivessem confusos com a situação. A vantagem não havia sido o suficiente e ainda eram muitos os cavaleiros que ainda restavam de pé.
Yuki se aproximou de Sirius, que parecia com aspecto certamente melhor do que antes. A febre havia cedido e os cotos haviam levemente cicatrizado.
Cavian refletia nas palavras do homem que acabara de desaparecer. Lembrou das maldições antigas dos homens de fé que haviam sucumbido às trevas. Só não poderia imaginar que o herói de Fisbia se tornara um deles, muito menos que se apresentasse como o irmão de Sirius. Um único detalhe que os salvara.
- Rizar, cuide do senhor Nymo... Seu tórax ainda se move, ele... Ele certamente precisa de cuidados urgentes – ordenou Yuki, enquanto se sentava exausta, manejando o pouco de ar que parecia restar em seus pulmões. Sirius finalmente recostara sua cabeça em seu colo macio, enquanto ela carinhosamente entrelaçava e corria seus dedos pelos fios ainda molhados.
- Deixe comigo – respondeu o gnomo de prontidão.
- Os Natelurianos não vieram, minha irmã, não há como vencer - disse Cavian espremendo os olhos de dor, enquanto pressionava seu ferimento.
- Não precisa se preocupar, faísca... Meu destino já havia sido selado... – disse ela, ofegante, tocando o pequeno corte em seu rosto com o dedo indicador. Cavian percebeu a vermelhidão em seu olho direito, imaginando que se tratasse somente de um hematoma.
- Ei, Yuki, o que está dizendo? – disse ele se ajoelhando a sua frente.
- Não deixarei que vençam... Obrigado por me mostrarem... Que eu era diferente do papai... – disse Yuki, abraçando ele contra o peito com uma das mãos e depositando a outra sobre a cabeça de Sirius enquanto as lágrimas corriam finalmente por seu rosto pela primeira vez. - Te amo, meu irmão... Diga a esse teimoso do Sirius que o amo também... Ele viverá dias difíceis como serão os seus a partir de agora... Cuide de meu povo por mim - disse ela enquanto um intenso vento soprava. Tão gélido quanto aquele que se abrigava ao norte das montanhas congeladas.
- Chega, Yuki, não diga besteiras...
Cavian pôde ver quando a pupila da irmã se tornou branca como a própria neve, e a pele pareceu se encher de minúsculas escamas brilhantes. Pequenos cristais surgiram, rodopiando e se acumulando em volta deles, rapidamente e intensamente, até que em um instante se dispersaram de uma vez só. Cavian estendeu sua mão sobre os cristais, movimentando-a através deles. Sentia frio, mas os cristais não chegavam a tocá-lo, era como a corrente dos rios faziam com as rochas em seu caminho. A poeira branca e gélida navegava pelo ar entre os corredores de pedras do castelo e entre o campo tomado pela guerra. A cada cavaleiro do exército dos reinos aliados encontrado, uma estátua de gelo se erguia.
Os corpos daqueles que levantavam suas espadas pela liberdade eram transpassados como fantasmas. Eram pequenos pássaros, tão minúsculos quanto pequenos flocos de neve. Um passaredo que cobria o campo, devolvendo a esperança aos olhos daqueles que acreditavam naquela por quem vieram lutar. Eles sabiam que era ela que intercedia por eles.
Quando o campo de batalha se silenciou, Yuki desvaneceu sobre seus braços. Ele não ouvia mais as batidas. Abraçou o corpo gélido de Yuki que tinha os olhos esbranquiçados ainda abertos. Não sabia se ela ainda poderia escutá-lo e antigamente pediria para que ela não o deixasse ali sozinho em meio a todo aquele caos. Sempre fora ela que o guiara desde seus primeiros passos. Quando sua mãe não pudera estar presente, quando tantos o renegaram ou quando todos pareciam ter desistido de encontrá-lo. Não se martirizaria por achar o fardo pesado demais. Não diante dela. Fechou os olhos de sua irmã com as pontas dos dedos calejados pela batalha, voltando às montanhas de onde brincavam quando crianças, enquanto sentia os flocos de neve repousando sobre sua cabeça.
- Ei Yuki, não se preocupe… não vou ter mais medo… - sussurrou baixinho enquanto cruzava seu dedo mindinho com o dela, antes que o último beijo na testa gelada lhe tomasse as lágrimas que lhe lavavam o rosto.
Ela não pôde ver os milhares de braços cruzados sobre o peito, com as mãos estendidas, com os joelhos ao chão. Todos eles a saudavam. No fim, ela não havia reinado o povo que talvez lhe fosse herdado, mas certamente foi coroada pelo povo que a escolheu, e assim pela primeira vez desde que desenhada pelas mãos dos primeiros povos, Fisbia foi coberta pela neve, enquanto o silêncio glorioso contemplava sua rainha.
EPÍLOGO – ENTRE CORRENTES E SANGUE
Narthus
Os flocos de neve aos poucos foram dando lugar aos raios de sol, enquanto as estátuas de outrora se estilhaçavam junto daqueles que terminaram suas jornadas no campo de batalha, tão venerado por alguns e tão prematuro para outros tantos.
Narthus se mantinha atônito, confrontando a face extasiada e exausta de Mika.
- Vencemos! – exclamou Mika, sentada ao seu lado com os braços cruzados à frente dos joelhos, encarando o céu limpo e azul acima de suas cabeças, parecendo tentar acreditar na realidade que se apresentava diante deles. - De alguma forma vencemos...
- Já deveriam ter chegado... – interrompeu Narthus...
- Quem?
- Rixi e os demais, a essa hora já deveriam ter chegado...
- Daqui a pouco devem estar por aqui... Você mesmo havia me alertado sobre as dificuldades de se transitar entre os reinos naquele dia, lembra? Só não tínhamos tempo para esperá-los de qualquer forma... Se não fosse por Yuki, os exércitos dos libertos teriam sido dizimados nesse lugar...
- Há alguma coisa errada, é como se eu não pudesse mais senti-la perto de mim.... Gaya certamente está com problemas...